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Bud Powell – “The Scene Changes” + Jackie McLean – “Let Freedom Ring” + Lee Morgan – “Search For The New Land” + Sam Rivers – “Fuchsia Swing Song” + Joe Henderson – “Mode For Joe” + Wayne Shorter – “Adam’s Apple” + Larry Young – “Mother Ship” + Andrew Hill – “Passing Ships” + Hank Mobley – “Thinking Of Home”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 20 Dezembro 2003

Jackie McLean e Wayne Shorter, em duas das suas obras-chave, destacam-se do mais recente pacote de remasterizações da série Rudy van Gelder. Os colecionadores da Blue Note não vão ter mãos a medir.


Liberdade de comer a maçã

Bud Powell
The Scene Changes
8 | 10

Jackie McLean
Let Freedom Ring
9 | 10

Lee Morgan
Search For The New Land
8 | 10

Sam Rivers
Fuchsia Swing Song
7 | 10

Joe Henderson
Mode For Joe
8 | 10

Wayne Shorter
Adam’s Apple
9 | 10

Larry Young
Mother Ship
8 | 10

Andrew Hill
Passing Ships
7 | 10

Hank Mobley
Thinking Of Home
7 | 10

Todos Blue Note, distri. EMI-VC


Sabe a manjar e não sai caro escutar as preciosidades que a Blue Note vem colocando periodicamente no mercado em remasterizações de 24-bit com a chancela “The
Rudy Van Gelder Edition”, incluindo as novas “Connoisseur CD Séries”. Na mais recente fornada encontramos os nomes de Bud Powell, Jackie McLean, Lee Morgan, Sam Rivers, Joe Henderson, Wayne Shorter, Larry Young, Andrew Hill e Hank Mobley. Qualquer deles com o nome inscrito em letras gordas na grande enciclopédia do jazz. Depois do “quem”, vejamos o “quê”. Por ordem cronológica.
28 de Dezembro de 1958. Bud Powell, uma das forças vivas do piano “bop”. Em “The Scene Changes” em trio com Paul Chambers (contrabaixo) e Art Taylor (bateria). Powell habitou desde cedo o lado negro do “be bop”, acometido por problemas físicos e mentais que moldaram a sua música em intervalos estranhos, tons menores e solos aos quais alguém chamou um “empilhamento de caixas” de modo incongruente. “Un poco loco”, título revelador incluído no primeiro volume de “The Amazing Bud Powell” (gravações compreendidas entre 1949 e 1951), “génio” ou ambas as coisas, Bud Powell recria em “The Scene Changes” os tempos rápidos, fragmentados em nódulos harmónicos de onde é possível extrair inesgotável alimento. Entre o mambo e o enigma, Powell bopou como um louco, fazendo os cenários girar interminavelmente nas nossas cabeças.
19 de Março de 1962. Sob a influência de Ornette Coleman, Jackie McLean relança em “Let Freedom Ring” a linguagem do “bop” e do “hard bop” na direção de uma expressividade mais livre, rasgada pelas inovações modais que Miles Davis patenteara três anos antes no manifesto “Kind of Blue”. O sax alto liberta-se, aliando a rugosidade tímbrica e uma energia entusiasmante às permissividades do “free” e a modulações pertencentes já ao emergente jazzrock. A longa abertura “Melody for melonae” é um portento onde o fogo e a água (jorrando em cascata do piano de Walter Davis Jr.), a abstracção e a imaginação se combinam na criação de um clássico. “My life has been sweet and sour, bittersweet, and I’m interpreting my experience. I’m a sugar-free saxophonist”, disse de si próprio o saxofonista que neste disco se faz acompanhar ainda por Herbie Lewis (contrabaixo) e Billy Higgins (bateria). Para o comprovar, basta escutar o licor e o grito amargo que se desprendem de “I’ll keep loving you”.
15 de Fevereiro de 1964. Lee Morgan, autor da obra-prima “The Sidewinder”, gravaria no ano seguinte outro disco magistral, “Search for the New Land”, como líder de uma formidável formação composta por Wayne Shorter (sax tenor), Grant Green (guitarra), Herbie Hancock (piano, Reggie Workman (contrabaixo) e Billy Higgins (bateria). Também neste caso os 13 minutos do título-tema que abre o álbum funcionam como formulário de um disco marcado por uma faceta dançável, advinda do “blues”, a par da imaginação e criatividade proporcionadas por Shorter e Hancock, ambos em picos de forma (o saxofonista gravaria neste ano “Juju” e “Speak no Evil” enquanto para o teclista 1964 seria o ano do monumental “Maiden Voyage”). Para o trompetista, porém, esta busca de novas terras soaria como um dos derradeiros ecos de uma música que daí para a frente se esgotaria num sólido suporte de “blowing sessions”, às quais faltaria, porém, a nitidez do enfoque deste disco e de “The Sidewinder”.
11 de Dezembro de 1964. “Fuchsia Swing Song” constitui a primeira gravação enquanto líder de Sam Rivers, um dos grandes saxofones tenores do “free jazz”, mas nesta gravação dependendo ainda das métricas swingantes do “hard bop”. Torrente imparável de ideias, todavia invariavelmente formatadas na disciplina do “blues” (“Downstairs blues upstairs”) e da tradição. Atento às inovações de Rollins, Coltrane, Dolphy e Coleman, bem como aos percursos de Ayler e Shepp, Rivers permite-se rasgar os compassos, entrando e saindo, estendendo-os em modulações circulares, como em “Cyclic episode”, ou solilóquios de pura interiorização, como “Luminous monolith”. Jaki Byard (piano), Ron Carter (contrabaixo) e Tony Williams (bateria), são os seus parceiros de luxo mas não ainda aqueles que permitiriam ao saxofonista libertar todo o seu génio.
27 Janeiro de 1966. Joe Henderson, tenorista de sonoridade redonda e “comestível” (como Rollins e Coltrane, embora sem a amplitude anímica destes, o que não o impede de meter ambos no bolso no extraordinário “Caribbean fire dance”) recruta Lee Morgan, Curtis Fullwer (trombone), Bobby Hutcherson (vibrafone), Cedar Walton (piano), Ron Carter (contrabaixo) e Joe Chambers (bateria) para fazer “Mode for Joe”. A instrumentação diversificada permite uma riqueza de arranjos e cores que Henderson aproveita, como em “Black”, para juntar a complexidade da composição à liberdade da improvisação. Depois, já se sabe, qualquer disco que tenha a participação de Hutcherson jamais corre o risco de ser recompensado na avaliação com um défice de estrelas.
2 de Fevereiro de 1966. Outro disco indispensável. “Adam’s Apple”, de Wayne Shorter. Com Herbie Hancock, Reggie Workman e Joe Chambers. Aos primeiros acordes de piano de Hancock, o coração dispara numa dança irresistível. Logo a seguir, o tenor entra e acerta o passo e… nada a fazer… quem quiser assistir a uma demonstração prática do que é o swing só tem que ter ouvidos e deixar-se arrastar pelo balanço. Hancock e Shorter são, aliás, almas gémeas, e da sua colaboração irrompe invariavelmente magia. Seja nos tempos rápidos, seja numa balada como “802 blues (drinkin’ and drivin’)”, diálogo muito perto da perfeição. Voltam a ser o tandem perfeito na latinidade de “El gaucho”. Ah, claro, e é neste disco que se encontra “Footprints”, um dos “standards” dos anos 60 que marcaram o som e a atitude do jazz de fusão que a década de 70 consagraria.
7 de Fevereiro de 1969. Menos “lounge” que Jimmy Smith, menos “funky” que Charles Earland, Larry Young é um organista assolado por uma espiritualidade acentuada (a infl uência de Coltrane e McCoy Tyner, tem destes efeitos), autor de “Unity”, gravado quatro anos antes deste “Mother Ship” (com Lee Morgan, Herbert Morgan, no sax tenor, e Eddie Gladden, na bateria). Construída em verticalidade (ouça-se um solo de Smith e outro de Young, para se perceber a diferença de orientação e construção…) “Mother Ship” lança na estratosfera hinos e orações a divindades pagãs, em templos onde a arquitetura é por vezes, como em “Visions”, banhada pela sombra do “dark magus” Miles Davis.
7 de Novembro de 1969. Dois trompetes, trombone, “french horn”, tuba, clarinet baixo, “english horn”, saxofones, flauta. Woody Shaw, Julian Priester, Howard Johnson, Joe Farrell, estão presentes em “Passing Ships” repletos de sopros em banda de nove elementos sob a liderança do pianista Andrew Hill. O título-tema é elucidativo do barroquismo dos arranjos e a entrada de “Plantation bag” poderia fazer parte de um álbum dos Soft Machine. Para quem aprecie desbravar florestas e deparar com o inesperado a cada canto, embarque num destes “Passing Ships” e desfrute da riqueza das paisagens. O próprio Hill se deixa deslumbrar baixando o piano ao nível das sombras. Ocasionalmente, a gravação deixa entender o trabalho de remontagem a que as fitas originais foram sujeitas.
31 de Julho de 1970. Entrada nos anos 70 com o Jazz Messenger e ex-sideman, uma década antes, de Miles Davis, Hank Mobley, tenorista incontornável do “hard bop”. Mas é Woody Shaw quem começa por se destacar na trompete na “suite” cortada em três segmentos que abre o álbum. Cedar Walton, no piano, é a outra peça-chave deste trabalho onde a competência dos músicos é inquestionável, mas ao qual falta a chispa das grandes obras. Como é “Soul Station”, deste mesmo Hank Mobley, aqui caseiro e acomodado em demasia.

Wayne Shorter Quartet – “Wayne Shorter Em Luta Com O Piano” (concertos / festivais / jazz)

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terça-feira, 15 Julho 2003


Wayne Shorter em luta com o piano

Wayne Shorter Quartet
ESTORIL Auditório do Parque Palmela, às 21h30
Lotação esgotada


Sábado, em mais um concerto do festival Estoril Jazz/Jazz num Dia de Verão, Wayne Shorter e o seu quarteto tiveram o tempo do seu lado, mas o grande jazz nem por isso. O auditório ao ar livre do Parque de Palmela, no Estoril, estava à pinha, esgotando por completo a lotação, algo que, segundo a organização, não acontecia desde o mítico concerto de Count Basie neste mesmo festival. A chuva ameaçou, ameaçou, mas conteve-se. O mesmo aconteceu com o quarteto. Ameaçou com grandes feitos, mas acabou por quedar-se por um jazz eclético e sofisticado, alimentado por longas improvisações e reconhecida competência, mas longe de se lançar à conquista daqueles momentos únicos que fazem a história dos grandes concertos.
Shorter rolou com força no saxofone tenor, explorando timbres e respirações, mas travou-se de razões com o soprano – aquele que lhe granjeou merecida fama – passando largos minutos, a meio de um tema, a procurar o ajustamento certo da palheta, experimentando e voltando a experimentar a afinação, enquanto os outros três músicos se entretinham a soltar metros de música de fundo, à espera que o seu líder se decidisse a fornecer as coordenadas. Nos momentos, porém, em que a música se libertou do preciosismo técnico, o saxofonista mostrou todas suas capacidades, ora em “stacattos” que parecia implorar pela loucura (que não veio…), ora desenrolando dilúvios de notas alinhadas com a elegância de uma dança.
Danilo Perez mostrou ser um pianista fora do vulgar. Harmonicamente dotado, embora sem rasgos de virtuosismo, mostrou preferência por fraseados classizantes, outras vezes encostando-se ao exotismo “world” proporcionado pela sua ascendência (nasceu no Panamá), ocasionalmente monkiano, foi ainda, surpreendentemente e decerto que por acaso, progrocker dos quatro costados, ao repetir, numa quase citação, as notas de um dos movimentos de “Tarkus”, dos Emerson, Lake and Palmer (!).
John Patitucci é o típico baixista jazzrock. De uma concisão extrema, usou e abusou das vibrações da corda solta, mantendo-se quase sempre nos tempos rápidos e em boa sintonia com a rítmica fornecida por Brian Blade, na bateria, operário razoavelmente imaginativo na forma como acentuou e ornamentou os tempos fracos.
Isento, à justa, do tormento da chuva, o público aplaudiu de forma civilizada (raramente o fez a premiar este ou aquele solo) e pediu um “encore”, provavelmente a pensar já na forma como, já na próxima sexta-feira, receberá outra figura lendária do jazz contemporâneo, o contrabaixista Dave Holland, a liderar uma “big band”, no CCB, em Lisboa, no que será o concerto de encerramento desta edição número 22 do Estoril Jazz/Jazz num Dia de Verão.

Wayne Shorter – “Wayne Shorter Segue As Pegadas Da Alegria” (jazz num dia de verão / concertos/ festivais)

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sábado, 12 Julho 2003


Wayne Shorter segue as pegadas da alegria

JAZZ NUM DIA DE VERÃO

Wayne Shorter, “hardbopper” nos Jazz Messengers, pioneiro da música de fusão com Miles Davis e nos Weather Report, atua hoje no Estoril. Com a marca de álbuns como “Footprints Live!” e do novo “Alegria”


Wayne Shorter no saxofone tenor, em 1991, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa


Prestes a completar 70 anos, Wayne Shorter é um daqueles saxofonistas cuja sonoridade, feita de múltiplos sabores, apetece mastigar. Quem quiser, pode fazê-lo hoje mesmo, no concerto que encerra mais um módulo do festival Estoril Jazz/Jazz num Dia de Verão.
Wayne Shorter tocará no Estoril saxofones tenor e soprano, a liderar um quarteto formado por Danilo Perez (piano), John Patitucci (contrabaixo) e Brian Blade (bateria). Grande música em perspetiva. Jazz puro prazer do ato de tocar e de criar.
Equilibrado entre a tradição do “bop” e a improvisação mais livre, Wayne Shorter evoluiu do fraseado longo, no limite da obsessão, característico de John Coltrane, para modulações mais “redondas”, de acordo com uma sensibilidade que, tendo passado e marcado indelevelmente o “jazzrock” e a música de fusão, através dos Weather Report (provavelmente o grupo que melhor assimilou e transformou as heterodoxias arremessadas pelo Miles Davis elétrico), soube contornar a inércia e o cliché.
No ano passado, e ultrapassadas algumas vicissitudes que, inclusive, obrigaram a uma paragem de uma década numa carreira brilhante, a edição de “Footprints Live!” (depois disso já gravou “Alegria”), nomeado para um Grammy na categoria de “melhor álbum de jazz instrumental”, repôs o seu nome no lugar a que tem direito: dos mestres.
Embora seja sobretudo conhecido pela sua participação nos Weather Report, grupo com o qual gravou, nos anos 70, obras seminais da música de fusão como “I Sing the Body Electric”, “Sweetnighter” e “Mysterious Traveller”, a par dos mais comerciais “Black market”, “Heavy Weather”, “Mr. Gone” e “Night Passage”, Shorter desempenhara já um papel fulcral na ortodoxia do jazz.
Depois de ensaios prévios ao lado do pianista “hard” Horace Silver, frequentou duas das escolas que mais alunos diplomados com distinção forneceu ao jazz moderno: os Jazz Messengers, de Art Blakey (tocou nos clássicos “Mosaic” e “Free for all”), oficina oficial do “hard bop”, e a máquina de Miles Davis, com quem partilhou os louros de álbuns quintessenciais na obra deste trompetista como “E.S.P.”, “Miles Smiles”, “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, tendo, inclusive, composto temas que viriam a tornar-se “standards”, tais como “Footprints” e “Nefertiti”.
No decorrer de uma das décadas mais produtivas da sua carreira, os anos 60, já a solo, assinou trabalhos que se tornariam referência para as gerações vindouras: “Juju”, “Speak no Evil”, “The Soothsayer” e “Adam’s Apple”, entre outros, indiciadores da direção que a sua música viria a tomar na década seguinte, com os Weather Report (que deram um espantoso concerto dado em Portugal por este grupo na década de 80, no pavilhão da FIL, em Lisboa). Com eles, e ao lado de “fusionistas” de classe incontestável como Joe Zawinul, Miroslav Vitous, Airto Moreira, Tony Williams, Peter Erskine e Mino Cenelu, desenvolveu um estilo e fraseado particulares, nomeadamente no saxofone soprano, por vezes adaptado a “gadgets” eletrónicos ou prolongando-se no Lyricon, instrumento de sopro inteiramente eletrónico que pode ser manipulado através de tecnologia MIDI.
O público e a crítica, seduzidos pela simbiose entre o jazz e o rock, rendeu-se a Wayne Shorter e a revista “Downbeat” distinguiu-o ao longo de 15 anos consecutivos como melhor saxofonista soprano.
Paralelamente aos Weather Report, Shorter integrou os V.S.O.P., superbanda dirigida por Herbie Hancock (espécie de parente espiritual seu e igualmente um dos gurus do jazzrock) onde pontificavam Freddie Hubbard, Eddie Henderson, Julian Priester, Bennie Maupin, Ron Carter e Tony Williams.
Finalmente, o rock, de tanto conviver com o jazz, pedindo-lhe conselhos mas também tentando enriquecê-lo através de um processo de polinização, atraiu Wayne Shorter para o estúdio para gravar com Joni Mitchell e os Steely Dan, o mesmo acontecendo com o brasileiro Milton Nascimento e o cantor italiano Pino Danielle.
“Footprints Live!”, primeiro álbum ao vivo da sua discografia, repôs as coisas no lugar certo, devolvendo o saxofonista aos capítulos nobres da Grande História do Jazz. Nem “in”, nem “out of the tradition”, mas inserido num lugar próprio, onde a música nasce sem fronteiras, com as cores vivas do mundo que a cada instante nasce e se renova.
Em “Alegria”, lançado já este ano, a música de Wayne Shorter estende-se a um tradicional céltico, a uma obra do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, inspirada em Bach, e a um tema de música popular espanhola, procurando satisfazer a necessidade, diz, de prosseguir “um processo de aprendizagem continua” que lhe permita “libertar-se” dos lugares-comuns de uma linguagem estereotipada, ao mesmo tempo que se propõe “expressar a eternidade nas suas composições”.

Wayne Shorter Quartet
ESTORIL Auditório do Parque Palmela
Às 21h30. Bilhetes de 15 a 20 euros