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sábado, 1 Março 2003
Três álbuns que refletem a tendência mais “folky” da editora de Manfred Eicher: poesia por um bardo, tango ambiental e uma voz grega sensual. Abertura a outras músicas que nem sempre é sinal de sucesso.
ECM uma editora de jazz?
Robin Williamson
Skirting the River Road
5 | 10
Dino Saluzzi
Responsorium
6 | 10
Savina Yannatou
Terra Nostra
8 | 10
Todos ECM, distri. Dargil
Claro que o título é uma pequena provocação a uma das editoras que mais tem feito pelo jazz contemporâneo nas últimas décadas. Mas, mesmo sem levar em conta as “new series” dedicadas a obras de carácter erudito que vão do neoclassicismo à música antiga, encontram-se espalhados por este selo discos que só com um esforço de boa vontade se podem considerar dentro da área do jazz, bastando pensar nas discografias de Steve Tibbetts, Stephan Micus, Shankar, Lask ou “Rosensfole”, de Jan Garbarek com a cantora Agnes Buen Garnas. Manfred Eischer tem, pois, um ouvido na folk. Umas vezes acerta. Outras nem por isso….
É um pouco o que se passa com o segundo álbum para a editora de Robin Williamson, bardo, harpista/multinstrumentista e músico fundador de uma das bandas seminais dos anos 60, os Incredible String Band (ISB). Acontece que a sua inclusão na ECM se tem revelado um tremendo erro de “casting”. Williamson, fosse nos ISB, nos posteriores Merry Band ou nos seus trabalhos a solo, revelou-se sempre como uma personalidade incatalogável e algo errática cuja música e voz, demasiado idiossincráticas, são avessas a produções “integracionistas”, como são, regra geral, as da ECM.
“Skirting the River Road” reúne uma série de composições de Williamson para poemas de William Blake, Walt Whitman e Henry Vaughan, mas as vocalizações “instáveis” e as declamações, a execução tipo folk de Williamson, na harpa e nos “whistles”, em contraste com o “approach” jazzístico de Mat Maneri (violino e viola) e Paul Dunmall (dos Mujician, em saxofones, clarinete, gaita-de-foles, ocarina, etc.) não combinam, o que resulta numa música sem centro nem orientação. “Here to burn” é uma típica canção dos ISB que ganha com a presença de outro dos músicos presentes, Ale Möller. Este sabe-se que é homem da folk, que à sua conta toca aqui mandola, alaúde, saltério, “shawm”, clarim, flautas várias e vibrafone. Mas como encarar a declamação “hippie” de Williamson sobre as “anomalias” free de Dunmall no saxofone ou integrar outra das típicas vocalizações do cantor (“Abstinence sows sand”), que dir-se-ia arrancada do álbum “Myrrh” (estreia a solo de Williamson), em que os saxofones de Dunmall e os arcos de Maneri parecem ter sido gravados numa sessão diferente? Algo não liga nesta fusão entre mundos por enquanto demasiado afastados entre si, por maior empenho que todos tenham posto no projeto.
Já Dino Saluzzi é um velho “habitué” da ECM, familiarizada com o seu tango sofisticado para quem o jazz é pretexto para treinar o “bandoneon”, afinado num ambientalismo “cool” que se encaixa bem na filosofia da editora. Em “Responsorium” o argentino tem a companhia de Palle Danielsson, no contrabaixo, e de José Maria Saluzzi, na guitarra acústica, incorrendo em discretas improvisações sobre motivos tanguísticos, como fazia Piazzola com outro fogo e outro fôlego. Tem nostalgia, distância, um pouco de saudade e solos, de fazer parar e prestar redobrada atenção, de Danielsson. Mas é como diz o outro: jazz e “bandoneon” casam tão bem como Satie e harmónica, ou Wagner e ferrinhos. Para Saluzzi, a música sai do seu coração. Infelizmente não há meio de entrar no nosso…
Sem peneiras nem disfarces, a cantora grega Savina Yannatou, com o seu grupo Primavera en Salonica, estreia-se na ECM com “Terra Nostra”, gravado ao vivo em Atenas. Neste caso não há que enganar: “Terra Nostra” surge na sequência dos anteriores trabalhos do grupo e constitui, desde já, obra imprescindível para os apreciadores de folk. Savina é uma rainha (quem a viu e ouviu ao vivo, no CCB em Lisboa e em Santa Maria da Feira, não a esquecerá tão cedo) a cantar, um anjo de sensualidade arrebatadora como só a música grega mais profunda pode ter, sobretudo quando servida por uma intérprete de exceção que junta uma técnica incomparável (o corpo não se move um milímetro, enquanto a voz se roça e faz amor com quem a ouve) a uma expressividade luminosa. Os Primavera en Salonica ora se remetem ao acompanhamento etéreo da voz, ora explodem na complexidade dos compassos dos Balcãs. “Yiallah tnem rime” é folkpop com Savina a cantar como se fizesse parte dos Bothy Band ou dos Dervish. Polifonias “a capella”, com a voz da segunda cantora, Lamia Bedioui (“Schubho Lhaw Qolo” faz pensar em Sussan Deyhim, em “Desert Equations”), são outros dos atrativos de um álbum que percorre vários imaginários do Sul com a agilidade, a sensibilidade e o amor de quem nele mergulhou o corpo e a alma. Um disco apaixonante para se ouvir como um namoro.