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Ravi Coltrane – “Mad 6” + Roy Haynes – “Love Letters” + Clark Terry & Max Roach – “Friendship” + Eddie Henderson – “So What”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 31 Maio 2003


Sessões novas à moda antiga

RAVI COLTRANE
Mad 6
8 | 10

ROY HAYNES
Love Letters
7 | 10

CLARK TERRY & MAX ROACH
Friendship
7 | 10

EDDIE HENDERSON
So What
7 | 10

Todos ed. Eighty-Eights, distri. Sony Music


O jazz tradicional, servido por grandes músicos, encontrou guarida na nova editora Eighty-Eights. Mas é raro viajar-se para longe em velocidade de cruzeiro.

A Eighty-Eights é uma editora nova feita à moda antiga. Criada pelo veterano produtor japonês Yasohachi (“88”, em japonês) Itoh, segue o velho costume de convidar músicos topo de gama para sessões em tempo real no estúdio, sem “overdubs” nem truques técnicos de qualquer espécie. Neste caso, todas efetuadas nos estúdios Avatar, em Nova Iorque, na Primavera do ano passado.
Ravi Coltrane, filho de John Coltrane, foi o primeiro convidado. Sem a loucura santa do pai, mas já com sólidas bases nos saxofones soprano e tenor, Ravi apoia-se em “Mad 6” em dois mestres: o pai, que recria em “26-2” e “Fifth house”, e Thelonious Monk, em “’Round midnight” e “Ask me now”, mais um tema de Mingus, “Self portrait in three colors” e outro de Jimmy Heath, “Ginger bread boy”, ficando o resto das composições à sua responsabilidade. A doçura e a agilidade do sax soprano impõem-se no tema de Heath, algures entre o “hard bop” e o “jazz rock”, servido pelo funk do baixo de James Genus e as marcações rítmicas do piano de George Colligan e a bateria de Andy Milne. Mas é nas composições assinadas em nome próprio que Ravi se mostra magnífico, como em “Avignon”, de “riffing” portentoso, ou “The mad 6”, onde o seu tenor consegue aproximar-se do universo de geometrias esotéricas de Coltrane sénior, sendo, ao invés, de um lirismo enternecedor no tema de Mingus.
“Hard bop”, “swing”, ritmos afro e latinos, com material de Irving Berlin, Mongo Santamaria, Horace Silver, Victor Young, Johnny Mercer e Benny Goodman, foram cair, em “Love Letters”, nas mãos imaculadas de um coletivo liderado pelo lendário baterista, Roy Haynes (tocou com Lester Young, Charlie Parker, Bud Powell, Miles Davis, Stan Getz, Thelonious Monk, Chick Corea, Art Pepper, John Coltrane e Eric Dolphy), do qual fazem parte Kenny Barron (piano), Dave Holland (baixo), Christian McBride (baixo), Joshua Redman (saxofone tenor) e John Scofield (guitarra). Redman abre o livro em “Qué pasa” e Barron folheia-o em “How deep is the ocean”, num álbum que para alguns ouvidos poderá depender em demasia do imutável e, por vezes, entorpecente, timbre da guitarra de John Scofield. Escusado será dizer que as interpretações, o bom gosto e o nível técnico estão acima de qualquer suspeita. Faltará, porém, a estas “Cartas de Amor” a chispa do arrebatamento e da paixão. Até porque, como disse alguém, “o amor platónico, como todos os tónicos, é bom para abrir o apetite”.
Clark Terry e Max Roach encontraram-se para um louvor à amizade, em “Friendship”. São homens com convicções fortes mas de conversas diferentes. Enquanto o trompetista sorri satisfeito deleitando-se com o traço e a clareza das melodias, executadas com timbre de veludo e fraseado contido (mas que em “When I fall in love” encontram curiosos ângulos de expressão num solo absoluto que é um dos melhores momentos do disco), Roach, “o baterista” — trave-mestra de um quadrado formado por Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Miles Davis e Charles Mingus —, faz questão em mostrar que a sua bateria continua tão criativa e inquieta como sempre. Em “Friendship”, são deliciosas as incursões das baquetas na parte mais tensa das peles, arrancando-lhes sonoridades metalizadas ou então fazendo-as vibrar em refrações que cortam o ar, ora tapando ora destapando as cintilações dos címbalos. Entre os temas que não foram escritos pelos dois líderes, encontram-se “Let’s cool one”, de Monk, “I remember Clifford”, de Benny Golson, “When I fall in love”, de Victor Young e “The nearness of you”, de Hoagy Carmichael. Don Friedman, companheiro por diversas ocasiões de Jimmy Giuffre, Herbie Mann, Ornette Coleman e Charles Lloyd, faz do piano o ponto de equilíbrio harmónico entre a trompete e a bateria. Jazz para saborear em segurança.
Talvez seja esta, de resto, a pecha principal deste novo catálogo que agora se apresenta. Não há quem se atreva a espreitar para lá do conhecido, arrisque tropeçar para se levantar mais à frente num chão selvagem, faça questão, já não dizemos em surpreender mas, pelo menos, em sobressaltar. Assim volta a acontecer no quarto objeto da coleção, “So What”, do trompetista Eddie Henderson, também ele seguro a “standards” como “’Round midnight” e “On green dolphin street” (de Ned Washington/Bronislaw Kaper) e “Someday my prince will come (Frank Churchill/Larry Morey), bem como “Well, you needn’t”, de Monk e “So what” e “All blues”, de Miles Davis. Mas será talvez nos dois temas de Wayne Shorter, “Prince of darkness” e “Footprints”, que a trompete de Henderson encontra mais motivos de gozo, potenciado pelos intricados jogos rítmicos de David Kikoski (piano), Ed Howard (baixo) e Victor Lewis (bateria, instrumento a cargo de Billy Hart na outra metade do disco). E se o trompetista se consagra na música de um saxofonista, o mesmo se pode dizer do tenorista Bob Berg em relação à música de um trompetista, Miles Davis, em “So what”, onde demonstra ser o músico de ideias mais avançadas de todo o coletivo.
Lançada em velocidade de cruzeiro, a Eighty-Eights deixa para já um testemunho vigoroso de que o jazz tradicional permanece como esteio necessário e porto de abrigo em alturas de maior desorientação. Lá mais para a frente se ficará a saber se haverá lugar para quem se disponha a ir mais longe e seja capaz de criar dentro do selo uma dinâmica alternativa.