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sábado, 18 Outubro 2003
Ayler conviveu com os espíritos com a naturalidade de uma criança. Nele, o “free” é a vibração que arde e cura.
O santo pecador
ALBERT AYLER
Music is the Healing Force of the Universe
Verve, distri. Universal
8 | 10
ALBERT AYLER
The Copenhagen Tapes
Ayler, distri. Multidisc
8 | 10
BURTON GREENE QUARTET
Burton Greene Quartet
ESP, distri. Trem Azul
7 | 10
THE VANGUARD JAZZ ORCHESTRA
Can I Persuade you?
Planet Arts, distri. Trem Azul
7 | 10
ENRICO RAVA
Full of Life
Camjazz, distri. Multidisc
8 | 10
STAN GETZ
Bossas and Ballads: the Lost Sessions
Verve, distri. Universal
8 | 10
Em jazz, quando calha veicular a mensagem do misticismo, nada melhor do que pôr uma voz feminina a apregoar a boa nova. Sun Ra, por exemplo, tinha a sua própria profetisa. Albert Ayler encontrou a sua em Mary Maria (o nome não poderia ser mais apropriado), para anunciar que “vida é música”, “música é amor”, etc., ou que a unidade espiritual é um bem necessário. Máximas que fazem todo o sentido. Mas não cá em baixo. Não para os que se deixam morrer, adormecer ou desistir. Um raio. E tudo se ilumina. A “música do universo” e a “música que cura” dispensam as palavras para exercerem todo o seu poder, quando o saxofone tenor de Albert Ayler entra em diálogo com as forças do cosmos, sejam elas do céu ou do inferno. “Music is the Healing Force of the Universe”, agora disponível em capa de cartão, réplica do vinil original, é música para se subir por ela. Ou descer, caso se escorregue. “Free jazz” em gravação de 1960, com Bobby Few ao piano, Henry Vestine na guitarra, Bill Folwell no baixo elétrico, Stafford James no contrabaixo, e Muhammad Ali na bateria. Ayler esvazia-se, usando o grito para atingir o silêncio, Few lança uma chuva de pedras, Ali enrola os despojos em folhas de metal. As melodias não passam de esboços logo abandonados para se partir em viagem de descoberta. Viagens do som (no início de “Masonic inborn, part 1” Ayler toca uma gaita-de-foles escocesa, descartando-a de quaisquer conotações “folk”) e do espírito, sinónimo de fogo. Em “A man is like a tree”, sente-se a religiosidade que preside à combustão de cada nota e se “Oh! Love of life” é redundante no seu propósito, a voz infantile de “Island harvest”, bem como o júbilo dionisíaco do tenor, são a confirmação de que se Ayler tocou na Verdade é porque esta apenas se dá a conhecer, nua, aos puros de coração. Isto é, às crianças. Nota à parte: será que Laurie Anderson ouviu Mary Maria a cantar neste tema, como inspiração para um dos temas de “Big Science”? Ouçam e adivinhem qual! A cura termina com um fabuloso “blues”, em conversa de labaredas a três entre o saxofone, a guitarra e o piano. Além dele, a paz.
Ainda Ayler, desta feita numa gravação ao vivo de 1964, no Club Montmartre de Copenhaga. Mais “Spirits”, “Vibrations” e “Saints” mas aqui na companhia de verdadeiros santos e espíritos irmãos, nas pessoas de Gary Peacock (contrabaixo) e Sunny Murray (bateria), ambos presentes, três meses antes, na obra-prima “Spiritual Unity”. Quem sentir difi culdades em penetrar na mina (Ayler despedaçava a rocha para fazer sobressair o diamante) poderá meditar nas palavras do crítico Daniel Caux, a propósito de Murray e dos jogos da apanhada e das escondidas, entre o tempo e o “swing”: “o ‘swing’ for a de um tempo regular poderia parecer uma contradição mas vale a pena ter em conta que os aspetos rítmicos do jazz nunca foram uma questão de imposição de uma grelha metronómica mas, pelo contrário, de o tornar ‘vivo’ através de uma ligação dialéctica entre tensão e relaxamento, rigor e liberdade”. Ritmo passaria a ser então, mais do que um vector matemático, uma “vibração”. Ayler e os seus companheiros desfazem o compass e as notas. Ou, como se diz nas notas de capa, arrancam a pintura da parede. O que se esconde por detrás são os mistérios da alegria e da dor.
Livres de estilo
Continuam a resistir ao vendaval de liberdade (nalguns casos, libertinagem…) que assolou o jazz nos anos 60? Complementem a dupla sessão com Ayler com a não menos radical estalada de “free” desferida em 1966 pelo pianist Burton Greene, na companhia, entre outros, de Marion Brown (saxofone alto) e Henry Grimes (contrabaixo). Greene fundou, com Steve Lacy, o Free Form Improvisation Ensemble, tocou com Sam Rivers, Gato Barbieri, Paul Bley, John Tchicai, William Breker e Han Bennink, e derivou, na década seguinte, para experiências que passaram pela reavaliação de Bartok e da música medieval. Mas nos “sixties” tratava-se de demolir o já feito para construir o novo, fosse este o que fosse. “Clusters” infindáveis, fraccionamentos, deflagrações, avalanches, explorações nas cordas do piano. Com tempo para uma caçada a criaturas mais subtis no ritual da selva impressionista, “Ballade II”. Onde Greene desce às camadas mais baixas do espectro sonoro, agitando o magma até fazer saltar demónios.
Limpar a lama e o medo é o que importa agora. Entremos, pois, de cara e espírito lavados, no campo aberto da Vanguard Jazz Orchestra, formação criada em 1966 por Thad Jones e Mel Lewis, atualmente composta por quatro secções lideradas, respetivamente, por Earl Gardner (trompetes), John Mosca (trombones), Dick Oatts (saxofones) e Jim McNeely (piano, secção rítmica). Além de temas de Jimmy Giuffre, Bob Mintzer, Wayne Shorter e Duke Ellington, “Can’t Persuade You?” apresenta um par de temas de Juliane Beth Cavadini (1956-1988), a quem o disco é dedicado, cujos traços musicais primam por uma melancholia não muito diferente da que faz sonhar Carla Bley. Quanto à orquestra, é uma âncora a segurar a vanguarda. Esta, obviamente, avança muito à sua frente.
Sigamos, pois, até Itália para encontramos o trompetista Enrico Rava (por sinal, parceiro de Carla no monumental “Escalator Over the Hill”), numa gravação do ano passado, “Full of Life”, em quarteto com Javier Girotto (saxes soprano e barítono), Fabrizio Sferra (bateria) e Ares Tavolazzi (contrabaixo), músico de que alguns se recordarão da banda de jazz-rock Area. “Full of Life” vive da descontração, dos “midtempos” e de baladas que fazem justiça ao que a compositora e orquestradora Maria Schneider declarou sobre a generalidade dos “jazzmen” italianos: “Tocam com despreocupação [‘abandon’].” Ao ouvi-los em “The Surrey with the fringe on top” parece, de facto, que o jazz é uma coisa fácil, brincadeira de crianças, tão natural como respirar. Quanto à trompete de Rava, respira como uns pulmões impregnados pela fragrância de pinheiros. E como swingam, em “Miss Mg”, cheios de vida! E “abandon”…
Para descontrair ainda mais, uma prenda para os incondicionais do “cool” e de um dos seus expoentes, Stan Getz, mestre do “abandon” e da elegância. “Bossa and Ballads: the Lost Sessions” (com Kenny Barron, no piano, George Mraz, no contrabaixo, e Victor Lewis, na bateria) reúne material de sessões de 1989 destinadas à estreia do saxofonista para a editora A&M, porém sem edição até à data. Poder-se-ia falar, a propósito de Getz, no triunfo do estilo e do tratamento. É verdade mas não é toda a verdade. Há nos seus trinados e na profundidade sedosa do timbre do seu tenor uma ternura triste e uma saudade que são, afinal, idêntico apanágio da bossa nova. Apenas faltará a estas “sessões perdidas” o sangue e o sal proporcionados pela voz de João Gilberto que, na mítica gravação de 1963, deixara o saxofonista marcado para sempre.
NOTA: Por lapso, há duas semanas, ficou por referir que os álbuns “Hot Fives & Sevens” de Louis Armstrong têm distribuição Sony Music.