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Cocteau Twins – “Heaven or Las Vegas”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 3 OUTUBRO 1990 >> Pop Rock


O MUNDO IMPONDERÁVEL

COCTEAU TWINS
Heaven or Las Vegas
LP e CD, 4AD, distri. Anónima



Título enigmático como sempre acontece quando a dupla Elizabeth Fraser/Robin Guthrie se decide a passar para o vinil, encantamentos e fantasmas. Ao lado dos seus principais rivais, Dead Can Dance, os Cocteau Twins integram a elite mais atmosférica da editora de Ivo Russell. Voando através de diferentes estratos da atmosfera, os dois grupos perseguem o sétimo céu. Se em “Aion” os Dead Can Dance recuaram decididamente em direção às brumas e invocações do passado, folgando e fulgindo em épocas medievais e renascentistas, os Twins flutuam ainda e sempre num território indefinido, limbo inebriante, a que se acede por áleas difusas, estados de alma particulares, propícios ao fruir das fragrâncias vocais de Elizabeth Fraser. Em relação a álbuns anteriores os céus possuem agora fundações mais sólidas. A voz ancora-se em estruturas rítmicas definidas, na forma de canções, em vez dos habituais esboços de contornos mutáveis. Na aparência, pode parecer não ser o método ideal para o espraiar de todas as potencialidades do canto. A audição de “Heaven or Las Vegas” prova o contrário: num contexto formal declaradamente pop (em que quase se adivinham refrões e o dialeto secreto da cantora se abre, por vezes, a termos linguisticamente perceptíveis…), os arabescos vocais de Liz Fraser ganham uma maior concentração, como se, ao invés de longas e abstratas divagações, se procurasse agora, em cada tema, canalizar um ambiente preciso, evocar um espectro particular, sugerir um determinado perfume. Como as imagens de um quadro ao qual se acrescentou uma moldura. Temas como “Iceblink Luck” (editado em single) ou “Heaven or Las Vegas” (com a voz de Fraser quase agressiva, lembrando Chryssie Hynde nas entoações), são dos poucos imediatamente identificáveis com esquemas musicais de anteriores trabalhos. Nos restantes assiste-se ao germinar de novas estratégias, com Robin Guthrie e Simon Raymonde, concedendo papel determinante ao baixo e aos sintetizadores na criação dos ambientes sobre os quais sonha e bruxuleia a voz da fada. “Pitch the Baby” e “I hear you Ring” são intrincados labirintos vocais, diálogos a duas e três vozes, (no segundo Liz veste a pele de Kate Bush e entretém-se a brincar na casa dos espelhos), teias onde as emoções se enredam, estradas que vão dar a lado nenhum, paisagens, miragens percorridas em estado de encantamento – como num sonho. Diáfana e poderosa, a música dos Cocteau Twins gira eternamente, renovando a cada rotação, o colorido, o ritmo e a velocidade. O essencial permanece imutável: um universo à parte na atual música popular, de fronteiras bem delimitadas e paradoxalmente difíceis de localizar – “esfera cujo centro está em toda a parte e a calote em lado nenhum” – segundo a asserção alquimista. ***

His Name Is Alive – “Livonia”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 15 AGOSTO 1990 >> Videodiscos >> Pop


HIS NAME IS ALIVE
Livonia
LP e CD, 4AD, Distri. Anónima



Cemitérios. Catedrais em ruínas. Florestas escuras. Estátuas funerárias. Fantasmas de amantes que morreram por paixão. Flores em campos, de preferência violetas e lilases. Sinos e vento, Outono, no funeral, ao entardecer. As cores e o frio marmóreos, nas lajes, em inscrições douradas. A morte, tema querido dos decadentes da 4AD.
Vozes femininas, sempre, de raparigas de rosto branco e misterioso. Liz Fraser, Lisa Gerrard, agora também Karin Oliver e Angie Carozzo. Acompanhadas pelas guitarras, baixo e “samples” de Warren Defever. Passado o tempo da violência, com Birthday Party e Matt Johnson, o êxito dos Cocteau Twins e This Mortal Coil obrigou Ivo Watts-Russell a repensar toda a estratégia e imagem da editora. Era o início de um som e de uma atitude que fizeram escola. Apologia de um classicismo funéreo e gelado, que pretende elevar-se acima das frivolidades do mundo profano.
Os His Name is Alive perseguem a sombra (até na capa) dos This Mortal Coil. Os mesmos ambientes, ora opressivos ora etéreos. Fantasmagorias experimentais alternando com a pureza do canto das meninas. Percebe-se que o disco foi pensado até ao mínimo pormenor. Produção típica da casa, realçando as tonalidades diáfanas das vozes e fazendo a eletrónica ecoar nos claustros das igrejas onde, à noite, dançam os cadáveres, celebrando estranhos rituais.
Só que, às vezes, apetece saborear outros fascínios. Nem só o folclore da morte é digno de ser cantado. Tanta tristeza, tantos mistérios ocultos em títulos como “Fossil”, “Reincarnation”, “Caroline’s Supposed Demons” ou “How Ghosts Affect Relationships”, também cansam. Sobretudo quando não abundam verdadeiras canções nem a inspiração, presente, por exemplo, no novo Dead Can Dance, ou a coerência dos This Mortal Coil. Em “Livonia”, o dourado dos enfeites esconde o vazio de ideias. Falta o golpe de asa que distingue as grandes obras das simplesmente bonitinhas. O nome está vivo, mas o quadro é uma natureza morta. Atraente, se confundirmos o brilho com a luz.

Dead Can Dance – “Aion”

PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 25 JULHO 1990 >> Videodiscos >> Pop


NOITE ANTIQUÍSSIMA

DEAD CAN DANCE
Aion
LP e CD, 4AD



Música antiga. Sons eternos. Longe, muito longe das convulsões epiléticas do rock, da pop e do restante entulho dos tops. Emoção concebida de silêncios e pequenas eternidades partilhadas. Música do Silêncio. O álbum anterior, “The Serpent’s Egg”, deixava adivinhar a fuga em direção ao tempo das catedrais, mas ainda não o definitivo adeus às notas do presente. Os Dead Can Dance habitam uma realidade anterior, refratando cores astrais, reinventando instantes e mitos ancestrais. Brendan Perry e Lisa Gerrard dão corpo a uma arte sem corpo material. As formas do seu sonho recuam à Idade Média, a trovadores, a castelos de reis suspirando porque as princesas suas filhas são presas do dragão. “Aion” foi gravado na Irlanda, terra das verdes lendas e da magia. Afasta-se deliberadamente do ritmo frenético dos dias atuais e citadinos. Renega sem apelo a cultura pop que se podia esperar estivesse na sua origem. Alicerça-se num passado revisto à luz da sensibilidade de dois jovens do século 20, para quem fazer música é a constante reatualização de uma dádiva de amor.
A voz de Lisa Gerrard não encontra paralelo no resto do mundo das músicas para consumo das massas. Nem a sua maneira de cantar. A não ser que franqueemos as portas do outro mundo, da música antiga dos mestres Clemencic, Paniagua, Kecskes e das cantigas de amor e amigo de Figueras ou Esther Lamandier. “The Arrival and the Reunion”, “The End of Words”, “Wilderness” são magníficos exemplos da arte de vencer, pelo canto, a gravidade. Seria cântico gregoriano se não fosse interdito ao sexo que, como Duras literalmente define, “ocupa totalmente o espaço”, ao contrário do “forte” que “por ele passa e o atravessa” – o trespassa. Lisa Gerrard ocupa todo o espaço, abraçando com a alma inteira a essência dos primórdios do cantar. “The Song of the Sybil” (referenciada na capa como tradicional catalã do século 16, mas cuja origem remonta à Roma antiga, sucessivamente recuperada pelos monges ao longo de toda a Idade Média e interpretada em disco por Monserrat Figueras, acompanhada pelos Hesperyon XX) demonstra até que ponto a voz feminina pode abarcar as vastidões. Longa e solene reverberação vibrando na noite antiquíssima. E “Radharc”, mais mediterrânica e solar, de sugestões árabes, tão próximas também do berço medievo.
Ao homem só foi concedido o privilégio de dizer as palavras de Luis de Góngora em “Fortune Presents Gifts not According to the Book” e ofuscar a luz divina em “Black Sun”, dos poucos temas em que a eletrónica nos recorda que vivemos no século da técnica e das grandes realizações inúteis. Porque no resto repicam os sinos de igreja e gemem as gaitas-de-foles em “As the Bell Rings the Maypole Spins” ou rangem profundamente as sanfonas em “Radharc”. “The Garden of Zephirus” é um interlúdio ambiental cantado pelos pássaros, pelo vento e pelos pequenos seres da Natureza. Sem palavras. Como “Saltarello”, dança italiana de autor anónimo do século 14, de fazer saltar bruxas, fadas, virgens pálidas e douradas e o ouvinte frente às colunas, se despreconceituado e capaz de compreender que o tempo, como Parménides dizia, é uma mera ilusão. A capa é belíssima – um pormenor do fresco de Hyeronimus Bosch, “The Garden of Delights” e “Aion”, a mais bela e inebriante flor desse jardim.