Arquivo da Categoria: Entrevistas 1994

Fredo Mergner – Entrevista

Pop Rock

16 de Novembro de 1994
EM PÚBLICO

FREDO MERGNER *


fredo mergner

O seu primeiro disco a solo, “À Sombra da Figueira”, soa por vezes bastante nostálgico. É uma pessoa triste?
A tristeza é sem dúvida um elemento presente. Não sou propriamente uma pessoa triste mas sim sentimental. Mas essa tristeza, ou essa nostalgia, que diz sentir ao ouvir o disco, isso para mim já significa que consegui transmitir esses sentimentos.

Essa nostalgia tem a ver com o facto de ter nascido na Hungria, ou seja, de viver numa pátria que não é a sua?
Vim para Portugal em 1977, tinha 24 anos. Fiz a minha evolução em Portugal. As minhas influências, recebi-as de Portugal. Considero-me um cidadão português. Falo português… Mas é difícil ser-se português em Portugal… Se estivesse na América, passados dois anos, podia logo dizer “I’m american” e toda a gente acharia isso normal. Em Portugal é diferente, é um país antigo, cheio de tradições, com raízes culturais fortes. A adaptação é muito mais difícil do que num país muito novo como os Estados Unidos.

Que razões o levaram a deixar a Hungria?
Deixei primeiro a Hungria para ir viver para a Alemanha, só depois é que vim para cá. Tinha acabado o curso de Antropologia e não tinha nada planeado. Cheguei a Portugal e fui ficando por cá. Tive uns amigos portugueses que me perguntaram se não queria ficar a viver em Lisboa. Fiquei.

É verdade que antes da guitarra estudou harpa?
Sim. Aliás nasci numa família que tem raízes musicais fortes. Todas as pessoas que fazem parte dela têm jeito para a música. O meu primeiro instrumento, aos cinco anos, foi o acordeão de botões. Aos de comecei a tocar trompete numa banda filarmónica e aos dezasseis comecei a estudar harpa, que foi aliás o único instrumento em que tive aulas a sério. Claro que toquei sempre um bocado de guitarra, uns acordes. Fazia parte de uma banda de liceu, no fim dos anos 60. Mas só passei a dedicar-me á guitarra a partir dos 18 anos. Mas como já tinha um “background” musical foi fácil, ao fim de seis meses já tocava peças difíceis.

São perceptíveis neste disco certos fraseados na guitarra que lembram a harpa, Andreas Vollenweider por exemplo…
Certamente estão lá coisas da harpa, sobretudo nos harpejos e em certos acentos musicais.

“À Sombra da Figueira” pretende ser um disco de música portuguesa? É que por vezes é notória a distância, um certo desfasamento de sensibilidades…
É uma fusão. As influências vêm da música portuguesa e da música sul-americana, brasileira por exemplo, e da música espanhola. “Almas perfumadas”, por exemplo, é uma fusão entre um fadinho e o chorinho. Tive uma fase em que estudei mesmo o chorinho. Tenho uma grande colecção de partituras de chorinho. Por outro lado, a utilização da guitarra portuguesa é diferente. Uso a guitarra portuguesa de uma maneira diferente do fado, onde a viola é quase um escravo. De certo modo inverto os respectivos papéis. A música espanhola vem também daqui, do ambiente que se vive em Portugal.

Como definiria esse ambiente?
Um pergunta um bocado difícil. Como já disse, fiz a minha evolução aqui, como autodidacta. Nunca ninguém me mostrou nada. Nu fundo, tudo o que sei e faço em música foi conseguido por mim sozinho, sem auxílio, deixando actuar sobre mim os ambientes. Ambientes que os próprios portugueses, por dificuldades várias, económicas e outras, não sabem aproveitar.

Concorda que o disco se pode inscrever na categoria do “muzak”, música de fundo sem grandes pretensões?
Não é um disco de música instrumental vulgar. Normalmente, a função da música instrumental é servir de música de fundo. Penso que o meu álbum exige uma audição um bocado mais atenta. As pessoas costumam comentar e pôr algumas reticências por ser um disco sem voz. Costumo dizer que é a guitarra que canta. É um instrumento que, bem tocado, tem as possibilidades expressivas de uma voz. Pode-se bater nela ou ser suave e fazer-lhe festinhas. Consoante o caso, assim sai o som.

E uma forma de resistência aos Resistência?
É importante dizer que sou compositor, além de executante. Nos Resistência, o meu trabalho a minha contribuição é importante para o som do grupo. Mas isso não impede que, enquanto compositor, não sinta necessidade de pôr as minhas composições cá fora. Já tenho uma obra escrita bastante volumosa, os nove temas do disco foram escritos para agradar o mais possível às pessoas. Não quis que fosse um disco supervirtuoso, mas sim um disco instrumental que agrade a muita gente e venda minimamente, mantendo um mínimo de virtuosismo e bom gosto. Não pretendi fazer um disco para ficar na prateleira, em que só uma elite reconhece a qualidade.

De onde veio a ideia de tocar ao vivo nos locais onde tem dado entrevistas de promoção? (Por ocasião desta entrevista, Fredo Mergner interpretou em guitarra portuguesa três temas de “À Sombra da Figueira” na redacção do PÚBLICO, acompanhado por Pedro de Faro, na guitarra.)
Em certa medida, é “marketing”. Mas o importante é, tendo um disco instrumental cá fora, conseguir construir a minha imagem como solista, como guitarrista. Procuro que as pessoas me vejam com o instrumento na mão, que me associem ao instrumento. E ao mesmo tempo mostrar que consigo tocar em qualquer lado e em qualquer situação. Sou um tocador de guitarra. De resto, estou a preparar uma banda para tocar comigo ao vivo. Com o Pedro de Faro, dois percussionistas, um baixista e um teclista.

* guitarrista dos Resistência, acabou de lançar a sua estreia a solo, “À Sombra da Figueira”



Venâncio Castro – Entrevista

Pop Rock

2 de Novembro de 1994
EM PÚBLICO

VENÂNCIO CASTRO *


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Foi um dos fundadores do grupo António Mafra, já lá vão 40 anos…
Tinha nessa altura 16 anos. Embora todos no grupo sejamos amigos de infância, tivemos direcções de vida diferentes. Foi essa amizade que nos uniu. No meu caso, costumo dizer que vim de Marte.

Pode repetir?
Como dizem que as pessoas são postas na Terra pelos extraterrestres… Esta ideia veio por eu não estar de acordo com os homens da Terra. Isso confunde muitas pessoas, e até alguns ouvintes. Quando digo isto, é porque não estou satisfeito com o que o homem faz na Terra. Digo que sou de Marte porque me coloco à parte dos homens, embora vivendo com eles e não estando de acordo com a sociedade actual. Esta é tão má, tão má, mesmo em Portugal há tanta máfia, mesmo na música, e nas políticas, nos futebóis, nas telenovelas… É tudo preparado para pôr as mentalidades das pessoas cá na Terra.
Se andarmos uns anos para trás e falarmos no Salazar e na ditadura, vemos que hoje estamos precisamente na mesma. Só há diferenças políticas. E mais estradas, mais prédios, mas tudo isto apenas para enganar o homem. Se fosse extraterrestre, até porque é uma coisa em que acredito – tenho algumas provas disso, visuais, testemunhas, mas não só, leio há muitos anos revistas sobre a vida nos outros planetas –, definia tudo numa palavra: acho estranho que nós, na Terra, este bocadinho em relação a toda uma galáxia que o homem conhece perfeitamente, façamos tanta asneira.
Em relação aos extraterrestres, eu vi, com a minha família, no Algarve, passar determinadas coisas que não eram focos de luz, nem helicópteros, nem meteoritos. Nem sequer estávamos alcoolizados, nada disso. Vimos, eu, a minha mulher e alguns vizinhos, três bolas grandes perto de nós, por volta das quatro da manhã. O tal homem continua a enganar. Por causa, neste caso, das religiões, porque o Nosso Senhor está lá em cima e, daqui para cima, não pode haver mais nada.

Como articula essas posições com a vivência no grupo?
Respeito as pessoas todas, e muito mais as que pertencem ao grupo. Mas logicamente, como faço parte dele há muito tempo, estou em desacordo na maior parte das coisas que lá se fazem. Isso chama-se “marketing”. Mas há coisas que se estão a modificar, e posso dizer que fui eu, e só eu, a pessoa que lutou por isso durante anos. Gravámos um novo disco há seis meses, “Não Pára”, e nestes seis meses o grupo modificou-se mais do que em 35 anos de existência. Tudo da minha responsabilidade, no aspecto de concretização de ideias. O tal “marketing”.

Mas não se dará o caso de as pessoas gostarem do Conjunto de António Mafra precisamente por este nunca se modificar?
Acho que não. Falamos em voltar outra vez ao princípio. Lá está o eu não estar de acordo com o homem e falar nos extraterrestres – a minha defesa. Eu ataco os homens, mas como não os posso atacar porque eles são muito mais fortes do que eu, mentalmente, e até na prática, eu, e as pessoas que estão mais ligadas a mim, a família e alguns amigos, em particular os cinco do grupo, de vem em quando entramos em luta, para o aperfeiçoamento daquilo. A minha mentalidade não está de modo algum de acordo com a deles. Musicalmente, não gosto da música do Conjunto António Mafra.

Sendo assim, como é que está há tantos anos no grupo?
Primeiro, porque não me ocupou tempo. Há as tais diferenças entre mim e os restantes elementos. Andámos juntos desde a infância, da primária até à quarta-classe. Depois fui-me embora. Passeei. Eles continuaram juntos. Neste momento tenho dez passaportes cheios. Conheço o mundo inteiro e qualquer um deles, do conjunto, não passou de Vigo. Eu conheci novas culturas, muita gente, gastei muitos milhares de contos, eles passaram de Vigo por acaso, porque fomos com o conjunto aos Estados Unidos e a França. Quando digo que não gosto da música do grupo, é porque gosto muito doutra. Viajo todos os anos ao festival de jazz de Haia, em Amesterdão, porque se reúnem oitocentos ou novecentos músicos do melhor que há no mundo inteiro. De jazz e, principalmente, de blues.

Como gostaria então que fosse a música do grupo?
Assim como é! Se tivesse que mudar, ia tocar até com o Quim Barreiros, embora comercialmente não goste da música dele. Já disse que acho a sua música porca e que ele é badalhoco, ou algo parecido. Por a Maria ir cheiras o bacalhau lá dentro e outro tipo de coisas que não interessa estar agora aqui a referir. O poema dessa música é feita pelo Quim Barreiros com uma intenção, e só é possível porque a cultura musical do nosso povo é pobre. Porque senão ele não existia.
A mudança do grupo, com os mesmos músicos que estão lá, não é possível de forma nenhuma. Porque nenhum deles toca outros instrumentos para fazer um tipo de música, por exemplo, como o do Pedro Abrunhosa e os Bandemónio. Alguém que já conheço há muitos anos e com quem me dou muito bem, que lutou mas que sempre tocou música de jazz e de repente pegou numa cassete e foi para Lisboa, onde houve alguém que disse: “Eh pá, vamos experimentar esta porcaria!” Hoje é o que se sabe. Está em primeiro lugar no top, recebeu dois discos de platina e anda agora com uma barraca insuflável. E tem um “manager” fabuloso, que faz “marketing”. Se o Pedro precisasse de percussão – eu toco bombo e bateria no conjunto –, eu ia imediatamente para lá tocar bateria. Abandonava logo o Conjunto de António Mafra. Não abandonava a amizade, abandonava o conjunto. Porque é que não o fiz durante estes 40 anos? Porque sou sensível, embora seja Leão e arranque para tudo com muita força.

Quer dizer que o grupo precisa mesmo de si ou que sem si acabava?
Já disse e volto a repetir: 50 por cento do Conjunto António Mafra sou eu. Se ele é brejeiro (“cachopa se queres ser bonita, arrebita, arrebita, arrebita”, isto é brejeiro), embora sem ter palavrões – o português é mais para aquela senhora da televisão que agora está em Sintra, a Edite Estrela –, a mim o deve. Como já disse, continuo no grupo pela amizade que me liga sobretudo aos seus elementos mais velhos.

Mas essa amizade decerto não acabava se saísse do grupo?
Não, mas… Já agora, tenho que dizer: estive para sair do grupo precisamente há seis ou sete meses. Não o fiz porque o grupo nunca prendeu a minha vida. Houve espectáculos aos quais não fui porque não troquei a minha vida – as tais idas para o estrangeiro, as férias com a mulher – pelo grupo. Os meus colegas nunca fizeram férias nem foram para lado nenhum, por causa dos espectáculos. Tínhamos litígios por causa disso. Mas se eu não fosse, como toco bombo, ou ferrinhos, não tinha tanta importância como aconteceria se faltasse o Manuel Barros, o vocalista, ou o Campanhã, neste caso o falecido António Mafra. Embora eu seja o mais alegre em palco. Como fiz e adoro teatro… por exemplo, nas “Tocatas de Fafe do Morgado”, vou para cima do palco e danço, pincho, meto a maçaneta debaixo das pernas quando digo que arrebita.

A sua alma?
Isso, exactamente. Julgo que a alma de um corpo… Aí é que a gente não chega, o que é uma chatice. Mas julgo que a alma é mais do que 50 por cento. O resto é isto que se vai desfazendo e, quando for para debaixo da terra, desaparece. Em cima de um palco, ou a fazer qualquer outra coisa, se não houver alma, perde-se um bocado.

Deduz-se das suas palavras que é um místico?
Se não me ligar durante um segundo ao grupo, sou realmente místico. Tenho tido um tipo de vida bastante místico. Ao percorrer o mundo, vi que a África e, sobretudo, a Índia são muito místicas. A gente fica a olhar para aquilo e não são as cobras-capelo, nem aquelas coisas que nos atiram a pedir dinheiro – isso é a religião, a política e a pobreza – que impressionam, mas qualquer coisa no ar a que eu chamo misticismo.

O que se passa com a sua casa de espectáculos?
Chama-se “Taberna 2000”. Tem vinte anos e actualmente foi mandada fechar pelo senhor governador civil, porque houve uns senhores de cima que disseram que fazia barulho. Quando se provou que isso era mentira, foi preciso meter o caso em tribunal. Uma grande parte dos músicos e políticos do país passaram nesta casa durante vinte anos. É uma casa com características especiais, com a tal paz, talvez a tal mística, e ao fim de vinte anos apareceram dois senhores que não me conhece de lado nenhum e que, por qualquer interesse pessoal, mandaram dizer ao senhor governador civil que eu faia muito barulho. Vinte anos depois é que comecei a fazer barulho… Agora tenho que tirar atestado de pobre, queixar-me ao ministro da Administração Interna… É só isto que ando a fazer. Meter outra vez papéis no Governo Civil a pedir para abrir a porta. Está a ver como tenho que ser místico! [Risos] Senão, punha uma bomba e isto levantava voo!

* percussionista do Conjunto de António Mafra

aqui



Margarida Antunes – Entrevista

Pop Rock

28 de Setembro de 1994
EM PÚBLICO

MARGARIDA ANTUNES *


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O que distingue o canto tradicional na voz das mulheres do campo desse mesmo canto na voz de mulheres da cidade, como é o caso dos Cramol?
São seguramente diferentes. Quando se está a cantar a chamada canção popular ou tradicional no lugar próprio, a música tem que ver directamente com o trabalho, as folias, o contacto com a terra, com uma certa religiosidade fruto desse contacto directo com a natureza. Há (ou havia, porque até isto se vai perdendo) uma autenticidade. Cantar é para estas mulheres (e homens) algo tão natural como andar ou falar. Através de reprodução das técnicas tradicionais?
Sim. Tivemos a sorte de ter tido pessoas que nos ajudaram nesse aspecto, que aprenderam e nos transmitiram os seus conhecimentos. O Cramol raramente vai aos próprios locais ouvir, embora houvesse algumas de nós que fizeram isso. Uma parte do nosso trabalho semanal é precisamente a procura de um determinado som.

A prática do canto tradicional reflecte-se de algum modo na sua vivência do quotidiano citadino?
Tive a sorte de poder viajar pelo país e de contactar com as pessoas. Isso teve seguramente uma influência incrível na minha forma de estar, de ver as coisas. Uma transformação interior. Não é um escape. Num um apêndice. Foi algo que interiorizei.

Tendo a cidade e o campo os seus ritmos e vivências próprios e contraditórios entre si, a união dessas duas perspectivas e práticas opostas no seio de grupo implica, de algum modo, conflitos ou angústia?
É um facto. Inclusive ao aprender, por exemplo, uma certa técnica que leva a obter um determinado tom ou som, há sempre a tendência de nos virarmos mais para o aspecto técnico da questão. O momento em que conseguimos alhear-nos desse aspecto e, de facto, sentir aquilo que se está a cantar é que é importante e único.

Como é que o público do campo, da província, reage aos vossos espectáculos?
Bem. As pessoas sobretudo revêem-se em nós. Vêm ter connosco e dizem: “Costumava cantar isso” ou “Na minha terra, cantava-se assim”. E ficam contentes por ouvir cantar essas canções de maneira diferente.

No Cramol, existem 22 mulheres a cantar. Que tipo de dificuldades concretas surgem no grupo?
Ainda por cima, é um grupo extremamente heterogéneo – na postura, em tudo. É evidente que isso traz dificuldades. Algumas delas, se calhar, ridículas. Coisas tão simples como a maneira de nos apresentarmos em público, por exemplo, não são nada, nada fáceis. A única coisa – única entre aspas – que une estas pessoas é o facto de gostarem deste tipo de música.

Qual a importância desse aspecto, da maneira como se apresentam em público?
É importante para o público e para nós. Se calhar, as mulheres do campo não têm, ou têm menos, essa preocupação. A forma como nos costumamos vestir depende do sítio onde vamos. O importante é a relação que se cria com as pessoas, nesses sítios. Há vezes em que não temos preocupação nenhuma, cada uma vai como bem lhe aprouver. Noutras, achamos que deve haver um elemento comum, uma cor, de terra por exemplo. É algo que tem dado algumas chatices e discussões. Mas acabamos sempre por chegar a consensos.

Sem qualquer ajuda exterior?
Temos um director artístico que, neste momento, é o Luís Pedro Faro. Está connosco há três anos. É ele que trabalha todo o aspecto técnico. E nos transmite as suas experiências fruto das recolhas que fez. É uma colaboração que funciona nos dois sentidos, uma vez que, às vezes, somos nós a propor uma determinada direcção. Há um aspecto importante que distingue o Cramol dos outros coros. É que, no nosso caso, não há um maestro à frente a dirigir. No nosso caso, apresentamo-nos em palco sem nenhum maestro. Cantamos sozinhas. O facto de não haver ninguém a dirigir implica uma determinada responsabilidade e cumplicidade. Quando se está, por exemplo, a cantar um canto polifónico, essa cumplicidade tem mesmo que existir. Outra pessoa que foi extremamente importante para a forma de estar do grupo é o Rui Vaz [que faz parte, actualmente, do Grupo de Gaiteiros de Lisboa], que esteve connosco durante quase onze anos.

Como é constituído o vosso reportório?
Essencialmente coisas portuguesas, embora também alguns temas da Galiza; polifonias das Beiras, Douro Litoral e Minho. É engraçado que o canto polifónico, à excepção do Alentejo, seja no resto do país, só é interpretado por mulheres. Também com a excepção de alguns cânticos rituais entoados por homens nas Beiras Baixa e Litoral. Mas não contamos só polifonias. Por exemplo, fizemos um espectáculo de comemoração do nosso décimo aniversário em que, na primeira parte, cantámos canções de embalar. Além disso, experimentamos combinações com um número maior ou menos de vozes.

Amélia Muge costuma referir que o estilo e orientação de um cantor devem fazer parte de um processo mais lato onde, em última análise, os meios se identificam com os resultados que se pretende atingir. No fundo, a interiorização de um processo coerente que deverá determinar as suas próprias formas de expressão. Quer comentar?
Concordo. Há grupos a fazerem a chamada música popular, ou de raiz tradicional que vão pela facilidade, sem procurarem essa interiorização. É, aliás, uma questão que vem na linha do que eu dizia há pouco, relativa à interiorização. Eu faço isso. É uma sensação indescritível quando se consegue e, ao mesmo tempo, nos apercebemos de que não estamos sozinhas. No meio de 22 pessoas, é-se um pauzinho; mas, quando se sente que todas as outras pessoas estão igualmente a interiorizar com toda a força, é de arrepiar.

Nunca teve vontade de experimentar o canto num contexto diferente?
Não, nunca senti. Durante muito tempo, não sei se por timidez, por achar que não tinha voz, aquelas coisas, não gostava de cantar sozinha. Pensava sempre que estar juntamente com não sei quantas mais me diluía, não sobressaía nem ninguém me notava. Até que, pela primeira vez, cantei sozinha, num grupo chamado Bago de Milho. A princípio, até nos ensaios tinha vergonha de cantar. Mas, uma vez, tive mesmo que cantar uma canção sozinha e, de repente, ultrapassado o nervosismo, aquele medo, uma coisa terrível, senti uma sensação óptima. Estar perante uma plateia, a cantar em frente de um número enorme de pessoas. Voltei a repetir a experiência no Cramol mas não tenho isso como objectivo. E voltava a repetir se me convidassem para outro grupo e eu gostasse do projecto. E se fosse capaz [risos].

* Vocalista do Cramol, grupo coral com década e meia de existência, composta por 22 mulheres com uma paixão comum: a música vocal tradicional portuguesa.