Arquivo da Categoria: Críticas 1994

Yole – “À la Source”

Pop Rock

19 de Outubro de 1994
WORLD

A ELEGÂNCIA ACIMA DE TUDO

YOLE
À la Source

Several, distri. MC – Mundo da Canção


yole

Os Malicorne morreram, vivam os Yole. Em França, os Yole tornaram-se os herdeiros legítimos do grupo de Gabriel e Marie Yacoub. Ao contrário dos autores de “Almanach”, que trabalhavam sobre a tradição de todo o território francês, os Yole circunscrevem-se à região de Vendée, situada entre a Bretanha, a Aquitânia e o oceano Atlântico. O que aproxima, porém, os dois grupos é uma idêntica sensibilidade e atitude perante a música tradicional. Atitude que os Yole definem ao considerar a sua música “tradicional progressiva”, ou seja, ainda segundo as suas palavras, “música popular ao gosto da actualidade”. Na prática, isto significa uma música que mistura a ancestralidade e a modernidade. Algo que não é de modo algum novo, havendo disseminados pela Europa uma série de grupos aos quais esta categoria se poderia aplicar perfeitamente (bastando citar os melhores: La Ciapa Rusa, Perlinpinpin Folc, Archetype, Barabàn, Cock & Bull, Vasmalon, Lo Jai, Den Fule, Hedningarna…), mas que nos Yole se faz sentir numa elegância e requinte tipicamente franceses. Como nos Malicorne, a ênfase é posta nos arranjos, no cuidado com que são trabalhados os timbres e as diversas combinações instrumentais, com destaque para a presença da sanfona e dos sopros de Laurent Tixier e para o violino de Maxime Chevrier. Falta, para já, aos Yole uma voz masculina à altura da de Gabriel Yacoub – tarefa nada fácil de conseguir, diga-se de passagem –, embora as vocalizações de Tixier compensem uma ocasional aspereza com a emotividade. Em relação a vozes femininas, a da convidada Christine Helya é uma maravilha, só é pena ser requisitada tão poucas vezes. Em comparação com o anterior “L’ Amour d’Eloїse”, “À la Source” é mais variado, apresentando constantes mudanças de ritmo e instrumentação. Mas acontece um pouco o mesmo que aconteceu com os Ad Vielle que Pourra, na passagem do primeiro para o segundo disco: perdeu-se uma certa unidade, dispersa por experiências que, no caso dos Yole, são na generalidade bem sucedidas, como nas sugestões “cajun” de “C’ est une jeune fille”. Talvez “À la Source” não entusiasme tanto como o álbum anterior e exija um maior número de audições para se fazer entender e criar uma relação de intimidade com o auditor. Mas o bom-gosto irrepreensível ao longo de todo o disco e faixas como “La Trimbalerie”, onde a sensualidade da sanfona dá arrepios, “L’hiver/Léon Loizeau” ou o épico à maneira dos Malicorne, “Un soir”, garantem por si sós uma mão cheia de delícias. Os Yole abriram um rio entre a memória e o presente e semearam flores nas suas margens. (8)

Upalappu Srinivas – “Rama Sreerama”

Pop Rock

19 de Outubro de 1994
WORLD

Upalappu Srinivas
Rama Sreerama

Real World, distri. EMI-VC


us

O bandolim é um instrumento de origem italiana, inventado no século XIV e muito popular na cidade de Nápoles. Upalappu Srinivas aprendeu a tocá-lo aos seis anos de idade e cometeu o sacrilégio de o empregar na interpretação das tradicionais ragas indianas. A princípio apontaram-lhe o dedo em acusação. Mas o seu reconhecido virtuosismo e uma inspiração que os deuses apenas conferem aos mestres acabaram por deitar abaixo todas as barreiras.
Hoje Srinivas é um músico reconhecido na Índia e além-fronteiras, tendo participado em 1983 no festival de jazz de Berlim. Os bandolins que utiliza têm cinco cordas, ao contrário das habituais seis, de modo a permitirem a execução das típicas entoações (“gamakas”) da música carnática. São de facto excepcionais as aptidões de Srinivas. Ao ouvi-lo, torna-se irrelevante se o bandolim é ou não um instrumento apropriado para a música indiana. Nas suas mãos, não há dúvida que é.
As peças de “Rama Sreerama” são de índole religiosa, de louvor ou súplica a divindades como Ganesha, Rama, Krishna, Sreerama e Murugan. Como em toda a música indiana, a audição deve processar-se segundo moldes diferentes dos ocidentais, sendo necessária uma adequação do ritmo interior de cada um à pulsação intrínseca da raga e, em simultâneo, ao ritmo particular do executante.
Conseguida esta “entrada”, a música, como por magia, “abre-se”, dando a revelar uma riqueza e complexidade que, do exterior, não são imediatamente perceptíveis. Quem for sensível a uma faixa com a aparente impenetrabilidade de “Saranambhava karuna” pode seguir em frente e mergulhar nos ciclos da eternidade, nos 29 minutos do título-tema. Com a garantia de sair deles num estado de consciência diferente. (8)



Milladoiro – “Iacobus Magnus (Suite Orquestral)”

Pop Rock

19 de Outubro de 1994
WORLD

ENTRE O GRANITO E AS ESTRELAS

MILLADOIRO
Iacobus Magnus (Suite Orquestral)

Discmedi, distri. Megamúsica

milladoiro

Como escreve Xoan Manuel Estévez no título da sua nota sobre o grupo, os Milladoiro são “algo mais que um grupo folk”. Depois do anterior “Galicia no Tempo”, os Milladoiro tiraram mais um dos véus que ocultam a Galiza profunda, de Rosalia, Casto Sampedro, Conqueiro e Ricardo Portela. Neles, o termo “classicismo” adquire o mesmo significado que tem para os Chieftains, na Irlanda, ou para Alan Stivell, na Bretanha, nos anos 70. Existe uma identificação absoluta entre estes músicos e as terras onde nasceram. No caso dos Milladoiro pode falar-se numa verdadeira peregrinação ao santuário que une passado, presente e futuro. “Iacobus Magnus” – suite orquestral gravada nos míticos estúdios “Abbey Road” com a English Chamber Orchestra e, numa das faixas, a Orquestra Sinfónica de Galicia – como “O Berro Seco”, “Galicia de Maeloc” ou “Galicia no Tempo” é uma viagem pelo interior das lendas e mistérios celtas e em particular pelo interior do especial receptáculo de vibrações mágicas que tem a forma da Galiza. “Iacobus Magnus” – inspirado num pentagrama mágico, labirinto de silêncio cujas linhas os Milladoiro preenchem com o sangue e as vozes da Galiza essencial, oculta – baliza um percurso que é exterior e interior, de granito, água, fogo e intuição. Um percurso ao qual os Milladoiro conseguiram arrancar o segredo dos sons. Entre um “Portico” orquestral e “No cabo da viaxe”, um caminho sinalizado pelos “milladoiro”, montes de pedra dispostos de maneira a indicar a direcção certa a seguir, até à conclusão da “obra”. Um “longo camiño branco”, tema belo de estarrecer, onde a sanfona, primeiro, uma harpa, depois, e as “uillean pipes” levam por terra e pelo ar um desejo de eternidade, algo que nos chama e pelo qual muitos de nós suspiramos, aprisionados numa ilusão de cimento e noutra, mais difícil de romper, fabricada pelo cérebro. “Onde vai aquele romeiro?”, pergunta uma flauta embalada por um órgão com voz de realejo. “Per loca maritima”, respondem a harpa, as cordas, as percussões e um “tin whistle”, num arranjo que lembra a fase boa de Mike Oldfield ou o “folk rock medieval” dos ingleses Gryphon. “No primeiro milladoiro”, as “gaitas” rompem finalmente a cantar, secundadas pela delicadeza da harpa (Rodrigo Romani, o harpista do grupo, assume grande parte do protagonismo neste disco) sobre um fundo orquestral. Segue-se novo capítulo, “A noite estrelecida”, no qual a orquestra acende as estrelas que iluminam o céu e guiam os peregrinos, culminando em “No cabo da viaxe”, etapa derradeira, primeiro numa transformação subtil de uma dança irlandesa, com sabor aos Planxty, por último numa explosão de fulgor, na despedida das “gaitas”, símbolo vivo da terra galega, pátria de Maeloc. Pátria dos Milladoiro. Uma viagem sem fim. (8)