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Nova Música Electrónica Portuguesa: Um Oásis No Deserto

03.11.2000
Nova Música Electrónica Portuguesa
Um Oásis No Deserto
A música electrónica tem sido uma paisagem desoladora, onde a vida escasseia. Mas no meio do deserto surgem, de quando em quando, oásis. É sobre eles que o PÚBLICO fala esta semana, em conversa com Vítor Joaquim, no balanço do festival EME 2000, e através da recensão de alguns álbuns representativos do género, por ilustres desconhecidos.

Nos últimos tempos algo mudou na música electrónica produzida em Portugal. Provam-no a edição, nalguns casos de autor, de diversos e interessantes CD apostados em dignificar a electrónica feita em Portugal e até, pasme-se, a organização de concertos protagonizados por músicos nacionais. É o caso do festival, ou dos encontros, Eme 2000 que recentemente teve lugar em Setúbal onde, entre outros, estiveram presentes Nuno Rebelo, Vítor Joaquim, Emídio Buchinho e Rodrigo Amado. Vítor Joaquim, de nome artístico Free Field, autor do projecto com este nome ao qual se deve a edição de “Tales from Chaos”, um dos marcos da música electrónica feita em Portugal, foi aliás um dos responsáveis pela organização do evento.
“Tales From Chaos” faz parte de um grupo selecto de discos que também inclui clássicos como “Mr Wollogallu”, de Nuno Canavarro e Carlos Maria Trindade, “Plux Quba”, de Nuno Canavarro, “Música de Baixa Fidelidade”, de Tozé Fereira, “Musiques de Scéne”, de Carlos Zíngaro, “Celsianices”, de Celso de Carvalho, “Part Human, Part Simpson”, de Discmen, “Evil Meatal”, dos Telectu, “M2” e “Azul Esmeralda” de Nuno Rebelo, “A Nova Portugalidade”, dos U-Nu, e Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzp!” do grupo com este nome, do qual será editado em breve um novo álbum. A estes nomes pode acrescentar-se os dos No Noise Reduction, Vítor Rua, Rafael Toral e Bernardo Devlin, entre outros.
Mas sob o solo lavrado pelos clássicos agitam-se novos miasmas e organismos vivos em fase de crescimento, ávidos de saírem para a luz do dia. É sobre alguns destes novos discos e projectos que falaremos neste artigo, ao mesmo tempo que convidámos Vítor Joaquim a fazer um balanço do Eme 2000. A electrónica já dá choque, em Portugal.

Eme 2000

O Eme 2000 dividiu-se em três sessões ao longo das quais a electrónica andou lado a lado com a música improvisada. Vítor Joaquim (VJ) explica como foi possível: “Após três meses de produção solitária, maioritariamente de telefone em punho e e-mails intermináveis (enquanto os amigos iam de férias e para a praia!), acabou por surgir um conjunto de apoios bastante interessante que viria a tornar viável a montagem dos encontros, enquanto se delineava simultaneamente uma equipa de pessoas entusiasmadas, que do primeiro ao último momento contribuiu com o seu melhor nas tarefas mais diversas que se possa imaginar: vender bilhetes, servir cafés, esticar alcatifas, carregar aparelhagem, esticar cabos, controlar entradas, etc.”.
Quanto ao critério de escolha dos artistas, a “ideia fundamental foi encontrar um grupo de músicos que pudesse proporcionar um conjunto suficientemente diversificado de abordagens em termos da génese do som – desde a electrónica acentuada até à exclusividade acústica -, assim como do próprio discurso interpretativo sem perder de vista, obviamente, o lado performativo de cada indivíduo na sua relação com o(s) instrumento(s)”. Não foi esquecida, “num plano paralelo de opções, uma perspectiva de ‘sedução’ na apresentação e progressão dos concertos, com toda a subjectividade que o termo pode implicar”.
O Eme 2000 pôde contar com o apoio de “13 entidades que se mostraram disponíveis para prestar apoio à sua realização, sendo que, de entre elas, cinco fizeram apoio financeiro directo, enquanto as restantes colaboraram em termos de permuta publicitária”. Uma crítica à autarquia do concelho que VJ culpa pelo “trabalho nulo ao longo dos anos” e acusa de não ter contribuído “com um único centavo” para a realização destes encontros.
Sobre o saldo final em termos de adesão de público e dos músicos, ou do ambiente, e dada a escala modesta destes encontros, Vítor Joaquim é peremptório: “Em termos de adesão de público foi verdadeiramente surpreendente. Não só pelo número global de espectadores como também pelo aumento na afluência, passando de aproximadamente 85 pessoas no primeiro dia para 100 no segundo, culminando em cerca de 120 no terceiro.”
VJ refere mesmo a existência de “sérios indicadores de um interesse progressivo pela área da improvisação e da experimentação, provando-se desta forma que, quando há trabalho e empenhamento por parte dos músicos e produtores, as coisas acontecem de facto”. “Ao que as pessoas reagem”, acrescenta.

Macacos E Apóstolos

Ainda em relação à Câmara Municipal de Setúbal, VJ não resiste a comentar que “está na fase de aprender a soletrar” e que “demorará ainda algum tempo até que, para além das palavras, as pessoas em causa saibam compreender os conceitos que elas abrigam ou invocam”. E cita Lichtenberg: “Tais obras são como espelhos; se um macaco olhar para dentro delas, nunca poderá ver um apóstolo”.
O Eme 2001 está na calha, com a hipótese de participação de músicos estrangeiros, embora a “primazia continue a pertencer aos portugueses”. Entretanto, “como forma de preencher o vazio existente entre duas edições, está em fase de implementação um programa de espectáculos que carece ainda de um suporte finaceiro regular por forma a poderem ser produzidos espectáculos não só na área da experimentação musical como da dança, perfomance, instalações, etc.”, diz VJ.
Vítor Joaquim prepara entretanto a edição de um novo álbum, que dará pelo nome de “La Strada is on fire” com o subtítulo “And we are all naked”, onde contará com participações de Vítor Coimbra, no baixo, Rodrigo Amado, no saxofone, e o inglês Martin Archer, em saxofone, assim como colaborações de Chris Bywater e Charlie Collins, na electrónica.

Novos Rumos
Code-N
Per:Form
Ed. de Autor
Nuno Correia é o cérebro dos Code-N. Entre temas compostos para um recital de poesia multimédia e para uma peça de teatro, “Per:Form” atravessa os territórios da electrónica ambiental, do dum ‘n’ bass, do breakbeat, do neo-industrialismo e da techno de corridas (“Mach One”), entrando em regiões menos exploradas do universo electro em temas como “Southwest”, “O Som dos Instrumentos” ou “Luzazul”. A manipulação digital assumida a cem por cento, com resultados por vezes surpreendentes.

Mola Dudle
Mobilia
Ed. de Autor
Nasceram em Tavira e arrumaram a mobília da casa segundo o design e a lógica alucinada de um louco. Nanu e Miguel Cabral, os “loucos”, asseguram a totalidade da produção sonora, usando para tal “tudo o que produz som que se pode encontrar em casa”. Colagens, electrónica desconstrutivista e dissecação de canções que não chegam a sê-lo, confluem num compartimento onde a desarrumação sonora é apenas aparente. A estética Recommended espreita, os desarranjos psicológicos de uns Biota, idem, mas quando o swing electrónico de um tema como “Allo…” funciona em pleno, são os melhores Negativland ou os actuais brincalhões da a.musik que deitam a cabeça de fora, enquanto em “Partypooper” enm Frank Zappa faria melhor. Mas os Mola Dudle devoraram todas as influências e, queira alguém “pegar” neles, poderão tornar-se num dos casos mais sérios e originais da nova música portuguesa.

Ras.Al.Ghul
Subharmonic Density Strucutures
Aquatica, distri. Symbiose
Terceiro trabalho desta banda formada por ex-elementos dos “industriais” Cranioclas, “Subharmonic Density Structures” limpou o som das antigas impurezas para se concentrar numa electrónica de cariz hipnótica e forte carga onírica em forma de mantras que comandam os movimentos do cérebro. Do transe psicadélico ao chill out, passando pelo techno ambiental, os Ras.Al.Ghul visitam as divisões vazias deixadas pelos Biosphere para tentarem chegar ao lado obscuro revolvido pelos Coil.

Vários
Ar Da Guarda
Ed. Câmara Municipal da Guarda
A julgar pelos 13 exemplos apresentados nesta colectânea, a Guarda apresenta-se na vanguarda das novas músicas nacionais. Entre os exercícios das guitarras “new age” de Rogério Pires a parasitária de Albrecht Loops, o neoclassicismo pianístico de Maria João Magno e de Hélia Fernandes, destacam-se as colaborações de Leonel Valbom e José Tavares, ambos discípulos do “sequenciador analógico” dos Heldon, Vítor Afonso, do projecto Kubik, com uma sequência acutilante de percussão e vozes de “contemporânea erudita”, sax zorniano e electrónica fraccionada (David Garland meets Holger Hiller meeets Laibach) e Miguel Prata Gomes, com um excelente pedaço de mistério em fita magnética na linha de Steve Moore/Jocelyn Robert. Anote-se ainda a proposta consistente de Gilberto Costa na área do jazz fusionista tendência “electrodowntown”, a portugalidade bizarra de um fado astral electrocutado por Carlos Barreto Xavier e o “jazz mesmo” que Maria João e Mário Laginha poderiam assinar se estivessem pedrados, de António Cavaleiro, com a voz de Joana Correia. Saudáveis e inovadores estes ares que sopram da Guarda.

Mola Dudle – Homens Da Casa

19.01.2001
Homens Da Casa

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Mobília. Os objectos do quotidiano. Entre o visionário e a patine retro, é o tempo de esculpir o mistério na casa – lugar de todos os encontros e experiências para os Mola Dudle, no seu álbum de estreia.

Um vive em Faro. O outro em Sintra. Conheceram-se em Lisboa e tocaram pela primeira vez juntos ao vivo no Bairro Alto. “Uma coisa experimental, sem ensaios, sem nada”. O telefone fazia, já então, parte dos seus utensílios de trabalho. “trocámos impressões”.
Mas na gravação de “Mobília”, álbum de estreia dos Mola Dudle (ver crítica no “Y” de 12/1), editado pela Ananana, Nanu e Miguel Cabral foram ainda mais longe. Uma das faixas, “300km” (a distância entre os respectivos locais de residência) foi totalmente composta por telefone. Nos restantes 24 temas o processo de composição resultou da troca de cassetes e CD por correio, em que cada um apresentava material pré-gravado para ser posteriormente tratado pelo outro.
“Criámos algumas regras, a primeira das quais foi a de cada um de nós restringir-se a apresentar um número certo de 12 temas, inacabados. A ideia era surpreender o outro”. Mais tarde, na casa de Nanu, em Sintra, encontraram-se para ver o que cada um “tinha espatifado”.
O resultado final é um dos mais originais álbuns de música, digamos electrónica, de que há memória em Portugal. Chama-se “mobília” e na sua feitura Miguel e Nanu utilizaram, além de instrumentos convencionais (teclados, guitarras, sampler, programações, banjo, flauta, bateria), objectos e fontes sonoras como panelas, água, janela, telefonias, televisão, atendedor de chamadas, bule, relógio de cuco, escova de dentes, garrafas de plástico, gira-discos, caldeira, lâminas, moinho de pimenta… Ainda gravações de campo recolhidas na cozinha e no Bairro Alto e a presença dos convidados Miguel Pereira (contrabaixo), Cristina Parreira, Fernanda Rodrigues, Filipa Sousa e Patrícia Tello (vozes).
Nanu e Miguel têm sensibilidades musicais diferentes. Nanu tem trabalhado no teatro e feito “música experimental” embora antes tenha “estado muito ligado ao rock alternativo dos anos 80, da 4AD e Rough Trade” e, nos anos 70, à música de Frank Zappa, Genesis, Gentle Giant – “com os quais cada vez me identifico mais, é curioso…”.
Miguel inclina-se mais para a construção e utilização de instrumentos artesanais e para a tecnologia. “Cresci a ouvir rock-lixo, tipo Iron Maiden, Faith No more”. Mas cedo o heavy-metal deixou de figurar nos meus hábitos, sendo substituído por John Zorn. “o lado experimental é a única coisa que temos em comum”, diz.
Compõem e gravam ambos em casa. Nanu com o programa Q-Base, sampler Akai e módulos Midi, além de fazer captação de exteriores. Miguel utiliza o computador “como um gravador”. Não usa Midi. Os dois trabalham também com programas “com quem mais ninguém trabalha, incluindo alguns ‘roubados’ na internet”.

Espaços
Um “affaire” doméstico. Arrumação de mobília em moldes inusitados. Colagens. De sensibilidades. De exteriores com interiores. Da vanguarda com o retro. As gravuras de móveis e electrodomésticos da contracapa de “Mobília” ostentam design antigo, quase barroco, metamorfose do funcional em objecto de arte.
Nanu chama a atenção para o facto de haver “ambiências sempre relacionadas com o espaço da casa”. Quer “espaços interiores, psicológicos, quer espaços interiores, quer espaços físicos”. E para a importância da dialéctica “contemporâneo” vs. “retro”.
“gostamos de música que não se pode datar muito bem e por isso vamos buscar referências um bocado fora de prazo para dar ao som um ar bolorento”, diz Miguel. Nanu alude por sua vez ao fascínio que desde sempre sentiu pela rádio, os meus aparelhos, “a má rádio”: “É curioso, quando ouço as coisas distorcidas dá-me a impressão que elas ganham a patine do tempo e um valor que as outras não têm. Só as coisas meio escondidas, meio alteradas é que são verdadeiramente novas e causam alguma surpresa. Por isso conservámos na música uma certa sujidade. Queremos manter o mistério”.
“E a distância”, acrescenta Miguel. “Casa” e “distância” são dois conceitos-chave que permitem entender a peculiar arrumação de “Mobília”. Numa casa há de tudo: “vivências, histórias, vidas, tempo, interiores…”. As palavras são como os “bibelots”. Sampladas ou em tempo real. “Aí já não havia regras”, diz Miguel. Ou, como Nanu contrapões, “existia a regra de ter sempre que trabalhar em casa”. Um dos temas, “Jefferies!”, ouve-se “como se estivéssemos a ler as legendas de um filme”. No caso, um trecho da “Janela Indiscreta” de Hitchcock. O tal mistério e suspense que os Mola Dudle pretendem conservar. Em “O postal” a letra foi mesmo tirada do cartão: “Acabo de receber o teu postal, muito estimando que continuem bem…”.
Os Mola Dudle estimam os objectos. E, como mágicos, extraem deles música.
O próximo álbum poderá bem ser “um projecto só sobre telefones”.

Mola Dudle – Mobília

12.01.2001
Mola Dudle
Mobília
Ed. e Distri. Ananana
8/10

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300 km separam Nanú e Miguel Cabral, respectivamente residentes em Tavira e Sintra, mas não a imaginação necessárias para criarem “Mobília”, um dos álbuns mais inovadores surgidos nos últimos anos no território dos sons alternativos feitos em Portugal. Em torno do conceito de “casa”, os dois Mola Dudle enviaram-se, reciprocamente, por correio cassetes e CDs para serem alterados pelo outro. Deste intercâmbio resultaram 25 peças cujo factor de ligação, seja de samples, de objectos domésticos, de fitas áudio com sons ambientais ou de “software” da 1ª geração. Entre o retro e a electrónica, o programático e o artesanal, “Mobília” centra-se na pesquisa do mistério e dos pequenos achados sonoros arrancados a uma conversação telefónica, a avarias da comunicação ou a danças cibernéticas do quotidiano. Uma música para arrumar ou desarrumar quantas vezes se quiser.