Vários – Echos Du Paradis: Sufi Soul (conj.)

05.12.1997
World
O Paraíso Entre O Deserto E O Mar
Vários
Echos Du Paradis: Sufi Soul (10)
2xCD Network, distri. Megamúsica
Vários

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Egypt: Music Of The Nile From The Desert To The Sea (9)
2xCD Virgin, import. Symbiose
A chamada “world music” está para a música étnica como o jardim está para a floresta. A autenticidade, por vezes selvagem, em contraste com a sofisticação e o apuro formal. Nos últimos anos tem-se assistido à proliferação de ambas no panorama editorial, de discos, livros, revistas e espectáculos ao vivo, da revitalização dos clubes ao aumento dos grandes festivais. Uma das questões que se colocam é a de saber se é a música étnica – necessariamente conotada com determinadas especificidades espirituais, culturais, sociais e geográficas – que conduz o potencial auditor para o tipo deproduto associado à “world music” ou se, pelo contrário, o caminho se processa no sentido inverso. Estamos em crer que a segunda hipótese será a mais correcta. É provável que os discos dos Chieftains, de Youssou N’ Dour ou das Zap Mama sejam os primeiros a ocupar as prateleiras em casa do melómano interessado em conhecer novas latitudes musicais. Daqui nascerá, ou não, o interesse pelas raízes genuínas que sustentam esses nomes meis mediáticos que, cada vez com mais força, se vão insinuando nos “tops” de vendas.
Faz, desta forma, todo o sentido que no último par de anos tenham surgido editoras decididas a investir num tipo de produto cultural menos imediato e mais contextualizado, para a chamda música étnica, tornando-a num objecto cultural não menos sofisticado do que as normais edições de “folk”, “world”, “fusão”, etc.
Deste grupo de editoras, a Network e a Ellipsis Arts… foram as primeiras a ter distribuição nacional, juntando-se-lhes agora a multinacional Virgin, sempre atenta às movimentações e motivações do mercado. Caracterizam-se estas edições, em geral, por conjuntos de dois ou mais CD, embalados numa apresentação invariavelmente luxuosa que inclui detalhados livros de paresentação, em geral bilingues ou trilingues, contendo textos informativos e fotos de inultrapassável qualidade.
“Echos du Paradis: Sufi Soul”, o mais recente lançamento da clássica Network, depois de “Desert Music” e “Road of the Gypsies”, é um compacto duplo (72m00 + 61m43) com exemplos das diversas tradições “sufi” do planeta, da Ásia Oriental ao Norte de África. O “sufi” á o asceta, por vezes anónimo, que dedica toda a sua vida à descoberta de si próprio e da divindade, dispensando os intermediários, ou seja, as religiões oficiais. É nesta medida, que sepode comparar o místico “sufi” ao gnóstico medieval, também ele numa procura do contacto directo com o Divino. A música, enquanto movimento puro, constitui instrumento privilegiado para aceder a esse estado de transcendência. Música ritual, de elevação. Música de condução e êxtase, mas também música de dança (prática indissociável da ascese, para os “dervishes” do Norte de África, no seu rodopio em torno de si próprios até alcançarem o transe que os atira para a outra dimensão). Dança do corpo e da lama. Por isso, faz todo o sentido referirmos a equivalência entre a música “sufi”, ou dos “sufi”, com a “soul music”, a “gospel” e os espirituais negros, os quais partilham idêntico objectivo de conduzir o corpo e alma para a liberdade e para a alegria.
São, no toal, 21 temas provenientes de regiões como o Irão, Damasco, Tajiquistão, Afeganistão, Marrocos, Turquia, Paquistão ou o Uzbequistão, recolhidos de muitas e variadas fontes, do Smithsonian Institute e Arquivos Internacionais de música popular, passando por diversas edições discográficas locais. Em “Sufi Soul”, os alaúdes, as percussões, as cordas, os sopros e, pricipalmente, as vozes, servem um propósito comum: a elevação acima do mundo e das aparências. É nesse lugar, ao qual se pode aceder através de alguns sonhos, que se encontra a forma mais pura de beleza. Nusrath Fateh Ali-Khan, provavelmente o único artista presente nesta pbra que é conhecido no Ocidente, sabia-o. Enquanto cantava.
Ao leitor, propomos que comece pela audição de “durnalar sema ‘i “ (“a dança dos 12 crânios”), de Ashik Müslüm Sümbül, da Anatólia, Turquia. Ashik, “aquele que está apaixonado”, nome dado na Anatólia aos cantores tradicionais místicos, canta e toca “saz” (alaúde de braço longo), num crescendo arrebatador. Deixem fugir a alma, deixem dançar o corpo, deixem dançar a alma, deixem fugir o corpo. Além da música, está a Música. Escutemos ainda a derradeira lição, na conversa entre o mestre Jalâl al-Din e um discípulo céptico, com a mente fechada: “não gosto di ruído do ranger das paortas!” Réplica do mestre: “Eu ouço o som das portas quando se abrem, enquanto tu ouves o som das poartas fechadas.”
“Egypt – Music of the Nile from the Desert to the Sea”, embora igualmente uma obra excepcional, não ostenta com a mesma evidência a espiritualidade e a dimensão do sagrado que brota, de forma quase violenta, de “Sufi Soul”. Agora é tempo e acompanharmos as diversas tradições musicais que eclodiram ao longo da História no rio Nilo, do deserto do Sara ao delta no Mediterrâneo, de povoações como Abu Simbel ou Ibrim, junto à nascente, até ao Cairo, cadinho de múltiplas influências, rurtais e urbanas. É igualmente uma viagem, mas marcada pela areia, pelo sol e pelo mar. Pela inconstância das dunas, pela sensualidade ou pela inclemência do astro-rei, pela ilusão da miragem e a paz momentânea do oásis, pelo descanso final das ondas ou pelo fito do lucro, na chegada à cidade, onde tudo se compra e tudo se vende, ascoisas e os corpos. A improvisação (“taqasin”) e a prece, os sons de contenção e as danças, por vezes confundindo-se com a convulsão, guiam o peregrino, numa rota onde a dor se confunde com o prazer. Os cantores do Nilo, os berberes, os beduínos, as mulheres e os homens a sós com o seu destino, marcham como um ente grandioso – o grande Sul em demanda do seu Graal.
No segundo compacto, já despertamos de súbito para o mundo exterior, das vozes discordantes e das muitas coisas separadas. É a electricidade que surge, e com ela uma outra dança, plena ainda de tradição e de autenticidade, mas marcada já pela tensão dos nervos. A música “rai”, incrustada nos hábitos das novas gerações, irrompe em remisturas de “Halat Al-Ânuâr”, por Amid, e de “Yû ud Wa Yaghlef Wa Êstanâh”, por Gâber al-‘Azab. Programações. Tecno. A música do Alto Nilo contaminada pelos fumos e pelas solicitações do Cairo. Tempo de festa, na nova síntese da música “núbia” com a música árabe, em “Nahawand”, por Sharkiat.
E se, em “Sufi Soul”, Nusrat Fateh Ali-Khan era a estrela, aqui encontramos, já perto do final, Ali Hassan Kuban, “o patriarca da música ‘núbia’ do Cairo”. Mas assim como o mundo se move, também a música retorna à origem, para de novo se lançar em direcção ao futuro, numa espiral interminável, através de um cântico ritual dos “Bechari”, a última das tribos nómadas do deserto, em errância eterna entre o Nilo e o Mar Vermelho. Fica a dúvida. O velho filósofo grego Heraclito tinha ou não razão quando afirmava: “É impossível banharmo-nos duas vezes na mesma água do rio”? Experimentemos ouvir outra vez estes dois discos desde o princípio.

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