PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 24 OUTUBRO 1990 >> Cultura
Youssou N’Dour em Lisboa
Mil corpos a dançar
Pouco mais de mil pessoas davam na noite de segunda-feira, ao interior do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, um aspeto desolador. Mas, segundos após o senegalês Youssou N’Dour e as suas “Super Estrelas” terem entoado as primeiras notas, mil corpos começaram a dançar.
Youssou N’Dour chegou acompanhado pela sua banda “Super Étoile”, formada por um total de dez músicos e bailarinos, todos empenhados na celebração da grande festa africana. Já ninguém se importava se eram muitos ou poucos os presentes, com toda a gente rendida ao virtuosismo do africano e à energia transbordante dos instrumentistas.
Razão principal para a fraca afluência do público, foi a insuficiente promoção do concerto e de um nome por enquanto pouco conhecido entre nós. “É pena que um espetáculo como este tenha atraído tão pouca gente” – lamentava José Marinho, jornalista – “talvez por ser segunda-feira e a obra de Youssou N’Dour nunca ter tido entre nós a divulgação que merece”.
O som não seria o ideal, sobretudo porque a acústica foi afetada pelo vazio da sala, mas a falta foi perfeitamente compensada pela entrega completa dos músicos que rapidamente puseram todos aos pulos. “Fartei-me de dançar” – regozijava-se Miguel Portas, assessor do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, uma das muitas pessoas que de imediato se entregaram ao prazer do movimento corporal. “Pena foi não estar tudo cheio, ou se calhar ainda bem, pois se não era capaz de não haver espaço para o fazer!…”.
Menos esfuziante, o crítico musical João Lisboa confessava que, embora “The Lion”, penúltimo álbum do cantor, não o tivesse entusiasmado, reconhecia “ser ao vivo que melhor se pode apreciar a música e dança africanas. Mesmo que os corpos brancos ainda oponham certas resistências à carga instintiva que este tipo de música comporta”. De opinião contrária era Ricardo Camacho, produtor discográfico e músico dos Sétima Legião, para quem esta música “é a mais universal” e que acha “espantoso como as pessoas, mesmo sem a conhecer, se entregam de imediato ao seu ritmo”.
A lei do ritmo
Sobre o palco Yousso N’Dour não dava descanso a ninguém. Nem os temas mais lentos chegavam para arrefecer os ânimos. Logo de seguida o ritmo imposto pelas percussões da “Super Étoile” voltava a ditar a sua lei. Entusiasmado estava o radialista Amílcar Fidelis que não hesitava em considerar o músico senegalês como “um dos nomes mais fortes da denominada ‘World Music’, não espantando que Peter Gabriel o tivesse ‘apadrinhado’ através da sua participação numa das faixas de ‘The Lion’”.
No Coliseu dos Recreios, Youssou N’Dour interpretou canções deste e do mais recente longa-duração de genérico “Set”. Os teclados eletrónicos e os saxofones não obstaram a que o coração do continente negro pulsasse sem parar. Para o crítico Ricardo Saló não havia dúvidas: “De todos os grupos africanos que vi até agora, o de Youssou N’Dour, a par do de Ray Lema, foi aquele que melhor soube equilibrar a tradição étnica e a tecnologia ocidental, mantendo embora o sinal africano do princípio ao fim”. Menos sensível ao lado negro, Pedro Ayres de Magalhães, compositor, músico e letrista dos Madredeus, foi sobretudo sensível aos temas finais, aqueles em que “a instrumentação ficou reduzida ao mínimo e a música se aproximou mais dos valores ocidentais, privilegiando o silêncio”.
Ao longo de quase duas horas de atuação, incluindo a longa sequência de “encores”, os músicos “deram o litro”, segundo a expressão de outro homem da rádio, António Sérgio. Para o veterano locutor apaixonado pelos sons de África e divulgador desde o início da música de N’Dour, os “Super Étoile” são hoje em dia, “verdadeiras super-estrelas, a maior banda que o chamado Terceiro Mundo conheceu desde os tempos áureos de Bob Marley”. Referindo-se ao escasso número de presentes (“com a sala cheia teria sido um acontecimento inesquecível”), adiantou uma explicação de caráter sociológico algo polémica: “Os traumas da guerra no Ultramar impedem ainda muitos portugueses de se deslocarem para ver atuar uma banda constituída só por africanos”.
Seja como for, desde a noite de segunda-feira, a alma de um milhar de portugueses passou a ser um bocadinho mais africana. E a ordem que a alma deu ao corpo foi: dançar!