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Vasco Martins – “O Atlântico Visto Por Um ‘Bit'”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 14.10.1992


O ATLÂNTICO VISTO POR UM “BIT”



Ele é um solitário que vem tecendo a sua obra longe das multidões. Uma espécie de iluminado. Pela luz do Atlântico e das ilhas de Cabo Verde. Vasco Martins tem vários álbuns gravados, cada um incidindo numa tónica particular. Do piano solo a duetos de guitarra, da música de câmara À “contemporânea” e à electrónica, passou finalmente à “new age”, numa trilogia dedicada à música do Sul, da Qual acabou de ser editada a primeira parte, intitulada “Memórias Atlânticas”.



Vasco Martins é uma espécie de Gismonti português, mantendo com esse músico brasileiro algumas parecenças – na estética, na instrumentação e nos processos. Até ma farta cabeleira. Gismonti, diga-se em abono da verdade, toca um bocadinho melhor. Um e outro não conseguiram libertar-se com facilidade dos anos 70, com todo o seu cortejo residual da iconografia “hippie”. Vasco Martins não se libertou de todo. “Memórias Atlânticas”, primeira parte, gravada e já editada em CD com o selo UPAV, de uma trilogia cujos restantes capítulos, “Momentos Silenciosos” e “Ritual Periférico”, vão ser editados até ao final deste ano sob o genérico “Southbound Music”, é um disco cheio de sons agradáveis de sintetizador que faz alusões discretas ao folclore de Cabo Verde e tem montado todo aparato destinado à exportação.
O principal problema de Vasco Martins é que discos do tipo destas “Memórias Atlânticas” já foram feitos e refeitos há um certo tempo, por volta de 1976, 77, para sermos mais exactos, por músicos como Vangelis ou Jean-Michel Jarre, sem que já nessa altura tivessem resultado grandes avanços para a música. Nesta perspectiva, acabam por ser mais relevantes obras prévias do autor, como “Vibrações”, de 1979, para piano solo, os diálogos de guitarra acústica com o cabo-verdiano Voginha, em “Vivências ao Sol”, gravado em 1985, ou as três peças reunidas num álbum de 1986 – “Quinto Mundo”, para orquestra de câmara, interpretada por “Les solistes de Paris”, “O solstício e o homem solitário” e “Mahabutas” (os elementos), com interpretação do Opus Ensemble.
Infelizmente, “Memórias Atlânticas” radica antes na fase “progressiva”, presente nos álbuns “Universo da Ilha” (86) e “Oceano Imenso” (87). Com boa vontade é possível detectar nesta primeira parte da trilogia a influência africana, em todo o caso, não com a intensidade com que era perceptível em “Para Além da Noite”, álbum de 85, onde os instrumentos acústicos tocados por membros do Opus Ensemble se juntavam de forma harmoniosa aos sintetizadores, no tratamento das “mornas” cabo-verdianas escritas pelo compositor tradicional B. Léza.

Uma Obra Grandiosa

Em toda a discografia citada aparecem referências cósmicas e ao mar. Não deixam de causar uma certa impressão títulos de obras, decerto grandiosas, como “Pirâmides” e “Cosmos”, escritas para grande órgão, grande ensemble, tudo em grande. Além disso, deve desculpar-se Vasco Martins, pela sua juventude, quando escreveu nas contracapas dos discos tiradas como “a liberdade tem que ser essencial: cria-se como ideia cósmica e sensível, e profundamente humana”, “no piano há um não sei quê de abandono, uma mistura de lirismo e força” e a enigmática “mesmo no deserto nasce a ‘Welwitschia Mirabilis’…”. Serão (grandes) verdades, mas ditas desta maneira…
Também devemos ter um certo cuidado em manter a sisudez perante um título como “Através de uma janela = infinito + homens”, entre outros mais ou menos longos que engordam a ficha técnica de “Vibração”.
Mas há na obra de Vasco Martins (grandes) virtudes: é ele próprio quem financia os seus discos, em edições de autor, a tentativa de fazer a síntese entre as culturas atlânticas e a música ocidental “erudita”, a investigação. A estética das capas deixa um pouco a desejar, mas compreende-se, dada a provável escassez de meios.
“Memórias Atlânticas” e, presumivelmente, a trilogia inteira, procurando capitalizar no mercado da “new age”, recusa o risco, preferindo o comodismo de soluções harmónicas, melódicas e rítmicas já antes exploradas até à exaustão, e com melhores resultados, por uma multidão de outros músicos europeus – uma prova de como a memória pode se traiçoeira. Em Portugal, há um bom exemplo do que é possível fazer, dentro do género, sem cair nos lugares-comuns: o álbum “Mr. Wollogallu”, da dupla Carlos Maria Trindade – Nuno Canavarro, menos pomposo mas bastante mais imaginativo e exploratório. Talvez a música de Vasco Martins se torne exaltante no dia em que este conseguir realizar o seu sonho de tocar no interior de um vulcão…

Vários – “Discotecas Recusam Vender Discos da UPAV – Boicote À Cooperativa ‘Marginal'” (artigo / reportagem / entrevista / portugueses)

Secção Cultura Terça-Feira, 02.04.1991


Discotecas Recusam Vender Discos da UPAV
Boicote À Cooperativa “Marginal”



Uma cooperativa cultural UPAV queixa-se que algumas discotecas do país não compram os seus discos. Fala-se mesmo de boicote. Noutras lojas, os discos da UPAV vendem-se bem. Prontos a sair, com o selo “Play On”, vocacionado para as áreas da música alternativa, estão discos de José Peixoto (“El Fad”), Cal Viva e do compositor cabo-verdiano Vasco Martins. Resultados encorajadores de uma ideia peregrina.

Nem tudo é límpido no negócio dos discos. Em Fevereiro último, a UPAV, União Portuguesa de Artistas de Variedades, lançou no mercado uma série de álbuns de música portuguesa. Alguns retalhistas recusam-se a comprá-los, alegando terem sido gravados numa editora “marginal”.
O conceito de “marginalidade” prende-se aqui a uma nova maneira de encarar a edição discográfica da música portuguesa e a protecção aos seus artistas, segundo estratégias inovadoras que escapam aos tentáculos das multinacionais (ver PÚBLICO de 18 de Fevereiro).
Para José Mário Branco, músico e sócio fundador da UPAV, a questão reveste-se de alguma gravidade – “tem havido discotecas, algumas bastante importantes, não só em Lisboa, que pura e simplesmente não compram os nossos discos. Só por si, isso não teria grande importância, embora pensemos que deveria haver um esforço para acarinhar a música portuguesa, muito desfavorecida em termos de mercado.

Interesses Ocultos

Admito até que haja discotecas especializadas que entendem haver determinados tipos de música que não lhes interessa vender. Mas não é o caso. Muitas vezes, algumas lojas grandes, não só não compram os discos como têm atitudes que achamos desonestas. Mais grave ainda é o facto de muitas dessas discotecas não terem os discos à venda e induzirem em erro o cliente, dizendo que ainda não saíram ou pura e simplesmente que estão esgotados”.
Recorde-se que os discos entretanto lançados pela UPAV, “Correspondências”, de José Mário Branco, “Fado – Histórias, Baladas e Lendas”, de Rodrigo, “Aqui e Agora”, de Dina, “Maria Guinot”, de Maria Guinot, “Poemas de Bibe”, de Mário Viegas e Manuel ade Freitas, “Jorge Lomba”, de Jorge Lomba e “Terreiro das Bruxas”, dos Vai de Roda, são distribuídos pela Mundo da Canção, do Porto. José Mário Branco assegura que tanto a UPAV como a distribuidora “visitaram todas as discotecas do país, solicitando-lhes que pusessem os nossos discos à venda”.
Não se citam nomes, para evitar que a situação se torne “ainda pior”, já que para aquele músico, “existem interesses ocultos e má vontade da parte de alguns negociantes”.

Sons De Hoje

Mas na UPAV a palavra de ordem é “acção”. Assim, já depois de amanhã, às seis e meia da tarde, vão ser apresentados no auditório da Sociedade Portuguesa de Autores, dois novos discos de música portuguesa, gravados para a etiqueta subsidiária da União. “Play On”, vocacionada para a música contemporânea, jazzística, aquela que mais foge dos esquemas comerciais e que todos na UPAV designam pelo lema “sons de hoje”.
“El Fad”, de José Peixoto e um álbum homónimo dos Cal Viva (constituído por Peixoto, Carlos Bica, José Salgueiro e Martin Fredebeul) são as primeiras realizações da “Play On” na área do jazz. Prevista ainda a edição, em Maio próximo, de dois CDs do compositor cabo-verdiano Vasco Martins.

Circuitos Alternativos

Outra das preocupações dos membros da UPAV é o circuito das actuações ao vivo. “Dentro daquela ideia geral que é a gestão integrada da carreira artística, estamos a tentar fazer um trabalho de fundo que consiste em criar circuitos regulares de “tournées” no nosso país. Coisa que não existe…”. A ideia consiste em criar uma espécie de rede de espectáculos, previamente negociados com mas Câmaras Municipais das diversas localidades, a percorrer posteriormente pelos músicos. Noites musicais, com dois artistas (sócios ou não da UPAV) destinadas a públicos específicos. O “cachet”, negociado para toda a “tournée” é sponsorizado ou mesmo pago em regime de mecenato.
Às Câmaras cabe cobrir as despesas relativas à estadia da caravana, fornecer a sala (com lotações médias de 800 espectadores) e comprometer-se a comprar os bilhetes não vendidos, o que na prática significa que à partida estão asseguradas sempre lotações esgotadas. Aqui reside o aspecto mais revolucionário do sistema, já que esse dinheiro se destina a pagar todas as despesas de produção (técnicos, luzes, viagens, cartazes), libertando assim os artistas deste encargo.
Compreende-se que as Câmaras tenham todo o interesse em que os espectáculos sejam um êxito. “Quanto mais bilhetes venderem, menos pagam e podem até não gastar nada se trabalharem bem, em termos de promoção, através da difusão, apoio, sponsorização local ou regional, publicidade na imprensa e rádios locais, em empresas da região, etc.

A Regra Dos Três Terços

As Câmaras começam a perceber que lhes convém lidar directamente com os artistas”. Em princípio, o protocolo assinado com as entidades camarárias prevê sempre a realização de pelo menos seis espectáculos. Só neste ano a UPAV tem agendados, a nível nacional, cerca de 180 espectáculos.
Mas, se nos espectáculos ao vivo, o artista tem direito a receber dez por cento do “cachet” líquido (“ao contrário do praticado no mercado, em que essa percentagem incide sobre o “cachet” bruto, cabendo normalmente ao artista pagar as despesas de produção…”) já em relação aos lucros provenientes da venda de discos o pagamento se processa de maneira diferente, de acordo com a chamada “regra dos três terços”. O princípio é de que a mais valia de um disco pertence ao seu autor. A regra que escolhemos ‘obriga-o’, porém, a oferecer um terço dos resultados líquidos à cooperativa. No fundo beneficia disso porque ele próprio é sócio. O segundo terço vai para o bolso do artista e ninguém tem nada com isso. O terceiro terço continua a ser propriedade do artista, mas terá que ser obrigatoriamente investido num fundo editorial gerido pela UPAV, destinado a financiar novas produções”.
Em relação aos discos já lançados no mercado, há casos (como os de Mário Viegas / Manuela de Freitas e de Rodrigo) em que, mesmo antes de serem gravados, já estavam a dar lucro, tendo em conta as vendas antecipadas (na ordem dos três mil exemplares, para cada um dos sete discos editados). Mas se as produções mais baratas rentabilizam rapidamente, outras como as “Correspondências” de José Mário Branco levam mais tempo a recuperar os investimentos – “são muitas horas de estúdio, muitos músicos, capa dispendiosa” – como faz questão de afirmar o seu autor -, “portanto não espanta que o saldo continue negativo”.

Novos Valores

A UPAV não os esquece os novos valores. Se por um lado as portas permanecem sempre abertas à admissão de novos sócios (Paulo de Carvalho aderiu recentemente), nem por isso os novos nomes são deixados de lado. Para José Mário Branco um dos objectivos prioritários da cooperativa passa mesmo pelo lançamento, todos os anos, de “dois ou três músicos desconhecidos que aparecem com as primeiras obras”.
Assim, para além da edição próxima dos dois trabalhos de José Peixoto, preparam-se já as estreias discográficas de Amélia Muge ou, numa veia mais comercial, de Adriano. Se a deixarem, a UPAV há-de continuar saudável, a crescer.

Carlos Martins & Vasco Martins – Outras Índias

10.10.1997
Carlos Martins & Vasco Martins
Outras Índias (8)
Nortesul, distri. Valentim de Carvalho

Carlos Martins, saxofonista de jazz e conceptualista atento à fusão dos sons do universo, cruzou-se com Vasco Martins, navegante solitário do Mindelo, Cabo Verde, dos sintetizadores e das miragens “new age”, autor de uma trilogia intitulada “Southbound Music”. Decidiram gravar juntos, numa ponte entre duas solidões – a do Alentejo e a do Mindelo. Em busca de “Outras Índias”, lugar imaginário apenas para quem não se consegue libertar das amarras da estagnação, da intolerância e da cegueira. “Outras Índias” é um lugar – esse lugar “onde mora a beleza”, nas palavras do saxofonista – que não se encontra no jazz nem na música tradicional de Cabo Verde. Paisagem contemplativa e intimista, espaço amplo de diálogo entre os saxofones tenor e soprano de Carlos Martins com os sintetizadores e guitarra acústica de Vasco Martins (não se procurem neles outro parentesco senão o da cumplicidade musical…), “Outras Índias” avança devagar, saboreando cada nota e cada pausa. O estado de alma pode estar próximo do de um Rão Kyao só que aqui se parte para uma aventura maior. Meditativo, caloroso, exótico, deve ouvir-se com a mesma liberdade de espírito com que foi criado. O saxofone de Carlos Martins deixa-se inebriar pelas delícias mais subtis do tonalismo (Karl Jenkins, dos Soft Machine, convertido a Canterbury…), enquanto Vasco Martins sonha contrapontos de guitarra ou tece discretas tapeçarias electrónicas. Uma geografia a descobrir.