PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 23 MAIO 1990 >> Videodiscos >> Pop
LABIRINTO E GRAÇA
STEVEN BROWN
La Grâce Du Tombeur
LP e CD Les Temps Modernes
STEVEN BROWN & DELPHINE SEYRIG
De Doute Et De Grace
LP e CD Made To Measure,
distri. Contraverso
Steven Brown representa o lado intelectual e sério dos americanos-que-gostariam-de-ter-nascido-europeus, Tuxedomoon. Blaine Reininger é o lúdico do bigode que toca violino, conta anedotas, veste casacos aos quadradinhos e, de vez em quando, se distrai e esquece de imitar David Bowie, produzindo álbuns dignos de registo. Peter Principle, o esquisito dos barulhos, ultimamente dado a ambientalismos suspeitos e obscuridades sonoras sempre bem acolhidas e gravadas “por medida” na editora belga, Made To Measure. Steven Brown marcha mais certinho. Dele não se conhecem passos em falso. Mantém invariavelmente um superior nível qualitativo, quer no campo das canções (“Searching For Contact”) quer no terreno mais ambíguo dos experimentalismos conceptuais (“Music For Solo Piano” ou as experiências partilhadas com Benjamin Lew, “Douzième Journée…” e “À Propos D’un Paysage”) e, ultimamente, também poéticos (o disco dedicado à poesia de John Keats).
“La Grâce Du Tombeur” inscreve-se simultaneamente nesta e numa terceira tendência, a de composição para filmes ou outras formas artísticas cúmplices da dos sons. Neste caso, um espetáculo teatral de Thierry Smits e Antoine Pickels, pretexto para Brown passar para o vinilo três longas peças instrumentais de extrema complexidade constituindo-se num todo de múltiplas leituras e no álbum mais experimental de toda a sua carreira: “The Labirynth”, “The Fall” e “The Flight”. Sequências de lógicas oblíquas sobrepostas, sonoridades sombrias e ocasionais cintilações, iluminando fugazmente a massa sonora angustiante que domina todo o álbum. Curiosamente, os maquinismos rítmicos obsessivos e monstruosos de “Labirynth” ou as vozes parasitárias e certas desfocagens estruturais de “Fall” lembram operações semelhantes às obradas pelos Nurse With Wound, em “Spiral Insana”. Do outro lado, “Flight” eleva-se num tom mais ligeiro, com a eletrónica predominante em todo o disco, servindo de pano de fundo aos arabescos do saxofone de Brown.
“De Doute Et De Grace”, composto para um filme da Wonder Products, com textos retirados do livro “Cité Du Sang”, de Carole Naggar, prossegue a via iniciada com o disco de Keats. Mais ainda do que neste, a música é a das próprias palavras, ditas por Delphine Seyrig, atriz no “Marienbad” de Resnais, presença e voz encantatórias dos fantasmas de Duras em “India Song”: Calcutta, o Ganges, Hotel Astor… Música e poesia confundidos num instante mágico, a memória reinventada em jogos literários e labirintos de sonhada nostalgia.
“Joeboy in Mexico”, afinal, não é um disco novo dos Tuxedomoon, embora um rótulo colado na capa proclame “o regresso dos Tuxedomoon”. Mas Steven Brown, com quem o PÚBLICO falou, diz que não. O México, com o seu “magnetismo” e as suas “forças espirituais”, determinou a diferença. E – sim – os Tuxedomoon, a lua de “smoking”, foram a primeira banda pós-rock da História.
Gravado em casa no México, retocado num estúdio comercial, “Joeboy in Mexico”, apresenta o lado mais obscuro e interessante da música da lendária banda de São Francisco, aqui explorado por Steven Brown com Peter Principle, com o convidado muito especial Blaine L. Reininger, o terceiro vértice dos Tuxedomoon.
FM – “Joeboy in Mexico” afinal não é um álbum dos Tuxedomoon…
STEVEN BROWN – Não é, de facto, e sublinho este “não”. Se fosse um álbum do grupo, teria essa indicação [Steven Brown deve ignorar a existência do tal rótulo]. Na realidade, a editora Opción Sónica pediu-me para fazer um novo álbum na sequência de “Ninerain”. Queriam uma coisa diferente, mais personalizada. Decidi trabalhar com Peter Principle, a companhia aceitou e ele veio ter ao México, para trabalhar durante um mês comigo, com Nikolas Klau, Alejandro Herrera e Juan Carlos Lopez. “keredwin’s reel” foi escrito por Blaine Reininger, a quem eu pedi que participasse no projecto. Depois disso, Peter partiu para Roma e Nova Iorque. Eu e os outros acabámos as gravações. Em 1981, peter e eu já tínhamos gravado “Joeboy in Rotterdam”, daí o nome do álbum. Qualquer destes dois álbuns aparece com pseudónimo na ficha técnica. É um segredo.
FM – Há alguma possibilidade de você, Peter Principle e Blaine Reininger voltarem a tocar juntos ao vivo?
STEVEN BROWN – Tocámos os três juntos, pela primeira vez em oito anos, no ano passado, em Telavive, Atenas, Salonica e Polverigi, na Itália. Além de que estamos a planear um novo disco e uma digressão pela Europa no próximo ano.
FM – Como é que se processaram as gravações? Foi ou não um trabalho colectivo?
STEVEN BROWN – No início a ideia era gravarmos no meu estúdio em casa. Com todo o tempo disponível para compor e gravar sem quaisquer preocupações monetárias. Mas uma avaria no equipamento obrigou-nos a mudar para um estúdio comercial vulgar. a maior parte dos temas foram compostos por mim com Nikolas. Alguns são peças inteiramente feitas e tocadas por mim, como “Bitter bark” e “Shipwreck”. “Brad’s loop” e “El Popo” incluem Alejandro Herrera como autor. Nesta medida, pode considerar-se um projecto colectivo.
FM – Há algum elo de ligação entre este disco e o anterior, “Ninerain”?
STEVEN BROWN – A presença, em ambos, de Alejandro e de Juan Carlos. A editora também é a mesma.
FM – “Joeboy in Mexico” recupera o lado instrumental e mais experimental dos Tuxedomoon, de álbuns como “Suite en Sous-Sol” e “The Ghost Sonata”, já para não falar dos dois primeiros álbuns, “Half-Mute” e “Desire”. Os Tuxedomoon serão um grupo “maldito” para sempre?
STEVEN BROWN – Tenho orgulho em fazer parte do “underground”, embora reconheça que é um estilo de vida que exige a existência de “senhorios” compreensivos…
FM – O espírito e a atitude musical dos Tuxedomoon está bastante próxima do actual pós-rock, de bandas como os Tortoise e Trans AM. Consideram-se pioneiros do rock mais radical?
STEVEN BROWN – Não conheço nenhuma dessas duas bandas (mande-me uma cassete, por favor!9. De qualquer forma, suponho que os Tuxedomoon foram, desde o início, uma espécie de banda pós-rock, ou pós-moderna. Quando começámos, nos anos 70, não havia muitos grupos como nós, a usarem violino, saxofone, caixas de ritmos, guitarra, órgão e fitas magnéticas.
FM – A capa do álbum faz lembrar o grafismo usado por um músico mexicano, Jorge Reyes…
STEVEN BROWN – Acho a capa fantástica! É um trabalho de Jaime Keller, um velho amigo meu e um grande artista. Quanto a Jorge Reyes, conheço-o. Gravamos para a mesma editora.
FM – O facto de o isco ter sido feito no México teve alguma importância no proceso criativo? Estamos a lembrar-nos dos fragmentos de manifesto revolucionário que foram usados no tema de abertura…
STEVEN BROWN – Salvador Dali afirmou um dia que teria pintado exactamente da mesma maneira mesmo se tivesse vivido no Pólo Norte, querendo com isto dizer que a localização geográfica não desempenha qualquer papel na produção artística. Já Peter Principle me disse exactamente o contrário, que o local tem muito que ver com os resultados. Para ele, o México determinou e conduziu todo o proceso de gravação, devido a um magnetismo ou a quaisquer forças místicas presentes neste país. A minha opinião está algures entre estas duas.
FM – Tem planos para gravar em breve um novo álbum?
STEVEN BROWN – Há um plano, que tenho em mente há mais de cinco anos, de gravar com Harold Budd.
FM – Ainda ouve música rock? Que discos é que tem andado a ouvir ultimamente?
STEVEN BROWN – O mais próximo do rock que tenho ouvido é Olivier Messiaen e Conlon Nancarrow, um compositor americano que viveu no México há 40 anos e compunha para executantes de pianola!…
Agora a sério, ouvi o novo de Todd Rundgren, com canções novas feitas ao estilo bossa-nova. Recentemente, eu e Peter Principle temos andado a trabalhar uma versão de Isaac Hayes de “Walk on by”, de Burt Bacharach.
FM – Atendendo à importância histórica dos Tuxedomoon, não está prevista nenhuma reedição remasterizada da sua discografia, como aconteceu, por exemplo, ainda há pouco tempo, com os Residents?
STEVEN BROWN – É uma boa ideia. Apesar de estar tudo disponível, em edições normais, através da Crammed, de Bruxelas, e ter sido lançada, em 92, a colectânea “Solve et Coagula”.
FM – Devemos considerar “Joeboy in Mexico” uma escultura sonora, um manifesto artístico ou uma boa anedota?
STEVEN BROWN – Folgo em saber que tem sentido de humor!
Nota:
Outros Discos Brilhantes E Obscuros Por Elementos Dos Tuxedomoon:
Steven Brown: “Searching For Contact”, “Zoo Story”;
Steven Brown & Benjamin Lew: “Douzième Journée: Le Verbe, La Parure, L’Amour”, “A Prpopos D’Un Paysage”;
Peter Principle: “Sedimental Journey”, “Tone Poems”;
Blaine L. Reininger: “Instrumentals, 1982-1986”;
Blaine L. Reininger & Mikel Rouse: “Colorado Suite”.