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sábado, 19 Julho 2003
Trovesi, Spring Heel Jack, The Tradition Trio e Akosh S. Unit fazem-nos acreditar que a música de fusão pode não ser, afinal de contas, o epitáfio do jazz. Que nos perdoem os puristas, mas o futuro passa por aqui.
‘What have they done to the blues, ma?’
GIANLUIGI TROVESI OTTETTO
Fugace
ECM, distri. Dargil
9 | 10
SPRING HEEL JACK
Live
Thirsty Ear.
Distri. Trem Azul
10 | 10
THE TRADITION TRIO
Tone
FMP, distri. Multidisc
8 | 10
AKOSH S. UNIT
Vetek
Ed. e distri. Universal
9 | 10
O mundo musical de Gianluigi Trovesi nem sempre é o mundo do jazz, como já o haviam demonstrado álbuns anteriores deste poli-instrumentista natural de Bergamo, como “Les Hommes Armés” ou o espetacular menu de luxo para “big band”, “Dedalo”. Ou pelo menos, do jazz enquanto recapitulação, recriação e criação histórica que nasceu e, provavelmente, morrerá com os “blues”. E, no entanto, algo se move ainda, como se o “swing” fizesse afinal parte de toda a música onde bate um coração humano.
“Fugace” é, por si só, um mundo. A música de baile italiana do pós-guerra, reminiscências do boogie-woogie e do jazz de Dixieland, o swing de Benny Goodman, citações de Louis Armstrong, mas também Scarlati, Duffay e Bartok, mais eletrónica em intricados rendilhados, combinam-se numa síntese absolutamente original que se desfruta como a visão de um vasto e épico “western spaghetti” em Cinemascope e som Sensaround. Tal qual o caudal de uma imaginação rigorosamente conhecedora da história do jazz – de “New Orleans” ao “free” –, da música clássica e contemporânea, mas também das formas etnográficas da música árabe e africana, “Fugace” muda impercetivelmente de registo, fluindo como um fascinante caleidoscópio de sons que recriam o próprio movimento do universo. Depois, há neste disco algo que começa a cortar às fatias o fundamentalismo: Se “Minneapolis”, álbum novo de Michel Portal, inclui uma faixa de hip-hop, “Fugace” não lhe fica atrás e envereda pelo drum ‘n’ bass, em “Clumsy dancing of the fat bird” e pelo… rock, pesado em “Blues and West”, e progressivo, em “Siparietto II” (serão os Gryphon?). Trovesi faz com que tudo pareça apropriado e natural.
Quem já havia pregado um valente susto aos puristas do jazz foram os Spring Heel Jack, com “Amassed”, sobretudo pela projeção que este disco atingiu nos centros de difusão de música alternativa (o anterior, “Masses”, já lançara as sementes da revolução). Em “Live”, registo ao vivo no Corn Exchange, Brighton, em Janeiro deste ano, a dupla exilada do drum ‘n’ bass, John Coxon e Ashley Wales, reincide com o mesmo bando de “malfeitores” (Han Bennink, Evan Parker, William Parker, Matthew Shipp e J. Spaceman) em duas longas improvisações, respetivamente de 35 e 39 minutos, que projetam a música de “Amassed” numa verdadeira selva de criaturas mutantes. O que em “Amassed” surpreendia pelo lado estrutural explode aqui num espetacular “tour de force” de jazz multidimensional e orgânico onde a raiva, a inteligência e a inovação andam de mãos dadas. É como se a “free music” dos anos 60 decidisse que o futuro lhe volta a pertencer, pegando nas descobertas do passado, arrancando retalhos do Sun Ra galáctico e do Miles das fusões elétricas, para com elas encetar nova viagem, ainda mais rica e arriscada, com término num longo e majestoso “fade out”, marcha fúnebre pelo jazz. O que significa que os Spring Heel Jack voltam a reescrever a história.
Igualmente incontornável é “Tone”, dos The Tradition Trio, formado por três nomes paradigmáticos da música improvisada: o veterano Alan Silva (sintetizador, tocou com Ayler, Cecil Tayler, Sun Ra, Shepp, Globe Unity Orchestra, etc.), Johannes Bauer (trombone, estará em Portugal no festival Jazz em Agosto, com os Doppelmoppel) e Roger Turner (bateria e percussão). Gravado ao vivo no Free Music Festival de Antuérpia, em 2001, “Tone” desenrola-se ao longo de uma faixa única de 51 minutos (e ainda há quem se queixe do rock progressivo!…) que glosa o conceito “in the tradition” (“Tradition: the handing down of statements, beliefs, legends, customs, etc, from generation to generation, esp. by word of mouth or by pratice”). A construção de Babel dos Spring Heel Jack não anda longe, ainda que a dimensão “cósmica” esteja aqui mais condensada e subjugada aos códigos de alguma música improvisada de cariz eletrónico e tribal, como a dos pioneiros MEV (Musica Elettronica Viva). A aparente e prevalecente sensação de delírio que atravessa uma audição mais superficial não escamoteia o facto de estarmos perante um intenso trabalho de comunicação e criação coletiva que, em certos momentos, consegue ser exaltante, nomeadamente quando Silva enche as crateras vazias com oceanos de sons sintetizados dentro e sobre os quais o trombone de Bauer experimenta os limites do “free” e da música contemporânea, entre músicos referenciais como Albert Mangelsdorff, Paul Rutherford ou Vinko Glonbokar, divertindo-se a tentar escapar dos labirintos montados por Turner.
Ainda alucinados pelas emanações dos Spring Heel Jack e dos The Tradition Trio é já com naturalidade que aceitamos encarar de frente o réptil que nos olha, vindo das trevas, a cuspir sangue na capa de “Vetek”, terceiro e último capítulo de uma trilogia do saxofonista e multi-instrumentista húngaro Akosh Szelevényl, sucedendo aos anteriores “Kebelen” e “Lenne”.
Como solista, nos saxofones soprano e tenor e no clarinete de metal, Akosh insere-se sem desconforto na linhagem da escola francesa de Michel Portal e Louis Sclavis. A seu lado encontramos Joe Doherty (violino, saxofone alto e clarinete baixo), Bernard Malandain (baixo) e Philippe Foch (bateria, percussão, tablas), mais os convidados Nicolas Guillemet (saxofones alto e soprano) e Mokhtar Choumane (ney).
Assumindo como influências Archie Shepp, Albert Ayler, John Coltrane, Pharoah Sanders, Ornette Coleman, Don Cherry, Sun Ra e Charlie Haden (embora o músico húngaro faça também questão em nomear Jimi Hendrix, Led Zeppelin, Frank Zappa, Prince e Krzystof Pendereczki), a música de “Vetek” descobre na confluência desta lista de nomes o gosto pelas músicas do mundo (não no sentido de exotismo folclórico com que habitualmente é conotado mas de acordo com a visão de uma síntese planetária construída sobre raízes comuns mas plurifacetada nas suas ramificações) em que o jazz – não se sabe ainda se inevitavelmente ou não – desemboca quando atinge e ultrapassa as fronteiras impostas pelos seus próprios cânones.
“Vetek” rasteja e amontoa tensões e clímaxes, profana os templos zen de Stephan Micus e Steve Shehan, acolhe o grito nas florestas cerimoniais de Boris Kovak (de “Ritual Nova”) para finalmente, num tema de antologia, “Patak”, rejubilar na tradição e espalhar a felicidade e o êxtase. O réptil cospe, afinal, uma flor.