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Sheila Chandra – “ABoneCroneDrone”

Pop Rock

18 de Setembro de 1996
world

SHEILA CHANDRA
ABoneCroneDrone (8)
Real World, distri. EMI – VC


sc

Era previsível a forma que tomou este terceiro tomo de uma trilogia que se iniciou com “Weaving my Ancestor’s Voices”, prosseguiu no anterior “The Zen Kiss” e finalmente desembocou no oceano, literalmente sem margens, da “drone” pura e simples. Um passo lógico mas que não deixa de ser radical da parte desta cantora de ascendência indiana, para quem a experiência do canto se liga intimamente à da audição e do contacto místico com níveis superiores do ser, como é o da música, enquanto realidade ideal, no sentido que Platão lhe conferiu – entidade pré-existente à qual, por ascese, o homem pode aceder (contemplar) ou, no caso do músico, “roubar” de modo a transformá-la em frequências sonoras audíveis. Um sentido assumido até às últimas consequências por Sheila Chandra, que aqui se refere à sua música como “performance”, na medida em que se afirma como relação que exige a participação activa do auditor – sendo este último, em última análise, quem confere à matéria sonora os seus atributos semânticos e a sua organização final. Premissas que colocam “ABoneCroneDrone” e os seus seis segmentos-temas, todos com este título, na mesma linha ideológica e estética dos minimalistas e, em particular, de LaMonte Young e do seu conceito de música eterna, os quais, por sua vez, derivam das noções de “drone” e de ciclicidade da música indiana, afinal a matriz formal, filosófica e religiosa do movimento minimalista. Em “ABoneCroneDrone”, Sheila navega no interior do som, fazendo nascer, de maneira mágica, as melodias, do centro da harmonia, lugar de origem de todos os ordenamentos e sequenciações melódicas. Lugar, pois, de navegação mas também de pesca, onde uma simples sílaba se estende até ao infinito e a noção de polifonia se dilui na imensidão oceânica das microtonalidades e do jogo de combinações dos harmónicos, por sua vez multiplicados em micro-sinfonias subliminares. É difícil acreditar que esta Sheila Chandra seja a mesma que, nos anos 80, levou “Ever so lonely”, com os Monsoon, aos tops de vendas. Em “ABoneCroneDrone”, a cantora alinha-se na vanguarda do experimentalismo vocal, embora – e bastaria esta diferença para a distinguir de algumas das suas companheiras representantes de correntes e técnicas de canto ocidentais – sem cortar os elos de ligação aos princípios da música indiana tradicional. No fundo, “tecendo”, de maneira inovadora, as tais “vozes dos seus antepassados”.



Sheila Chandra – “The Zen Kiss”

Pop Rock

18 de Maio de 1994
WORLD

Sheila Chandra
The Zen Kiss

Real World, distri. EMI-VC


sc

O título é uma metáfora para um estado físico e psicológico, leia-se religioso, que Sheila Chandra diz sentir no acto de cantar. Na linha do anterior “Weaving My Ancestor’s Voices”, “The Zen Kiss” é uma exploração e apropriação de determinadas técnicas vocais . tradicionais e contemporâneas – que têm por objectivo a unificação do corpo e da vibração musical num todo. “A capella” ou apoiada em “drones” electrónicas, neste caso prolongando certos estilos vocais indianos de forma semelhante a Noirin Ní Riain, por exemplo, com o seu “surpeti”, em “Vox de Nube”, Sheila Chandra opera segundo um misto de intuição e esquematização quase matemática. A espontaneidade é apenas aparente quando verificamos o trabalho de “colagem” naturalista presente nos dois temas intitulados “Speaking in tongues”, nos quais esta cantora inglesa de origem indiana junta ritmos e onomatopeias decalcadas de anúncios de televisão, a transposição para a voz de padrões rítmicos de tablas e mrdingam indianos e estilos vocais da tradição céltica. As ornamentações vocais integram, por outro lado, elementos celtas, búlgaros, islâmicos e andaluzes. Distante do registo mais acessível que a levou aos “tops” com os Monsoon, Sheila Chandra mostra em “The Zen Kiss” ser uma cantora para quem o canto significa algo mais do que uma boa melodia. Mas, por outro lado, esse desejo de aventura esbarra com a vontade de não querer chocar. E assim, em vez de uma Meredith Monk ou Shelley Hirsch de pendor tradicionalista, temos antes uma Enya vanguardista bem resguardada numa produção “new age”. (7)



Sheila Chandra – “Weaving My Ancestors’ Voices” + Joan La Barbara – “Sound Paintings”

Pop Rock

27 MAIO 1992

LIÇÕES DE CANTO

SHEILA CHANDRA
Weaving My Ancestors’ Voices (7)
LP/CD, Real World, distri. Edisom

SC

JOAN LA BARBARA
Sound Paintings (8)
CD, Lovely Music, import. Contraverso

jlb

Nunca se sabe o que a voz de uma mulher esconde sob o canto. Sheila Chandra e Joan La Barbara escondem o tempo. A primeira retoma o passado na forma das tradições vocais da Irlanda e da sua Índia natal para o projectar, transfigurado, no futuro, através de uma abordagem conotada com a “new age”. A segunda move-se no seio da vanguarda, utiliza técnicas vocais experimentais desenvolvidas ao longo de 20 anos de carreira, agarra na modernidade de Klee, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles ou na iconografia do pós-guerra da cidade de Berlim para finalmente criar música em que o canto toma de assalto o passado, canto do corpo, do sangue e da pele, feito de pulsações rítmicas, respirações, gritos e murmúrios.
Sheila é uma tradicionalista que quer parecer moderna. Joan, uma exploradora que parte do fim em busca das origens.
Sheila Chandra tornou-se conhecida há alguns anos atrás com uma canção que chegou aos “tops”: “Ever so lonely”. Depois dedicou-se à música indiana. “Weaving My Ancestors’ Voices” é um pouco como o disco de Claire Hammill sobre as estações. A voz estende-se sobre “drones” infinitas criadas pela simulação electrónica de “Tampuras” ou por si própria recriada em ecos e refracções ambientais.
A cantora indiana interessa-se, diz ela, em comparar as semelhanças existentes entre culturas diferentes e depois em misturá-las. Técnicas vocais indianas são utilizadas na interpretação de temas tradicionais irlandeses. Em “Speaking in tongues”, a voz declaca as batidas do “mrdingam” e de “tablas”. “Nana”, uma peça de Manuel de Falla, explora a vertente árabe da música espanhola.
Há hinos e ragas, baladas e suspiros, sobre um “continuum” sonoro que confere ao disco tonalidades hipnóticas e uma serenidade nunca perturbada.
Joan La Barbara, pelo contrário, manda a serenidade às urtigas. “Sound Paintings”, que inclui obras escritas entre 1979 e 1988, investe no perigo e na diferença. São peças, na maioria encomendadas, que recriam pela voz ambientes ou vivências específicas: as cores tropicais da praia de Miami, com a voz servindo de tambor ou imitando ruído de animais, entre o pio e o grunhido (“Urban tropics”); um estudo psicológico sobre “as sombras e memórias que invadem a periferia do pensamento”, de vocalizações cavernosas e cânticos sombrios (“Shadowsong”); uma “animação sónica” dos movimentos de atletas em competição, elaborada a partir de respirações repetitivas, com recurso à técnica das “multiphonics” e ao “canto circular” (som também emitido durante a inspiração), em “Time (d) and unscheduled events”. Em “Erin”, há folclores, conversas cruzadas e um coro de tragédia na evocação da morte de um membro do IRA; “Klee alee” reporta-se a uma pintura de Paul Klee em que se procura o som das cores; as memórias de Berlim são evocadas num crescendo obsessivo, construído sobre repetições e cortado pelo som de sirenes da polícia ou o resfolegar de uma locomotiva em “Berlin träume”.
Em todos os temas, a voz jamais se sujeita a qualquer tipo de processamento electrónico, partindo à descoberta das “pinturas de som” que o título refere, em tempo real ou desmultiplicada em “multitracking”. “Sound paintings” insinua e materializa, de forma progressiva, os ritmos do corpo e as asas do espírito. Pelo sopro da voz que é a vida.

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