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Rui Veloso – “Auto da Pimenta” (artigo de opinião)

Secção Cultura Quarta-Feira, 20.11.1991


Rui Veloso e Carlos Tê, Que Lançam Esta Semana “Auto Da Pimenta”, Ao Público
“As Descobertas Foram Feitas Por Homens Normais”


… Entrevista a Rui Veloso e Carlos Tê, por Luís Maio …

Artigo, por Fernando Magalhães
Peregrinação dos Portugueses Eléctricos

“Auto da Pimenta”, novo trabalho da dupla Rui Veloso / Carlos Tê, é uma peregrinação pela gesta dos Descobrimentos que inventa novos rumos para a música popular portuguesa. Um disco especioso.



Agora que a famigerada ópera de Philip Glass está concluída, convinha arranjar uma honrosa alternativa nacional. “Auto da Pimenta” constituiu essa alternativa, que tem pelo menos sobre a primeira a vantagem de ser mais económica. Que são 6000 mil contos, que foi quanto a Comissão dos Descobrimentos dispendeu com “Auto da Pimenta”, em comparação com as enormidades exigidas pelos americanos? Pelo mesmo preço fica cada rabisco de Robert Wilson ou meia dúzia de notas de Philip Glass.
Claro que haverá quem recorde que, anos antes de se começarem a lançar os foguetes, já Fausto recolhia as canas e editara a obra-prima “Por Este Rio Acima”, sobre idêntica temática. Mas era preciso uma coisa nova, moderna, que fizesse vista.
Rui Veloso e Carlos Tê saíram-se muito a contento da tarefa. “Auto da Pimenta” constitui desde já o seu melhor trabalho discográfico e, ao nível dos textos, um tratado na arte de bem escrever letras de canções em português, roteiro de viagem pelos mares da poesia escrita, mapa de navegação à disposição dos aprendizes. Carlos Tê revela-se mestre da palavra, navegando sem medo nem desfalecimento pelas águas da inspiração e da gramática. A música de “Auto da Pimenta” começa por aí, pela palavra. Há na métrica dos textos de Carlos Tê a noção da musicalidade, do ritmo certo, da cadência emocional exigida por cada tema. E o conhecimento antecipado dos rumos que a voz do Rui lhes empresta. Carlos Tê retoma a História e as suas histórias, de “pessoas e de emoções. As emoções que vivem depois das personagens desaparecerem. E que permitem a tristeza de sempre”. Histórias de uma História que “não era bem assim”: “Que boa colheita de almas!’ disse de contente o papa / ao ver as chagas de Cristo a tomar conta do mapa / e em paga dos meus serviços ali fui feito feitor / e eis tudo o que passei só por um crime de amor”.
E com Carlos Tê avança também Rui Veloso pelo descobrimento de novas formas e territórios para a música popular portuguesa. Dos blues o criador de “Chico Fininho” aporta a outras paragens: do “reggae” de “Cabo Sim Cabo Não” à recriação guitarrística dos anos 50 e dos Shadows em “Lançado”, da batida africana de “Faena do Mar” à balada evocativa de Fausto, “Praia das Lágrimas”, das sugestões medievais de “Canção de marinhar” à chula de “O Ourives Mestre João”, dos blues de “À Sombra da Tamareira” ao funky renascentista de “Memorial”. Preside às 19 canções de “Auto da Pimenta” a mesma atitude universalista que norteou a aventura marítima dos Descobrimentos portugueses.
Síntese do passado e da modernidade, do mar e das novas aventuras em motorizada pela marginal, exemplificada no tema final, “Brizas do Restelo”, epopeia dos jovens portugueses de hoje, “dandies afectados com linhagem e requinte” com mais de “oitocentos anos” (embora ninguém lhes dê “mais de vinte”…), para quem “o mundo é demasiado pequenino para lhes conter a alma”. O futuro cantado em traços de humor e ironia.
Destaque para a originalidade dos arranjos, que juntam a electricidade às referências tradicionais, e para a escolha criteriosa dos músicos convidados, entre eles Manuel Tentúgal, dos Vai de Roda, em “tin whistle”, ponteira, sanfona e “bodhran”, Maria João, vocalista, Jay Burnett, nos samplers, José Peixoto, na guitarra eléctrica e, à laia de provocação, um Marcelo Salazar nas percussões…
Registe-se o grande cuidado posto na apresentação de “Auto da Pimenta” (louvor para Luís Filipe Cunha, responsável por todo o trabalho de “art & design”): desde a embalagem de luxo, ao “lettering” e ao livro interior que, além das letras, notas introdutórias e ficha técnica detalhadas, inclui gravuras e citações alusivas à época. Rui Veloso e Carlos Tê descobriram o caminho musical para a Índia e para a ilha dos Amores em “Auto da Pimenta”, a mais valiosa especiaria.

Rui Veloso e Carlos Tê – “Peregrinação dos Portugueses Eléctricos”

Secção Cultura Quarta-Feira, 20.11.1991

Rui Veloso e Carlos Tê, Que Lançam Esta Semana “Auto Da Pimenta”, Ao Público
“As Descobertas Foram Feitas Por Homens Normais”
… Entrevista a Rui Veloso e Carlos Tê, por Luís Maio …


Artigo, por Fernando Magalhães
Peregrinação dos Portugueses Eléctricos


“Auto da Pimenta”, novo trabalho da dupla Rui Veloso / Carlos Tê, é uma peregrinação pela gesta dos Descobrimentos que inventa novos rumos para a música popular portuguesa. Um disco especioso.



Agora que a famigerada ópera de Philip Glass está concluída, convinha arranjar uma honrosa alternativa nacional. “Auto da Pimenta” constituiu essa alternativa, que tem pelo menos sobre a primeira a vantagem de ser mais económica. Que são 6000 mil contos, que foi quanto a Comissão dos Descobrimentos dispendeu com “Auto da Pimenta”, em comparação com as enormidades exigidas pelos americanos? Pelo mesmo preço fica cada rabisco de Robert Wilson ou meia dúzia de notas de Philip Glass.
Claro que haverá quem recorde que, anos antes de se começarem a lançar os foguetes, já Fausto recolhia as canas e editara a obra-prima “Por Este Rio Acima”, sobre idêntica temática. Mas era preciso uma coisa nova, moderna, que fizesse vista.
Rui Veloso e Carlos Tê saíram-se muito a contento da tarefa. “Auto da Pimenta” constitui desde já o seu melhor trabalho discográfico e, ao nível dos textos, um tratado na arte de bem escrever letras de canções em português, roteiro de viagem pelos mares da poesia escrita, mapa de navegação à disposição dos aprendizes. Carlos Tê revela-se mestre da palavra, navegando sem medo nem desfalecimento pelas águas da inspiração e da gramática. A música de “Auto da Pimenta” começa por aí, pela palavra. Há na métrica dos textos de Carlos Tê a noção da musicalidade, do ritmo certo, da cadência emocional exigida por cada tema. E o conhecimento antecipado dos rumos que a voz do Rui lhes empresta. Carlos Tê retoma a História e as suas histórias, de “pessoas e de emoções. As emoções que vivem depois das personagens desaparecerem. E que permitem a tristeza de sempre”. Histórias de uma História que “não era bem assim”: “Que boa colheita de almas!’ disse de contente o papa / ao ver as chagas de Cristo a tomar conta do mapa / e em paga dos meus serviços ali fui feito feitor / e eis tudo o que passei só por um crime de amor”.
E com Carlos Tê avança também Rui Veloso pelo descobrimento de novas formas e territórios para a música popular portuguesa. Dos blues o criador de “Chico Fininho” aporta a outras paragens: do “reggae” de “Cabo Sim Cabo Não” à recriação guitarrística dos anos 50 e dos Shadows em “Lançado”, da batida africana de “Faena do Mar” à balada evocativa de Fausto, “Praia das Lágrimas”, das sugestões medievais de “Canção de marinhar” à chula de “O Ourives Mestre João”, dos blues de “À Sombra da Tamareira” ao funky renascentista de “Memorial”. Preside às 19 canções de “Auto da Pimenta” a mesma atitude universalista que norteou a aventura marítima dos Descobrimentos portugueses.
Síntese do passado e da modernidade, do mar e das novas aventuras em motorizada pela marginal, exemplificada no tema final, “Brizas do Restelo”, epopeia dos jovens portugueses de hoje, “dandies afectados com linhagem e requinte” com mais de “oitocentos anos” (embora ninguém lhes dê “mais de vinte”…), para quem “o mundo é demasiado pequenino para lhes conter a alma”. O futuro cantado em traços de humor e ironia.
Destaque para a originalidade dos arranjos, que juntam a electricidade às referências tradicionais, e para a escolha criteriosa dos músicos convidados, entre eles Manuel Tentúgal, dos Vai de Roda, em “tin whistle”, ponteira, sanfona e “bodhran”, Maria João, vocalista, Jay Burnett, nos samplers, José Peixoto, na guitarra eléctrica e, à laia de provocação, um Marcelo Salazar nas percussões…
Registe-se o grande cuidado posto na apresentação de “Auto da Pimenta” (louvor para Luís Filipe Cunha, responsável por todo o trabalho de “art & design”): desde a embalagem de luxo, ao “lettering” e ao livro interior que, além das letras, notas introdutórias e ficha técnica detalhadas, inclui gravuras e citações alusivas à época. Rui Veloso e Carlos Tê descobriram o caminho musical para a Índia e para a ilha dos Amores em “Auto da Pimenta”, a mais valiosa especiaria.