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Rivalizando Com Os Clássicos

14.08.1998
Rivalizando Com Os Clássicos
O rock ambicionou rivalizar com os clássicos ao entrar na chamada “idade adulta”, algures entre 1969 e 1974. Dos King Crimson aos Procol Harum, passando mesmo pelos Deep Purple, a música eléctrica jogou a cartada do prestígio e da seriedade. E nem tudo foi tão desastroso quanto a reacção punk quis fazer crer.

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Em 1970, um crítico do jornal inglês “Melody Maker” intitulava a sua recensão de “Lizard”, terceiro álbum dos King Crimson: “Rivalling the Classics”, rivalizando com os clássicos, título demonstrativo, em partes iguais, de espanto e de admiração. Espanto porque “Lizard” representa, de facto, um salto qualitativo enorme. Admiração, perante a complexidade ostensiva e a riqueza “orquestral” dos arranjos de um álbum que ficou como um dos marcos da música progresiva e que, devido a essa complexidade estrutural, podia de facto rivalizar com as grandes construções sinfónicas da música clássica.
Mas “Lizard” representa uma excepção numa música que sofreu nas décadas seguintes com o anátema redutor de “rock sinfónico” que alguma crítica pouco esclarecida lhe colou, provavelmente confundindo a parte tardia e americana, de aventesmas como os Journey e os Boston, com o todo. Mas, como se pode ler numa das últimas edições da revista “Wire”, a propósito do novo (e excelente) álbum dos 5Uu’s, nos anos 70 e na música progressiva em particular, para cada Emerson, Lake & Palmer, Renaissance e Procol Harum existiram sempre uns Soft Machine, Magma ou Faust.
Seria, contudo, fácil ver na década de 70 um cadinho de excessos, mas tal não se verificou. A complexidade do progressivo orientou-se noutra direcção, aumentando não o formato clássico da canção pop da década anterior (Beatles, Stones, Kinks, Beach Boys), mas sim o esqueleto dos blues. São os blues, e a sua derivação para o rhythm’n’blues, que em Inglaterra partem para a grande aventura do progressivo, através da inclusão de estéticas que, essas sim, eram alheias às raízes negras. Dos Jethro Tull aos Blowding Pig, dos Atomic Rooster aos Colosseum, dos Jody Grind aos Grounhogs.
Assiste-se então, sobretudo entre 1969 e 1974, à proliferação de faixas longuíssimas que deveriam ocupar lados inteiros de um LP ou, melhor ainda, um disco inteiro (“Tales from Topographic Oceans”, dos Yes, preenchia dois…). Por outro lado, era ponto de honra mostrar nas capas fichas técnicas não menos extensas, com a descrição detalhada de todos os instrumentos utilizados, do sintetizador mais sofisticado à campainha de porta. A música clássica entrava, como era evidente – até pela formação erudita que tinham sobretudo os teclistas das bandas -, nesta equação, bem como a utilização de instrumentos clássicos. Exemplares desta cultura intelectualizante e erudita foram os Gentle Giant, que faziam gala em integrar na sua música o violoncelo, o timbalão de orquestra, o oboé e o fagote. Mas os Gentle Giant eram geniais, apesar de usarem, num dos temas do seu álbum de estreia, “Gentle Giant”, algumas notas de piano de “Fur Elise”, e Beethoven, sem mencionarem a fonte.
Por outro lado, a utilização de orquestras (que, aliás, já vinha dos anos 60, dos Beatles aos Moody Blues) serviu sempre mais de balão de oxigénio do que de veículo de enormes inspirações épicas. “Concerto for Group and Orchestra”, dos Deep Purple, ou “Live in Edmonton”, dos Procol Harum – que viraram ao contrário a “Suite nº 3 em Ré Maior” de Bach, em “A Whiter Shade of Pale”… – são meras redundâncias orquestrais que funcionaram para os respectivos autores do mesmo modo que uma injecção de corticóides num atleta.
depois há as imitações de composições clássicas. Os Emerson, Lake & Palmer gravaram um álbum inteiro com a sua recriação das “Pictures at an Exhibition”, de Mussorgski. Os Renaissance fizeram a sua própria “Schherazade”, de Rimsky-Korsakov. Mesmo os Egg, paradigma do lado mais criativo e experimental do progressivo, não resistiram a mostrar no álbum de estreia que eram capazes de interpretar à sua maneira a “Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach, ao mesmo tempo que se inspiraram num dos andamentos da sua “Symphony nº 2”, “Danse des Adolescents”, e na “Sagração da Primavera”, de Stravinsky. Rick Wakeman, dos Yes, enfiou a sua adaptação do terceiro andamento da “Quarta Sinfonia em Mi Menor”, de Brahms, em “Frasgile”. Os Beggars Opera, em “Act One”, transformaram em “hard rock” a música de Franz Von Suppé. Richard Harvey, dos Gryphon, gravou a solo “Divisions on a Ground”, um exercício de música barroca onde mostrou todo o seu virtuosismo na flauta de bisel. Vivaldi era presença assídua no violino de Daryl Way, dos Curved Air.
Mas estes foram pecados menores de uma música que viajou tão longe quanto lhe foi concedido pela indústria, antes de ser estrangulada pelo punk. Nesta medida, na vontade nietzscheana em transcender os seus próprios limites, a música progressiva, rivalizou, de facto, com os clássicos.