Depois de Pedro Caldeira Cabral e das suas “Memórias da Guitarra Portuguesa” é a vez de Ricardo Rocha testemunhar a favor (embora a entrevista ao lado possa sugerir mais um “contra”…) da guitarra portuguesa e das suas especificidades enquanto instrumento que melhor exprime um modo de sentir (tradicional?) português mas que finalmente se abre para um universalismo, de ordem não só estética como ideológica, antes apenas enunciado.
“Voluptuária” pode ser encarado como o terceiro momento, ou movimento de um caminho de emancipação deste instrumento que terá tido origem em Carlos Paredes, prosseguindo no sentido de uma certa “normalização” estilística através de Pedro Caldeira Cabral, e finalmente sido redimido das suas limitações próprias e enquadrado no campo mesmo das novas músicas, por Ricardo Rocha. De Paredes retirou Rocha a expressividade física (o arrebatamento, esse é próprio da alma de cada um) enquanto de Caldeira Cabral aproveitou o gosto pelo jogo das formas e a propensão para um estruturalismo mais cerebral que em Paredes mal se deixava perceber por detrás do dilúvio das emoções.
Rocha possui uma visão de campo alargada, sente o tempo de uma forma que lhe permite ir do minimalismo e da repetição ao estatismo, das cascatas de acordes que tombam em dilúvio às notas soltas que flutuam com vida própria no seio do silêncio. Do classicismo, reiterado nas três composições em forma de “trompe l’oeil” com dedicatória a Scriabin e enredado nos parâmetros do contraponto e do Barroco nas peças para cravo, ao abstracionismo cultivado, à sombra de um acompanhamento discreto da guitarra, nas peças para violino. É, porém, no gosto pelo equilíbrio e na preocupação, quase obsessiva, pelo detalhe (inclusive posto em prática no trabalho meticuloso da escolha dos títulos e no grafismo da embalagem, um digipak que põe em contraste o lado cósmico com o microcosmos dos pequenos ícones pessoais) que Ricardo Rocha se revela exímio, propondo a integração da guitarra portuguesa numa “new age” de contornos inovadores onde as noções de tradicionalismo e modernidade se esbatem e a beleza não se esgota nas cores de uma natureza-morta, antes é espaço de procura de novos horizontes.
(público >> y >> portugueses >> entrevista)
06 Junho 2003
Junta-se ao grupo dos mestres da guitarra portuguesa. O disco aproxima-nos de algo que não se diz em palavras mas se sente como nostalgia do paraíso perdido.
combate com a guitarra
Com “Voluptuária”, Ricardo Rocha, 28 anos, expõe uma nova conceção musical para a guitarra portuguesa que vai do minimalismo à música de câmara, passando pelo ambientalismo e por uma perspetiva original sobre Carlos Paredes.
O neto de Fontes Rocha refuta o virtuosismo, impossível de obter num instrumento que considera “limitado”, mas a verdade é que este duplo álbum com que agora se estreia a solo, “Voluptuária”, materializa essa noção de “benfeitoria” que consiste em tornar o Belo amável. Ou, como se pode ler no texto que acompanha esta edição, “há diletantismo do benfeitor, com o objetivo de deleitar-se ou recrear-se, haja vista que o bem principal a que se junta uma benfeitoria a dispensa, pelo aspeto utilitário ou funcional, mas fica mais formoso ou recreador”.
Além de Carlos Paredes, “Voluptuária” inclui temas de Pedro Caldeira Cabral e composições próprias, fazendo sobressair uma originalidade que é, afinal, e segundo o seu autor, o que de verdadeiramente “genial” pode existir nesta luta mais do que contra com a guitarra portuguesa. Volúpia ou pesadelo?
Na capa do disco pode ler-se: “Voluptuária” “não se explica, não se descreve, não se define”. Mesmo assim, tente lá uma explicação…
A primeira parte do disco é menos acessível. O segundo disco, sem ser totalmente a solo, é mais leve e colorido. Ou menos escuro. Mais para o azul-escuro… As peças para cravo e violino têm a mesma tonalidade. O seu nome já era conhecido a partir de participações em discos de Carlos do Carmo, Janita Salomé, Sérgio Godinho, Vitorino ou Mafalda Arnauth. Agora estreia-se a solo com um duplo. Que circunstâncias propiciaram que fosse assim?
Em parte foi pelo local de gravação, o Convento dos Capuchos, um sítio magnífico. Depois, não houve aquele compromisso burocrático com as editoras, contratos, essas coisas horríveis… E já tinha bastantes peças feitas. Ia para lá uma vez por semana, ao fim da tarde, e ficava até à meia-noite, duas da manhã… Ao fim de 20 dias o disco ficou pronto. Quer explicar a razão de ser do título?
“Voluptuária” é o título de uma peça que faz uma aproximação, até obsessiva, entre a palavra e o conteúdo musical. Acho absurdo dar um título ao calha a uma música. Normalmente até demoro mais tempo a encontrar um título do que a compor a peça (risos). Ridículo mas verdadeiro (risos). Mas… no caso de “Voluptuária” tem a ver com “voluptuoso”, “lúbrico”, “prazer”, “deleite”, sem chegar à “luxúria” e ao “lascivo” (risos)… No disco há uma “Rotina enfadonha” e um “Estaticismo”, por sinal os dois temas mais longos…
“Rotina enfadonha” é uma peça repetitiva, no sentido rítmico, quase hipnótico. Com um lado irónico. Esta rotina pode ser a do dia-a-dia de cada um, embora neste caso fale por mim. Mas é também essa rotina rítmica que, a dado momento, desaparece para dar lugar a outro ambiente, embora, no fim, regresse de novo… O “Estaticismo” é uma peça parada, direcionando-se de uma forma “extática”. … Já para não falar de uma “Teoria falhada”…
Essa tem a ver com o facto de, quando a estava a fazer, me ter enganado do princípio ao fim. Nesta peça, não foi seguida a regra das 12 notas. Fiz 12 notas quando me apercebi de que a 12ª só aparecia já na série seguinte de notas. Das duas uma, ou fazia tudo do princípio, ou continuava. Ironicamente, apercebi-me de que era mais fácil construir segundo esta nova maneira. Não exigia tanto esforço mental, ou esforço auditivo. É difícil encontrar uma série de 12 notas em que todos os intervalos soem bem. Faz também uma homenagem tripla ao compositor clássico Alexander Scriabin (1872-1915).
Porque o estilo dessas três peças está de acordo com o de uma determinada fase da música dele. É o meu compositor preferido. O primeiro CD conclui-se com composições de Pedro Caldeira Cabral. De que forma abordou a música deste compositor?
São peças extraordinariamente bem construídas para a guitarra e todas elas possuem uma inspiração magnífica, ao nível melódico e harmónico. Sente mais prazer em tocar a música de Caldeira Cabral ou a de Carlos Paredes?
São dois mundos distintos. Ao tocar Paredes, a sensação que se tem é a de uma grande fisicalidade. É uma música indissociável do seu autor e de uma forma muito particular de a executar?
Mesmo quando outra pessoa toca Paredes, tem de o fazer de forma física. Agora, o tempo, as “nuances”, a dinâmica, é fundamental que seja alterada, sob pena de se cair no ridículo da imitação. É preciso banir a cópia da interpretação e entrar num processo, que não é fácil, de esquecer isso tudo e olhar para a peça como se fosse a primeira vez. É difícil interiorizar a música de Paredes?
É difícil de interpretar. E o mais difícil é a pessoa abstrair-se da forma de ele tocar. Quando falava de uma forma física, queria dizer de forma enérgica. Sem energia, a música não soa a nada. O lado trágico na música do Paredes: “apropriou-se” dele?
Sim. E do seu lado misterioso, sobretudo em “A noite”, curiosamente um tema que usa uma linguagem nada habitual nele. É uma peça escura. Carlos Paredes está para a guitarra portuguesa como Amália para o fado? Uma referência que pode tornar-se “maldição”?
Pode ser perigoso… Mas não sinto isso. A música que faço na guitarra portuguesa não tem nada a ver com ele. Rapidamente percebi que seria inútil continuar um caminho que ele construiu, iniciado e acabado por ele. Ele fez questão de fazer tudo. É quase obrigatório tocar a música dele. Depois, das duas uma, ou se fica preso a ele ou direciona-se a guitarra para outro sítio. Na peça do álbum em que lhe presto homenagem, curiosamente, não estava nada à espera de conseguir compor no estilo do Paredes. Mas, coisa extraordinária, o estilo rítmico, as “nuances” e o carater melódico têm muito a ver com as formas que ele utilizava. Foi a única vez que fiz isso. Qual o seu álbum preferido de Paredes?
“Movimento Perpétuo”. Que relação a sua guitarra mantém com o fado?
Uma boa relação. Gosto imenso de tocar fados quando o grupo funciona perfeitamente, como na música de câmara. Mas é raríssimo conseguir estar ao lado de mais duas ou três pessoas que toquem bem ou, melhor ainda, que se entendam, se ouçam uns aos outros. A relação entre a guitarra portuguesa, a guitarra clássica e a guitarra baixo é a que mais se aproxima da minha visão tímbrica. É uma combinação extraordinária. E com o jazz e a música improvisada?
Há anos entrei para o Hot Clube onde tive umas aulas de piano mas acabei por nunca tocar jazz. A guitarra portuguesa não se enquadra nessa área, nos “standards”. Toquei música improvisada mas nada desse género. Foi engraçado. A guitarra portuguesa já atingiu os seus limites?
É um instrumento limitado. Não pode tocar um concerto com uma orquestra, por exemplo… Poder pode, o problema é que essa suposta peça teria de ser construída de forma idiomática, para guitarra. Não é como um violino ou um violoncelo que tocam quase tudo. A guitarra, não, é uma coisa limitada, menor, que traz problemas atrás de problemas. Então que gozo tem em tocá-la?
Não existe gozo nenhum. O confronto e os obstáculos são uns atrás dos outros. Existe, sim, uma sonoridade característica e uma potência, uma projeção de volume que raros instrumentos de corda com trastes têm. Consegue passar por cima de um cravo, por exemplo. Trata-se, então, de um mundo autónomo?
Um mundo à parte, sim… É limitado em relação a um violino ou a um piano, instrumentos melódicos com uma capacidade extraordinária para executar qualquer tipo de melodia virtuosística. Na guitarra… acabou! (risos). É um instrumento híbrido que acaba por não ser nem melódico nem harmónico. É a única definição real que se pode dar da guitarra portuguesa. Não é clara, nem assumida, nem transparente… A própria guitarra clássica é muito mais completa que a guitarra portuguesa. Não será um caso de personalidade demasiado vincada?
Digamos que se afoga na sua personalidade (risos). E, na sua “luta” contra esse “monstro”, já atingiu os limites?
Não me preocupo com isso. Em cada coisa que toco deparo-me sempre com dificuldades. O objetivo principal é ouvir aquilo que quero ouvir e construir as notas que quero construir. Mas por vezes deparo-me com problemas difíceis de ultrapassar. Tento ultrapassá-los, mas sem nunca perder a noção de que não o consigo fazer (risos). Os problemas surgem porque as coisas que quero ouvir, as notas e a sua sequência, são difíceis de executar na prática. Às vezes o que pretendo ouvir não se propicia. Tudo isto terá a ver com o facto de eu também tocar piano e o piano abrir um leque sonoro vastíssimo que depois não pode ser transposto para a guitarra. É uma tragédia! (risos). Subentende-se que tocar guitarra portuguesa é uma luta sem quartel?
Uma luta permanente. Angustiante e frustrante. É um desafio mórbido. Chega-se ao fim de 50 ou 60 anos a tocar o instrumento e continua-se com os mesmos problemas. É uma aberração! (risos). O que é então ser-se um virtuoso neste instrumento?
Não conheço ninguém virtuoso na guitarra portuguesa. Virtuosos são Liszt, Glen Gould, Keith Jarrett. Esse virtuosismo não existe na guitarra portuguesa. Porque não apareceu nenhuma pessoa que o demonstrasse e porque o próprio instrumento impossibilita-o. Não está preparado nem musical nem fisicamente para entrar nesse alto jogo. Por vezes dá a ideia de que a guitarra portuguesa é como que um instrumento “mecânico”, como um realejo, em que determinadas sequências de notas parecem impor-se naturalmente…
Sim, há essa imposição, não dá hipóteses de escolha. Se não for assim, não pode ser de outra maneira. Já se sujeitou, já está convencido, a guitarra venceu-o?
Teoricamente sei isso. Mas na prática não o faço. E como não faço isso, sujeito-me a esse confronto constante com o instrumento, com dissabores técnicos e problemas dramáticos. É um pesadelo! Tem mestres da guitarra portuguesa?
Carlos Paredes, o meu avô [Fontes Rocha], José Nunes. Todos geniais. Voltando à carga: o que é ser-se genial na guitarra portuguesa?
Essencialmente, ter uma abordagem e um estilo pessoais, que é das coisas mais difíceis de conseguir. Ter um som impossível de imitar. Nunca pensou, como forma de ultrapassar esses problemas técnicos que aponta, em efetuar no estúdio gravações em multipistas?
Como transformar uma guitarra em várias? Não, nunca! Isso é uma coisa não muito honesta. Cheguei à conclusão de que o que interessa é poder executar, em qualquer circunstância, o resultado final. Apesar dos problemas serem quase intermináveis…
Depois de Pedro Caldeira Cabral e das suas “Memórias da Guitarra Portuguesa” é a vez de Ricardo Rocha testemunhar a gavor (embora a entrevista oa lado possa sugerir mais um “contra”…) da guitarra portuguesa e das suas especificidades enquanto instrumento que melhor exprime um modo de sentir (tradicional?) português mas que finalmente se abre para um universalismo, de ordem não só estética como ideológica, antes apenas enunciado.
“Voluptuária” pode ser encarado como o terceiro momento, ou movimento de um caminho de emancipação deste instrumento que terá tido origem em Carlos Paredes, prosseguindo no sentido de uma certa “normalização” estilística através de Pedro Caldeira Cabral, e finalmente sido redimido das suas limitações próprias e enquadrado no campo mesmo das novas músicas, por Ricardo Rocha. De Paredes retirou Rocha a expressividade física (o arrebatamento, esse é próprio da alma de cada um) enquanto de Caldeira Cabral aproveitou o gosto pelo jogo das formas e a propensão para um estruturalismo mais cerebral que em Paredes mal se deixava perceber por detrás do dilúvio das emoções. Rocha possui uma visão de campo alargada, sente o tempo de uma forma que lhe permite ir do minimalismo e da repetição ao estatismo, das cascatas de acordes que tombam em dilúvio às notas soltas que flutuam com vida própria no seio do silêncio. Do classicismo, reiterado nas três composições em forma de “trompe l’oeil” com dedicatória a Scriabin e enredado nos parâmetros do contraponto e do Barroco nas peças para cravo, ao abstraccionismo cultivado, à sombra de um acompanhamento discreto da guitarra, nas peças para violino. É, porém, no gosto pelo equilíbrio e na preocupação, quase obsessiva, pelo detalhe (inclusive posto em prática no trabalho meticuloso da escolha dos títulos e no grafismo da embalagem, um digipak que põe em contraste o lado cósmico com o microcosmos dos pequenos ícones pessoais) que Ricardo Rocha se revela exímio, propondo a integração da guitarra portuguesa numa “new age” de contornos inovadores onde as noções de tradicionalismo e modernidade se esbatem e a beleza não se esgota nas cores de uma natureza-morta, antes é espaço de procura de novos horizontes.