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sábado, 17 Maio 2003
Pianos do melhor jazz belga. Piano para ouvir de noite. Piano de um faraó. E um velho animatógrafo restaurado no ecrã do presente.
Pianos
NATHALIE LORIERS TRIO + EXTENSIONS
Tombouctou
De Werf
6 | 10
DEFOORT, TURNER, THYS, BLACK
Sound Plaza
De Werf
8 | 10
STEPHAN OLIVA, BRUNO CHEVILLON, PAUL MOTIAN
Intérieur Nuit
Night Bird
8 | 10
ANTONIO FARAÒ
Far Out
Camjazz
7 | 10
TOMMASO/RAVA QUARTET
La Dolce Vita
Camjazz
8 | 10
Todos distri. Multidisc
“The finest in Belgian Jazz”, “o melhor do jazz belga” é o nome de afixado na frente das capas desta série, composta por dez nomes, representativos do novo jazz belga, selecionados por um painel de 50 jornalistas e promotores de concertos. Todos eles com direito a gravação. Atrás, são enumerados os diversos apoios e patrocínios, incluindo os governamentais, ao projeto.
Não que o “melhor do jazz belga” seja propriamente o melhor jazz do mundo, mas fica o exemplo do que deve ser feito para apoiar uma música minoritária, num país pequeno. Como a Bélgica, à qual o jazz deve Toots Thielemans, Philip Catherine ou, o menos conhecido René Thomas.
A mais recente coqueluche do jazz belga chama-se Nathalie Loriers, pianista que ainda recentemente atuou em Portugal. “Tombouctou” (título inspirado na novela “Timbuktu”, de Paul Auster), apresenta-a com o seu trio habitual, aumentado pelo grupo Extensions e é ela que assina a totalidade dos temas.
Jazz bem balançado, elegante, delicado, frágil, compensa a ocasional pouca presença da pianista, com o vigor dos sopros de Laurent Blondiau (trompete e fliscórnio) e Kurt van Herck (saxofones soprano e tenor). “La rivière du présent” arrisca soluções mais abstratas, enquanto, com sinal oposto, “Mémoire d’Ô” se concentra no intimismo e lirismo de frases simples mas sentidas, com Blondiau a desempenhar o papel de Chet Baker. Nas “Obsessions”, o ataque (afago?) às teclas liberta uma feminilidade que, no posterior desenvolvimento, se retrai numa mera dissertação ao nível da pele. Bill Evans deu a solução: No jazz de jardim só há um caminho que faça brotar a força — para dentro, escavando a terra dos sentimentos. Nathalie dança, com as mãos e o espírito leves.
Outro dos escolhidos pelo painel dos “odd jazz journalists” foi o também pianista Kris Defoort que, em “Sound Plaza”, tem a companhia de Mark Turner (saxofone tenor), Nic Thys (contrabaixo e baixo elétrico), mais a estrela emergente da bateria, Jim Black, bem conhecido do público português.
“Sound Plaza” exige outra disponibilidade. Defoort compõe e improvisa numa gama mais larga de registos que a sua compatriota, percorrendo, resolvendo e explorando escalas cromáticas, fraseados multidimensionais, fracionando o ritmo e a melodia, oferecendo aos sopros matéria rica de trabalho. Como vem acontecendo com alguma frequência em várias latitudes do jazz contemporâneo, por vezes a música (como no título-tema) recorre a fórmulas e a uma respiração rítmica típicas do pós-jazz de Chicago, mas a energia, criada a partir de sobreposições e saturações, situações que o piano de Defoort domina como ninguém, flui, ora com a naturalidade de um rio, ora descentrada pelos polos de tensão criados pela percussão de Black, fabricante de ideias a um ritmo alarmante. “Subconsciouslee”, de Lee Konitz, recebe um tratamento à altura, com o pianista e o baterista a pesquisarem no fundo, sem perder de vista a rota que Konitz traçara em 1949 no álbum com este nome, ainda sob a tutela de Lennie Tristano. “Floating” é um instante de suspensão e recapitulação, cordas do piano percutidas, tambores Duracel e subidas e descidas do tenor em escada-rolante, logo interrompido pela diversão, na segunda ocorrência de “Blues is on the way”, com o “blues” teimosamente a deixar ver-se, para logo desaparecer de vista por detrás do horizonte, com passagem para o “one man show” do percussionista, em “Solo Jim”. A finalizar, “Tranen” faz a homenagem a Coltrane, um dos músicos favoritos deste belga, em cuja discografia figura, de resto, o álbum “Variations on a Love Supreme”. “Sound Plaza” é como banda desenhada — uma música fracionada numa sucessão de quadros, onomatopeias e episódios rocambolescos. E nisto, como se sabe, os belgas são bons.
Os franceses, idem. Mas “Intérieur Nuit” do trio do pianista Stephan Oliva, com Bruno Chevillon (baixo) e Paul Motian (bateria), a mesma formação que há três anos já fizera “Fantasm”, é literatura de outro quilate.
Músico de formação clássica, discípulo de Eric Watson, Oliva dispensa fronteiras e balizas, embora se possa detetar nele alguns excessos de formalismo. Sozinho, o piano sofre uma atração irresistível pela música contemporânea e por uma abordagem “concreta” do instrumento. Mas estão lá Chevillon e, sobretudo Motian (autor da maioria dos temas) a segurá-lo e a manter o balanço, num álbum de estudos, esquissos e cosmologias incompletas, por vezes difícil de acompanhar mas inesgotável nas propostas nele contidas. Os admiradores de Paul Bley, por exemplo, saberão apreciá-lo devidamente.
“Far out”, do pianista italiano Antonio Faraò, devolve as cores do jazz de Nova Iorque, pela simples razão de o seu principal parceiro se chamar Bob Berg, notável tenorista. Dois homens do Leste fecham a formação: Martin Gjakonovski (baixo) e Dejan Terzic (bateria). Nada de novo resulta desta inusitada geografia humana, mas é bom voltar, uma vez mais, ao berço. Ao local de todos os imaginários, onde as baladas solitárias se cruzam com o “hard bop” e a luz do Mediterrâneo alterna com a dos semáforos da 5ª Avenida. Quanto a Faraò, diz sobre ele Herbie Hancock que “não é somente um bom pianista, mas um grande pianista”. Se “Walking with my soul” e “Simple” são sufi cientes para lhe dar razão é, contudo, Berg quem “rouba o show”.
“La Dolce Vita”, de Tommaso/Rava Quartet, é um tratado de nostalgia sobre bandas sonoras de clássicos do cinema italiano. “Movie-ing jazz” através do qual o contrabaixista italiano Giovanni Tommaso refaz não só antigas afinidades com a música de Nino Rotta para “La Dolce Vita”, como estende o seu amor a “Perfume de Mulher” de Dino Risi, “A Aventura”, de Antonioni, ou “Il Prato”, de Paolo e Vittorio Taviani, entre outros filmes, e às respetivas partituras com assinatura de Armando Trovaioli, Giovanni Fusco e Ennio Morricone, com um “Sonho de Hitchcock”, de Enrico Rava, pelo meio.
Jazz para se ver. Ver o que ficou de um tempo feito de outras imagens e sons inventados dentro de outro tempo. Em criança, Tommaso apreciava acima de todos, Tótó e Stan Laurel, de cujas peripécias se enchia nas “matinées” do Cinema Nazionale de Lucca. Mas foi com Rotta e “La Dolce Vita” que reconheceu, e se reconheceu, nas “atmosferas”, “movimentos” e “circunstâncias” de um “passado indifi nível” a que, neste álbum, procura dar de novo vida. A este “Movieing jazz” apenas se pode e deve responder com igual devoção.