PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 28 MARÇO 1990 >> Videodiscos >> Pop
A VIDEOTECA
O CINEMA CÓSMICO
A alucinação e os sonhos, produzidos pela escola alemã da Kosmische Musik, na transição dos anos 60 para a década seguinte, transformaram-se quase todos em doses soporíficas de pseudo-contemplação New Age. O LSD foi trocado pelo Valium, o cérebro pelo umbigo, o sonho pelo sono. Alguns dos nomes importantes encontraram a porta de salvação no cinema. Os filmes interiores foram substituídos pelos de celuloide. O Cosmos, além de tudo, também podia ser rentável.
O exemplo foi dado, desde logo, por dois dos “progenitores”, oficialmente reconhecidos, do movimento, o místico minimalista Terry Riley e os psicadélicos Pink Floyd. O primeiro compôs música para o obscuro “Happy Endings” e “No Man’s Land”, de Alain Tanner, exemplo deplorável de minimalismo embonecado para turista ouvir. Quanto aos Floyd, tornaram-se famosas bandas sonoras como as de “Zabriskie Point”, de Antonioni, ou “La Valée”, na mais pura veia “hippie”. Os alemães tomaram-lhe o gosto e, a partir do exemplo dos “paizinhos”, foi um vê-se-te-avias. Dos que não perderam o tino, destacam-se três grandes bandas, todas elas ainda no ativo e a fazer das suas: Can, Tangerine Dream e Popol Vuh.
Filmes hipnóticos
Enquanto a maioria das bandas planantes da época só tardiamente e na fase decadente se preocupou em fazer música para filmes, de acordo com o falso argumento de que é mais fácil compor por medida, os Can deram logo de início a entender que consideravam a música e o cinema inseparáveis. O álbum de estreia, de 1970, intitula-se “Monster Movie” e, no mesmo ano, foi editado “Soundtracks”, que reunia temas de bandas sonoras como “Deadlock”, de Lamont Johnson, e “Deep End”, de Jerzy Skolimowski. “Movies” é também o título sintomático da obra-prima do baixista dos Holger Czukay. O longo tema “Hollywood Symphony” merece ser apelidado de “música imagética”, a rítmica hipnótica típica dos Can, que sustenta uma sequência de colagens acústicas, efetuadas como se de uma montagem cinematográfica se tratasse.
No caso particular do teclista Irmin Schmidt, cuja fase inicial tem a designação genérica de “Filmmuzik”, dividida por diversos volumes, é já patente a total submissão da feitura musical aos imperativos do argumento. Os quatro volumes da série valem essencialmente como demonstração da faceta mais romântica e pianística de Schmidt, que parece ter seduzido cineastas como Hajo Gies (“Ruhe Sanft, Bruno”), Klaus Emmerich (“Leben Gundlings Friedrich Von Preussen Lessings Schlaf Traum Schrei” – título curto, este…), Reinhard Hauff (“Der Mann Auf Der Mauer”) ou Herbert Wolfertz (“Es Ist Nicht Aller Tage Abend”). Mais fácil é “Flight to Berlin” de Christopher Petit, o mesmo do “Cult Movie”, “Radio On”, por sinal com música, via rádio, dos Kraftwerk e de Robert Fripp. Os Can cumpriam assim a preceito a sua missão de cinéfilos, compondo excelentes bandas sonoras para filmes talvez nem sempre à sua altura.
Tangerinas de serviço
Os Tangerine Dream, tal como o grego Vangelis, são sócios vitalícios do clube dos “compositores de música para filmes”. Três em cada duas bandas sonoras trazem a sua assinatura. Os Dream, depois de um período áureo, encerrado com os compêndios de música eletrónica “Phaedra” e “Rubycon”, passaram os últimos quinze anos entretidos com ninharias, decidindo a dada altura que o negócio das “fitas” era capaz de ser bem mais rentável que o das “músicas vanguardistas”. Depois de “The Sorcerer”, de William Friedkin, nunca mais pararam, tornando-se funcionários, em serviço permanente, das repartições da Sétima Arte.
A maioria dos filmes em que colaboraram são medíocres e os seus realizadores ainda mais. Alguém já ouviu falar de Mike Gray, William Tannen, Kathryn Bigelow (!) ou Phil Joanou (!!), todos realizadores encartados? Os Tangerine Dream já e é deles a música dos filmes “Wavelength”, “Flashpoint”, “Near Dark” e “Three o’clock High”. Mais conhecidos são “Thief”, de Michael Mann, “Firestarter”, de Frank Capra Jr., “Risky Business”, de Paul Brickman, e “Shy People”, de Andrei Konchalovsky. Com os Tangerine Dream é caso para dizer que os Cosmos inicial foi encolhendo até atingir as dimensões de uma fita da série Z.
O piano de Herzog
Com os Popol Vuh dá-se o inverso do vai-a-todas dos Tangerine Dream, tendo a banda do pianista Florian Fricke colaborado exclusivamente com o realizador Werner Herzog.
Os Popol Vuh começaram por alinhar ao lado dos exploradores eletrónicos, sendo Florian Fricke um dos pioneiros na utilização do sintetizador Moog, em discos como o clássico “In Der Garten Pharaos”. Cedo, porém, Fricke enveredou por outras vias e trocou de vez a eletrónica pelo piano e por sonoridades mais intimistas, dando voz às suas preocupações religiosas. O silêncio e o progressivo despojamento formal da música dos Popol Vuh, bem patentes em obras magníficas como “Hosianna Mantra”, “Das Hohelied Salomos” ou os mais recentes “Tantric Songs” e “Spirit of Peace”, só encontram paralelo na fase atual de Terry Riley (as mesmas conceções e idêntica abordagem pianística no duplo “The Harp of New Albion”) e no músico e teórico alemão Peter Michael Hamel.
A associação com Herzog começou com “Aguirre” e tem prosseguido com regularidade em obras como “Coeur de Verre”, “Nosferatu”, “Fitzcarraldo” e “Cobra Verde”. Hoje, os nomes de Fricke e Herzog são por assim dizer inseparáveis, funcionando a música e as imagens como um todo, o que infelizmente, noutros casos, nem sempre acontece.
Uma última referência para um filme, sem diálogos, em que a música ocupa o lugar principal no desenvolvimento dramático. Trata-se de “Le Berceau de Cristal”, realizado por um senhor chamado Philippe Garrel, que afirma fazer filmes para não se suicidar. A música foi composta por Manuel Gottsching (outro nome importante da escola eletrónica alemã) e tem como única personagem a cantora Nico, deusa da Lua. Nico, que também compôs música para um filme, “La Cicatrice Intérieure”; Nico morreu e poucos deram por isso. Em “Le Berceau de Cristal” a única voz é a da deusa, lendo um poema. O filme termina com o som de um disparo de pistola.