cultura >> domingo >> 24.07.1994
Pink Floyd Esgotam Duas Noites Em Alvalade
Confortavelmente Entorpecidos
Pink Floyd em Portugal. Já não era sem tempo. O espectáculo dos espectáculos, dizia-se. Afinal, fumos, luzes, “lasers”, porcos, quadrifonia, efeitos especiais, tudo somado foi igual a nada. O que significa que a máquina funcionou em pleno. “Welcome to the Machine.” Cento e vinte mil embarcaram, felizes.

É sabido que ninguém vai a concertos de estádio para ouvir música mas sim para receber estímulos de outra ordem. Visuais, emocionais, sejam quais forem desde que proporcionem a ilusão de estar a participar num acontecimento importante. Em Alvalade, Lisboa, na primeira de duas noites, sexta e sábado, que levaram ao estádio do Sporting uma multidão de gente ávida de ouvir e, sobretudo, ver os Pink Floyd, não se passou rigorosamente nada. Opinião que decerto as 120 mil pessoas presentes não partilham.
Um monte de esterco com dez metros de altura é melhor que um monte de esterco com cinco centímetros de altura? É evidente que não, dirá toda a gente em coro. E um monte de esterco com dez metros de altura enfeitado com bolas de Natal, perfumado para não se sentir o cheiro e envolvido num aparato tecnológico com o dobro do tamanho, é melhor que um monte de esterco, vulgar, de cinco centímetros de altura? Alto e pára o baile! Aí já há que olhar para os dois montes de esterco com atenção. Se ainda por cima os bilhetes para observar o monte de esterco maior custarem uma pipa de massa, as dúvidas então desaparecem: o monte de esterco maior é de facto melhor.
Os Pink Floyd da actualidade são do esterco mais fino e sofisticado que há. Provaram-no à saciedade (e à melhor sociedade, presente na sala dos VIPs) no estádio de Alvalade, com lotação esgotada nas duas noites, embora sem rebentar pelas costuras.
Esperavam-se mundos e fundos deste espectáculo, no aparato visual. Qualquer coisa de cortar a respiração, esmagadora, que abafasse por completo a razão e atenuasse o sacrifício de ter que se ouvir a música. Que desapontamento! Não se passou nada que os portugueses não tivessem já presenciado em anteriores concertos, com a única diferença de os Pink Floyd trazerem mais e maior. A evolução da actual formação de David Gilmour, Rick Wright e Nick Mason traduz-se hoje em termos quantitativos e não qualitativos. Mais holofotes, mais potência, mais “lasers”, mais luzes acesas ao mesmo tempo. Além dos itens descritos apareceram dois porcos (melhor dizendo, dois javardos) a balouçarem-se no ar, um de cada lado do gigantesco palco em forma de concha.
Lucy Aposentou-se
O único efeito digno de registo foi uma desmesurada bola de espelhos localizada sobre uma torre no centro do relvado que, durante o último tema do concerto, “Confortably numb” (“confortavelmente entorpecido, ou estupidificado), disparou sobre todos os pontos do estádio torrentes de luz branca, antes de se desfolhar como uma flor murcha. E pronto. O resto não passou de “lasers” apontados ao calhas, luzes de todas as cores e feitios, uns fogachos de pirotecnia no final e o já habitual ecrã circular suspenso para se ir vendo uns telediscos da banda. Ainda tentámos fazer como num auto-estereograma e focar os olhos para além do estádio, à procura de dimensões extra de espectacularidade, mas em vão. Lá vinha sempre a mesma imagem dos bonecos espetados no palco e o som monocórdico e unidimensional.
Quanto à música, aplique-se-lhe a tal metáfora do esterco. Não chega a ser música. São sons primários, pesadões, tocados a metro e ao segundo. Em cerros casos autênticas caricaturas das versões originais. Os Pink Floyd limita-se hoje – e limitar-se-ão até à eternidade, pois não é de prever que a banda alguma vez acabe – a mimar o seu passado e a reproduzir o lado mais superficial de um pretenso “som Pink Floyd”. A música de Gilmour, Wright e Mason, acolitados pelos restantes músicos e meninas do coro acompanhantes, foi em Alvalade tão estática como a pose dos executantes ao longo do concerto. A viagem há muito que chegou ao fim. O ácido esgotou a validade. Lucy aposentou-se e faz tricô em pantufas em frente à televisão. A sigla secreta do LSD deixou de ser “Lucy in the Sky with Diamonds” para passar a ser “Lucy in the Sofa with Donuts”. “Welcome to the Machine”, adivinhou-se algures uma voz a dizer. 120 mil entraram este fim-de-semana na máquina e gostaram.
Ouviram-se (que remédio1) 21 canções, menos uma do que a do alinhamento previsto, com algumas alterações pontuais na ordem de apresentação. Dividido em duas partes, pela primeira passaram na maioria temas do último álbum dos Floyd, “The Division Bell”, o seu pior de sempre. Ao vivo soaram ainda piores. As excepções aconteceram na abertura e no fecho desta primeira sequência de bocejos. Com “Astronomy Domine”, onde a assinatura de Barrett não ficou demasiado desbotada, e “One of these days”, de “Meddle”, a recordar que nessa altura, 1973, os Pink Floyd ainda eram uma banda decente.
“Shine on you Crazy Diamond”, “Breathe”, “Time” (aumentado com efeitos de quadrifonia, de ruídos de relógio girando em volta das bancadas), “Wish you were here”, “The great gig in the sky” (com um solo vocal de fugir de uma das meninas do coro), “Us and them”, “Money” e “Another Brick in the wall” foram alguns dos êxitos antigos que preencheram a segunda parte. A assistência correspondeu de forma delirante, aplaudindo e gritando com mais força sempre que se acendia mais uma luz ou um “laser” desenhava um arabesco no céu. Quando a tal bola de espelhos deu início ao seu minuto de espalhafato deu-se a explosão de histeria. Que continuou pelos dois “encores” previstos, “Hey you” e “Run like hell”. Era impossível pedir mais.
O espectáculo dos Pink Floyd foi uma coisa bonita de se ver e teve a virtude de não cheirar mal.