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Paul Simon – “Paul Simon, Sábado, Em Alvalade, Não Contemporizou Com O Saudosismo – ‘Ele Cantou De Maneira Diferente’” (concerto | reportagem))

Secção Cultura Segunda-Feira, 22.07.1991


Paul Simon, Sábado, Em Alvalade, Não Contemporizou Com O Saudosismo
“Ele Cantou De Maneira Diferente”


Paul Simon mostrou como a música pode, e deve, sobrepor-se ao artifício. Quando a solução segura seria o recurso aos êxitos do passado, optou, em vez disso, pelo empenhamento e pelas “fusões” do presente. Ficou provado que há outras formas de fazer espectáculo.



Foi óptimo. Foi excelente. Foi excepcional. Foi bestial. Foi piramidal. Foi grandioso. Foi super. Foi grandioso. Foi magnífico. Foi. A todos aqueles que assistiram, sábado à noite, no estádio de Alvalade, em Lisboa, ao concerto de Paul Simon e acharam que foi óptimo, excelente, excepcional, bestial, piramidal, grandioso, super, magnífico ou que simplesmente foi, e aqui apenas pretendem a confirmação oficial das suas impressões, a confirmação está feita. Podem retirar-se em paz e dormir descansados.



Os outros, que não foram ou foram (e terão ido à volta de 40 / 45 mil) mas querem saber um pouco mais, podem ficar até ao fim. Foi de facto um bom concerto. Talvez o melhor, em termos de grandes espectáculos realizados no nosso país. E foi-o por méritos exclusivamente artísticos, o que equivale a dizer que o supérfluo e o teatro foram preteridos a favor da música propriamente dita. O que chocou muito boa gente, provocando comentários do tipo “ele cantou as músicas de maneira diferente” como os que se ouviram, com uma ou outra variante.
Paul Simon cantou, é verdade, as músicas de maneira diferente: “Bridge over troubled water” com uma introdução pianística de Richard Tee e continuação em ritmo reggae; “The boxer” menos swingante que na nossa memória; “Still crazy after all these years” com a voz a divagar por entoações bizarras. Houve mesmo uma altura, a meio de uma actuação de quase três horas, em que nem sequer cantou, dando o lugar aos músicos que não se fizeram rogados e se atiraram a longos solos numa sequência de puro “jazz rock”, de colorações étnicas, que serviu para Michael Brecker mostrar quanto vale nos sopros, seja no saxofone alto ou no controlador MIDI.

Média De Isqueiros

Sim, é verdade que interpretou “Kodachrome”, “Me and Julio down by the schoolyard”, “Bridge over troubled water” (8674 isqueiros acesos, 1º lugar à média aproximada de um isqueiro por 5,18 pessoas), “Still crazy after all these years” (7290 isqueiros acesos, 3º lugar, média de um em 5,681), “America” (7919 isqueiros, média de um em 5,682, 4º lugar, fazendo o pódio por um isqueiro), #The boxer”, “Cecilia” e “The sound of silence” (8502 isqueiros acesos, 2º lugar, à boa média de 5,29), os quatro últimos já em período de “encores”. Mas descontando estes temas, mais conhecidos (os lentos são os que estão assinalados em número de isqueiros acesos), o concerto pautou-se pela musicalidade e actualidade dos recentes álbuns “Graceland” e “Rhythm of the Saints”.



Em geral, as pessoas vão a este tipo de espectáculos, com nomes consagrados, não para ouvirem música mas para se reencontrarem com a sua memória. O mesmo estádio, que agora não atingiu o paroxismo com Paul Simon, enchera-se completamente não para ouvir e ver os Rolling Stones ou a Tina Turner actuais, mas para rever, de forma alucinatória, a lembrança que se tem dos tempos áureos. Paga-se, não para se ouvir música, mas para ver e venerar mitos. Nem que seja já na fase de agonia.
Precisamente, Paul Simon trocou as voltas a quem se preparava para mais uma sessão de saudosismo. Chegado aos 50 anos, e ao contrário dos nomes atrás citados, o autor de “Sounds of silence” encontra-se em pleno apogeu criativo. “Graceland” e “Rhythm of the Saints”, discos recentes, são de facto melhores que qualquer dos antigos, do tempo em que formava dupla com Art Garfunkel. E isso foi o que, para muitos, custou a perceber, incomodados com o desconhecimento da maior parte dos temas ou com a complexidade de outros tantos.

Canções De Recompensa

A esses, (cerca de 37562 num total de 45621, 82,33% portanto), restou o prazer da dança, irresistível nos momentos em que a “bateria” brasileira, constituía por Mingo Araújo, Curo Baptista, Dom Chacal e Sidinho, se juntou a Steve Gadd, num festival de ritmos e cadências sincopadas a que os corpos se entregaram sem resistência, ou, em desespero de causa, o recurso inevitável ao ritual dos isqueiros. Registe-se que a este nível, “Hearts and bonés”, embora também um tema lento, por ser menos conhecido, conseguiu a marca pouco representativa de 56 isqueiros acesos, correspondentes à média desprezível de um por 803,57 pessoas.
A sequência final de “encores” (“America”, “The boxer”, “Cecilia” e “The sound of silence”, com Paul Simon praticamente a solo, voz e guitarra acústica, aqui sim, fazendo recordar os primórdios “Folk”) funcionou então como uma espécie de recompensa (curiosamente, ou não, foi nestes temas que o músico se revelou menos à vontade…) para quem já desesperava de cantarolar um refrão ou bater umas palmas a marcar o compasso, de modo a justificar as “milenas” gastas. Foram os momentos apoteóticos da noite, em termos de reacção popular.
Na perspectiva oposta, estritamente de crítica musical, tudo foi diferente, para melhor.



Apoiada por um som excelente (que, seguindo o sábio preceito, amplificou sem agredir, preferindo acentuar os pormenores em vez de recorrer ao truque fácil do totalitarismo dos decibéis) e num jogo de luzes eficaz (que iluminou e deu côr e ênfase aos diferentes ambientes, em vez de ofuscar e distrair), a banda de Paul Simon deu cartas na difícil arte de juntar diferentes tradições conotadas com a “World music” a um discurso rock articulado de forma sempre coerente.

Não Eram Chineses…

Da “jive music” dos negros sul-africanos, com que, logo a seguir a “The obvious child”, abriu o concerto, em “The boy in the bubble”, ao esplendoroso batuque final de “Diamonds on the soles of her shoes”, Paul Simon e os restantes músicos mostraram que não tinham vindo para contemporizar. Que os seguisse quem pudesse. A maioria da assistência seguiu e acabou por entregar-se, quando concluiu que a ocasião não era a ideal para grandes evocações. Talvez patra a próxima, com o Santana…
Na primeira parte do espectáculo, Rui Veloso e os Mingos e samurais não tiveram dificuldade em pegar na assistência e levá-la rapidamente ao rubro. Neste caso as canções eram bem conhecidas de todos e por isso não custava nada trauteá-las em coro. Cumpriu-se o que seria de esperar, com a celebração colectiva de “Não há estrelas no céu”, numa noite que terminou cheio delas – encerrada a série de “encores” de Paul Simon (todos fazendo parte do programa…), os pedidos de “mais” foram calados através do expediente que já se vai tornando habitual nestas ocasiões: o fogo de artifício.
À saída ouviam-se comentários desencontrados: uma jovem fazia comparações com o espectáculo de Tina Turner, afirmando que nunca nessa noite vira “o povo tão maluco”, esquecendo o pormenor importante ds pernas, as de Tina Turner indubitavelmente mais esculturais que as de Paul Simon (por isso ele trazia calças), embora tenham quase a mesma idade. Outro jovem, este mais entusiasmado, assegurava que a banda de Paul Simon “era espectacular, com aqueles sons esquisitos tipo chineses”, logo emendado pela namorada, conhecedora: “Não eram chineses, eram dos Andes”. No fim de contas, para quase todos acabou por ser uma noite de Verão bem passada.

Paul Simon – “O Evangelho Segundo São Paulo” (dossiers)

Pop-Rock Quarta-Feira, 17.07.1991


O EVANGELHO SEGUNDO SÃO PAULO

Não se sabe se Paul Simon era Tom ou Jerry no duo que há 34 anos formou com o seu parceiro de muitas ocasiões, Art Garfunkel, decalcado da célebre dupla dos desenhos animados. O que sabe é que o homem tem já um lugar reservado no “hall of fame”, panteão das celebridades mundiais cuja importância deve exceder inevitavelmente as dimensões de um hipermercado.
Paul tem hoje cinquenta anos deidade, mais ano menos ano, e uma quantidade de álbuns no activo, a solo e com o outro. Filho espiritual de Bob Dylan (que imitou durante muitos anos), terá chegado à conclusão que Dylan só havia o Bob e mais nenhum. Optou então pela “música folk”, como dizia ele e diziam os críticos, sempre que havia alguém a cantar baladas acompanhado por uma guitarra acústica. Nos anos 60 a “música folk” era chão que dava uvas. Paul Simon apreciava particularmente este fruto, e músicos ingleses como John Renbourn ou Martin Carthy, não espantando portanto a opção. Depois foi a recolha sistemática de “hits” e estilos musicais que culminou nos mundialmente aclamados “Graceland” e “Rhythm of the Saints”. Vamos ver como foi, dissecar a obra, escalpelizar o discurso, mergulhar em complexas análises estruturais, que o homem está mesmo a chegar e não convém perder pitada.



Para Paul Simon, a música rock é indissociável de todos os outros géneros e, em particular, das músicas do mundo. Tal atitude deriva de uma exposição contínua a toda a espécie de sons ouvidos durante a juventude. Do rock ‘n’ rol de Elvis Presley e Chuck Berry e a “country music” de Johnny Cash, à música soul, os blues e a religiosidade “gospel”. Os Beatles, evidentemente, fizeram parte da cartilha, assim como Bob Dylan que, durante anos, tentou imitar. Deste caldeirão de influências soube Paul Simon extrair a eesência, depurando-a para lhe acrescentar os contornos da sua excepcional aptidão para a melodia. Método que em “Graceland” e “Rhythm of the Saints” atingiu o apogeu, no casamento dos sons africanos do primeiro e o tropicalismo brasileiro do segundo com um apuro formal então já perfeitamente consolidado.

Quarta-Feira, Três Da Madrugada



Era ainda manhãzinha, nem uma agulha bulia, na suave melancolia dos pinheiros do caminho, quando Paul Simon gravou o primeiro álbum de parceria com Art Garfunkel, em 1964. Mais precisamente às três da madrugada de uma quarta-feira. Disco florido, suave, doce, “Wednesday Morning 3 a. M.” é a sobremesa ideal num dia de Primavera, à hora e dia da semana indicados. Harmonias vocais bonitas, modernas, originais. Sem agressividade nem angulosidades escusadas. Nada de grave, não fora a existência de uma canção chamada “The sound of silence”, que, no ano seguinte, subiria ao primeiro lugar no top de vendas norte-americano, graças ao golpe de génio do produtor, Tom Wilson. Este, sem dar cavaco aos autores, resolveu electrificar a coisa, inaugurando assim, sem mais nem menos, a corrente estética a que se convencionou chamar “folk rock”. Há dias de sorte. A Paul Simon saiu a sorte grande.
Quis o destino que Paul e Art permanecessem pouco tempo juntos. Sabe-se lá porquê. Talve devido ao alegado perfeccionismo de Paul, que não teria suportado o fraco empenhamento demosntrado pelo companheiro, desde cedo voltado para uma carreira na sétima arte.

O Som Do Silêncio



Assim, no ano seguinte, Paul estava de novo sozinho, à procura de calor humano e de inspiração. Calor humano, não recebeu tanto como isso. Inspiração, porém, é o que não falta no primeiro disco a solo, “The Paul Simon Song Book”, saído em 1965, no qual figuram alguns dos temas posteriormente interpretados pela dupla, no seu segundo álbum: “The sound of silence” (outra vez), “I am a rock”, e “Kathy’s song”. “Sounds of silence” viria mesmo a constituir uma espécie de obsessão, tendo sido aproveitado como genérico do disco e utilizado em técnicas revolucionárias na educação dos surdo-mudos. Musicalmente o álbum pouco adianta em relação ao anterior, exceptuando, evidentemente, a importância dada às pausas, de resto tão bem exploradas pelos dois, em sublimes harmonias vocais que passaram a ostentar o timbre inconfundível do seu estilo. Só ouvido. Ou melhor, só não ouvido. Ainda hoje, nos pubs, em casa, no campo, na praia, no escritório, no automóvel, no Auditório da Gulbenkian, durante um recital de música de cãmara, se trauteiam e assobiam as canções imortais de Simon and Garfunkel. Deste e sobretudo dos álbuns que se haviam de seguir.

Paranóias Existenciais

Como “Parse, Sage, Rosemary & Thyme”, de 1966, considerado como um dos seus melhores. O título-tema, inspirado numa melodia tradicional esquimó, é encantador. É nesta altura que começam a vir ao de cima as paranoias existenciais de Paul Simon, patentes em temas como “The dangling conversation” ou “Patterns”. Noutras páginas deste suplemento, dá-se conta do boletim clínico.
“The Graduate”, 1968, a banda sonora do filme de Mike Nicholls, foi por muitos considerado pornográfico. Passemos pudicamente ao lado. Do mesmo ano, “Bookends”, contémm uma das canções mais conhecidas do duo, “America”, balada de concepção imaculada e uma simplicidade espantosa, possuidora de uma inenarrável riqueza rítmico-tímbrico-melódico-harmónica, capaz de injectar na parelha o entusiasmo suficiente para se lançar naquela que, até hoje, permanece como sendo a obra-prima absoluta, ou, pelo menos, a mais vendida: “Bridge over Troubled Water”, a subir e a descer nos tops durante 32 anos consecutivos, entre 1957 e 1973.

Uma Ponte Que Ruiu



“Bridge” (para Paul Simon, um álbum de “gospel” puro) faz a ponte entre diversas tendências musicais, juntando as ambiências folk da praxe às alturas ventosas de “El condor passa” e à releitura suavizada de “Bye bye love” dos Everly Brothers. É também o álbum do romantismo, de se ouvir agarradinho ao/à parceiro/a, dentro daquela linha a que se convencionou chamar “música para constituir família” ou, na versão popular, “rock sentimetalão”. “The boxer”, “Cecilia”, “The setter”, “Emily”, “The wolfhound” e “Virginia” são alguns dos temas inesquecíveis de um álbum, cujo lema parece ter sido “Keep the customer satisfied”.

Durante as gravações de “Bridge over Troubled Waters” as divergências entre Paul Simon e Art Garfunkel atingiram o auge – Art não deixava o cinema, oo que muito aborrecia Paul. Na faixa “The only living boy in New York”, Paul denuncia as frequentes ausências do companheiro no México, justificadas pela rodagem de “Catch 22”, chagendo mesmo a criticar o seu desempenho dramático, acusando-o de académico, promíscuo, aleatório, etnográfico e atentatório contra os bons costumes. O que manifestamente não jogava com o seu feitio (de Paul). Eram razões mais que suficientes para pôr um ponto final na carreira da dupla. Separaram-se como bons amigos que afinal nunca tinham deixado de o ser (Paul viria mais tarde a retratar-se publicamente da acusação de “etnográfica”, à actuação de Art, alegando que tinha dormido mal nessa noite. O termo, contudo, nunca lhe sairia da cabeça, revelando-se mesmo de capital importância em fases posteriores da sua carreira). Art perdoou-lhe, mas continuou a representar.
Parte do álbum é gravado apenas por Paul e pelo co-produtor Ray Halee que nele investem doses maciças de paixão. Curiosamente, na faixa principal, “Bridge over troubled water”, composta por Paul, este fez questão de ser Art a cantá-la. Mas a rotura era inevitável e concretizar-se-ia pouco tyempo depois. Voltaria a reunir-se num espectáculo ao vivo no Central Park, em 1982, perante várias pessoas que não os tinham esquecido.

Os Perigos Do Rock ‘N’ Roll



Paul Simon tinha o caminho livre para uma carreira gloriosa. Começou a ler livros e revistas, a consultar especialistas, a visitar locais, a estudar a melhor maneira de incorporar vários estilos musicais no esquema básico das suas baladas. O resultado de tais pesquisas viria a revelar-se brilhante no álbum “Paul Simon”, de 1972, mescla estimulante de fluidez vocal, produção imaginativa e boas canções. Contando no estúdio com a presença de músicos ilustres, como o guitarrista exímio na técnica de “picking”, Stefan Grossman (“Paranoia blues”) e o violinista cigano Stephanne Grappelli (Hobos’s blues”, “Paul Simon” é uma espécie de visita guiada pela mente tortuosa de um músico à procura de si próprio. Cá está o “reggae” de “Mother and child reunion”, a veia latina de “Me and Julio down by the schoolyard”, a beleza intimista de “Duncan”, a fantasmagoria evocativa de “Congratulations”, a auto-introspecção de “Everything put together falls apart”.
Sim, Paul Simon, enveredava por uma via pessimista, ondementes mais fortes que a sua viriam a encontrar a miséria e a desgraça. Que o aviso sirva de exemplo aos mais jovens, que nunca, mas mesmo nunca, deverão ceder aos prazeres – tão modernos -, do pessimismo e, sobretudo, à tentação de ser músico, pois a droga e a loucura espreitam a cada esquina. E o sexo. Não foi por acaso que, anos mais tarde, já curado da doença, Paul Simon renegou por completo o “rock ‘n’ rol”, acusando-o de aleatório, promíscuo e atentatório contra os bons costumes.
“There goes rhymin’ Simon” explode numa cintilação de melodias que recuperam a facilidade melódica dos tempos com Art Garfunkel, para lhes imprimir um cunho muito pessoal. Formidável também a maneira como recupera a facilidade pessoal dos tempos com Art Garfunkel, para lhes imprimir um cunho muito melódico. Enfim, temas como “Kodachrome” e “Take me to the Mardi Gras” caíram no goto de todos e venderam-no como batatas, o que, em questões de arte, é o que mais interessa.
No álbum ao vivo “Live Rhymin’”, de 1974, entretém-se a reproduzir novas versões de “The boxer” e “Bridge over troubled water”, acompanhado por músicos negros e pelos chilenos Los Incas, rebaptizados Urubamba, numa brincadeira com “El Condor Pasa”, entre nós um “must” radiofónico absoluto do pós-25 de Abril.

Louco, Depois De Tantos Anos



Tempo entretanto de continuada introspecção e da loucura finalmente assumida em “Still crazy after all these years”. É dos álbuns mais conhecidos de Paul Simon, mas também um dos mais incompreendidos. As massas viram nele apenas um lote de canções aprazíveis, compostas por um autor de reconhecidos méritos. Poucos foram os que se aperceberam de estar diante do genuíno testamento espiritual de um artista em fase crítica, para quem a música sempre serviu de terapia. Que é “My little town” senão a menifestação patética de uma alma torturada? Que alucinações povoam “Night Game” que não façam parte do catálogo geral das fantasias esquizofrénicas? Pobre, pobre Paul Simon, tão novo e já preso nas garras da loucura. Nem a presença entre os músicos convidados de Tony Levin, Steve Gadd, Phoebe Snow, Toots Thielemans, Phil Woods e o próprio Art Garfunkel foram suficientes para aliviar o sofrimento. “Still Crazy after all these years” fica para a história como um dos manifestos mais pungentes sobre a inexorabilidade do destino, a solidão humana, o pavoroso assombramento existencial resultante do confronto com a divindade, o medo do desconhecido, o medo dos espaços abertos, o medo das picadas de insecto, a aversão aos dentistas, a poliomielite e a febre dos fenos. Medonho e grandioso ao mesmo tempo.
“One Trick Pony” e “Hearts and Bones”, respectivamente de 1980 e 1983, são álbuns que conheço mal, e por isso não interessam muito, sendo pouco importantes na economia da obra do autor. Completamente irrelevantes. Mesmo que Philip Glass tenha contribuído com arranjos para um tema deste último, “The late great Johnny Ace”, dedicado ao próprio e a John Lennon. Philip Glass que nas suas próprias “Songs from liquid days” não dispensaria a voz do autor do “som do silêncio”.

Contra O Boicote

Incontornável é, sem sombra de dúvida, “Graceland”. Sem sombra de dúvida, mas com sombra de pecado, já que houve quem não lhe perdoasse ter passado por cima de preconceitos e convenções enraizadas.
Tudo começou com a audição de uma cassete-pirata, contendo gravações de música sul-africana, no estilo “gumboots”, um “cocktail” explosivo de cânticos zulus, hinos vitorianos e “soul” traficada.
Entusiasmado, Paul voou para a África do Sul, onde registou em fita magnética alguns desses artistas locais. A seguir, trouxe-os consigo para Nova Iorque e Londres, para novas gravações e misturas a que acrescentou finalmente os “takes” vocais da sua autoria.
Foi o bom e o bonito. De oportunista a fascista, tudo lhe chamaram. Não lhe perdoaram ter “infringido” o boicote impeditivo para qualquer ocidental de colaborar com o “monstro” sul-africano, fosse qual fosse a cor da pele e a filiação ideológica. Intelectuais da estirpe de Paul Weller, Billy Bragg e Jerry Dammers exigiram que fosse reposta a legalidade e que o prevaricador pedisse publicamente desculpas. Paul Simon fez-se distraído, olhou para o outro lado e calou-se, enquanto o disco vendia às toneladas. Miriam Makeba, Hugh Masekela e mais 25 instrumentistas negros, por seu turno, não ficaram nada procupados e acompanharam o “porco fascista” por todo o lado numa “tournée” mundial que serviu para calar as bocas acintosas.

A Música Das Botas

“Graceland inclui-se na tendência imparável para embalar seja que produto for no pacote, actualmente rentável, da “world music”. Com resultados diferentes, David Byrne, Peter Gabriel e Sting não se coíbiram de explorar o filão. Para Paul Simon, tratava-se de aproveitar, no bom sentido, as capacidades dos “melhores cantores” do continente africano. No caso concreto de “Graceland”, o “ensemble” Ladysmith Black Mambazo e o nigeriano Youssou N’Dour.
Do cruzamento entre duas culturas díspares surgiu o diamante. “Graceland”, para além de todas as polémicas geradas à sua volta, irradia música e energia por todos os poros. “Gumboots” (designação com origem nas botas dos mineiros negros), o “jive sound” ou “Mbqanga”, música de rua do Soweto, (que partilha semelhanças com o “rhythm ‘n’ blues” e a música “zydeco”), electricidade e as típicas subtilezas melódicas de Paul Simon juntam-se num ritual de alegria e liberdade, demasiado forte para as débeis investidas dos detractores. Bem podiam as Nações Unidas continuar a gritar, agitando a bandeira do boicote. “Graceland” é terra inexpugnável.

Estado De Graça



“The Boy in the bubble”, gravado com o agrupamento do Lesotho Tao Ea Matsekha, dispara no acordeão e na rítmica do “Gumboots”. “Graceland” recorre aos serviços do guitarrista Ray Phiri e ao baixo de Baghiti Khumalo e soa a “country” sem fronteiras. “Gumboots” é isso mesmo, o lamento do mineiro na escuridão da vida e da mina, redimido pelo ritmo e a intervenção esclarecida dos saxofones. “Diamonds on the soles of her shoes” serve para os Ladysmith Black Mambazo brilharem, tal como “Homeless”, escrito por um dos seus membros, Joseph Shabala. Heresia máxima, em “You can cal me Al”, aparece a tocar um músico sul-africano branco. Os objectivos e ideais do músico são claros (não se veja aqui quaisquer facciosismos racistas): “Aceitação, a tentativa de alcançar um estado de paz, de redenção ou de Graça”. Mas ainda aqui as línguas viperinas atacaram: Paul Simon não teria pago aos músicos africanos as “royalties” devidas, tendo estes trabalhado para si praticamente “de graça”.
Se críticas há a apontar a “Graceland”, estas dizem respeito a uma certa complacência académica, diríamos mesmo aleatória, da parte de Paul Simon, com alguns laivos de promiscuidade e mesmo uma atitude geral atentatória contra os bons costumes. Mas isso foi sempre assim, desde o início.

Mistérios Da Mente Humana

Por fim a confluência final nas florestas e rios do Brasil. Milton Nascimento foi o instigador de Paul em novo pecadilho, à procura do “ritmo dos santos”. O que de imediato sugere mais um libelo a favor da floresta e dos índios da Amazónia. Nada mais falso. O que Paul Simon procurou solucionar em “Rhythm of the Saints” foi um problema essencialmente metafísico: analisar o modo como a mente “salta e muda ao longo do dia” (numa nítida recorrência à problemática abordada em “Wednesday Morning 3 a.m.”). Para Paul Simon, há um mistério insondável no facto da mente humana passar num ápice do êxtase ao desespero e vice-versa. Num instante achar que “está tudo bem” e no outro afligir-se com a eventualidade da guerra. Num minuto passar da felicidade completa à aflição de se saber seropositivo. Terá concluído que só a santidade permite ultrapassar a dialéctica.
É nessa medida que “Rhythm of the Saints” procura conciliar opostos, estéticos e éticos. A revolta dos negros sul-africanos, no primeiro caso. A aceitação passiva e a languidez do negro brasileiro, no segundo. Se “Graceland” era a celebração do ritmo, aquele joga na subtileza e nos arranjos etéreos, à procura da transcendência e do transe hipnótico. Se “Graceland” era um tambor de terra e tempestade, “Rhythm of the Saints” é marimbas, oceano, vento. “Graceland” é um grito. “Rhythm of the Saints” um murmúrio.
Num dos temas fortes do disco, “The obvious child”, Paul Simon esteve quase para convidar Bob Dylan a cantá-lo. Depois achou que isso só serviria para desviar as atenções. O comando das operações rítmicas foi entrgue aos brasileiros, obrigados embora a um “low profile” subtil imposto pela mesa de mistura. J. J. Cale participa como co-autor de dois temas, acentuando ainda mais a impressão de imponderabilidade. Tudo flui com a placidez de um rio durante o Verão, que vai sem saber para onde vai.

Por Fim, A Santidade

De resto, é talvez este o principal “problema” de Paul Simon – uma questão de orientação. Acusam-no de refugiar-se no perfeccionismo. Ele aceita finalmente a acusação, liberto da necessidade e dos constrangimentos de destino fixo. Atingida finalmente essa “insustentável leveza do ser” que tanto pode ser conquista como desistência.
Há uma história divertida: uma vez, ao transportar no carro um amigo ferido numa perna, Paul aproveitou o silêncio dorido deste, para lhe perguntar a opinião sobre umas misturas para o novo álbum. Paul Simon acha a história engraçada, mas diz que não é verdade. Apenas receia uma coisa – a morte. “A ideia de vir a morrer”, diz, “não é mitigada pelo facto de uma orquestra poder tocar na televisão ‘Bridge over troubled water’ nessa mesma noite.” Resta-lhe a santidade. E a música dos outros.

Vários – “Do Cairo Ao Cabo” (african pop | televisão)

29.04.1991
Segunda-Feira, Local, Televisão


Do Cairo Ao Cabo

Viagens pelo continente negro. Pelos seus costumes e tradições. Pela sua música. África do deserto e da savana, berço do “jazz” e do samba brasileiro. África dos sons e tons tórridos que hoje aquecem as caves e estúdios de Paris. Ocidente rendido à matriz negra. Peter Gabriel, Paul Simon, Stewart Copeland abriram as portas e fizeram a junção dos continentes. Os músicos e a força africanos fizeram o resto.
Produzidos pela Metavídeo, os cinco programas da série “African Pop” contam a história da invasão africana, através da fusão dos batuques e cantos rituais com a electrónica e as estratégias de “marketing” ocidentais. Depois do Senegal, de Youssou N’Dour, Baaba Maal e Mory Kanté, lugar, esta tarde, para as imagens e sons do Zaire e da boémia de Kinshasa, cujas ruas e clubes de luxo se animam ao ritmo da rumba, tocada toda a noite por orquestras de guitarras especialmente afinadas para o efeito. A dança e a música juntam-se à moda nos concursos de “sapeur” – desfiles inspirados no Ocidente onde “dandies” de ébano, “passam” Saint-Laurent, Gaultier ou Yamamoto e ganha quem vestir a roupa mais cara e luxuosa. De “dandy”, Papa Wemba transformou-se num dos mais interessantes e conceituados músicos africanos a trabalhar na Europa. Vamos saber como e porquê.
O terceiro programa da série “African Pop” será dedicado À Nigéria, da música “juju” e Fela Kuti, e o seguinte às mútuas influências entre as músicas africana e europeia. Finalmente, no quinto e último, veremos como Paris se transformou na principal embaixada africana na Europa. Bastaria a música de Manu Dibango, Johnny Clegg (inglês de coração zulu), Kassav e Touré Kunda, para não os perdermos.
Canal 2, às 12h40