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David S. Ware – “Threads” + Marty Ehrlich – “Line On Love” + Jean Derome / Louis Sclavis Quartet – “Un Moment De Bonheur” + Tony Malaby – “Apparition” + John Lindberg – “Ruminations Upon Ives And Gottschalk” + Michael Moore – “Air Street”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 6 Dezembro 2003

David S. Ware rendeu-se às cordas, Marty Ehrlich ao amor, John Lindberg a Ives e Gottschalk. Mas na lotaria do novo jazz foram Jean Derome e Louis Sclavis que encontraram a felicidade


O azul que não cabe no “blues”

DAVID S.WARE
Threads
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
7 | 10

MARTY EHRLICH
Line on Love
Palmetto, distri. Trem Azul
8 | 10

JEAN DEROME/LOUIS SCLAVIS QUARTET
Un Moment de Bonheur
Victo, distri. Trem Azul
9 | 10

TONY MALABY
Apparition
Songlines (SACD), distri. Trem Azul
7 | 10

JOHN LINDBERG
Ruminations upon Ives and Gottschalk
Between the Lines, distri. Ananana
7 | 10

MICHAEL MOORE
Air Street
Between the Lines, distri. Ananana
8 | 10


No fado são as novas Amálias. No jazz, os novos Coltranes. David S. Ware é, de entre todos os “novos Coltrane”, o mais credível. Como em Trane, o saxofone tenor de Ware combina o tecnicismo, a expressividade levada ao paroxismo e o misticismo. Um ano após a edição da sua particular versão de “Freedom Suite”, de Sonny Rollins, o tenorista fez aumentar o seu trio habitual de acompanhantes (Guillermo F. Brown, William Parker, Matthew Shipp) para quinteto, com a inclusão de Mat Maneri (viola) e Daniel Bernard Roumain (violino), transformando-o num “string ensemble” e conferindo uma nova dimensão à sua música: um jazz de câmara pulsante que chega a ser arrebatador em “Sufic passages”, à custa da insistência no “riffing” e de um swingante fraseado violinístico de Maneri, mas que no título tema se aproxima do tipo de arranjos majestosos, aviados para consumo imediato, de Michael Nyman, embora haja nele um lado obsessivo (devocional?) que acaba por lhe conferir uma densidade porventura mais próxima de algumas composições de Gavin Bryars. Já “Carousel of lightness” levita num ambientalismo com selo ECM. Quanto a Ware, é mais coltraniano do que nunca em “Weave I” e “Weave II”, exercícios de improvisação que funcionam como catarse ao formalismo de escrita dos restantes temas, numa música que insistentemente procura alargar os seus horizontes.
Adepto confesso de aventuras conceptuais, Marty Ehrlich faz em “Line on Love” o percurso inverso ao de David S. Ware, em “Threads”. É uma inflexão na tradição e num jazz por vezes de grande lirismo (“Hymn”, “Line on love”, marcados pelo piano de Craig Taborn) de que Ehrlich andava arredado em trabalhos como o anterior “The Long View”. Os desempenhos do saxofonista no alto são de altíssimo calibre em “Like I said” e “Turn circle and spin”, este último tema complementado pelo solo de um dos mais notáveis contrabaixistas do jazz contemporâneo, Michael Formanek. Billy Drummond assume papel de destaque, na bateria, no “bluesy” “St. Louis Summer”, impelido por um surpreendente e hardbopante solo, em tempo lento, do saxofonista, que conclui a tocar clarinete baixo na magnífica arquitetura rítmica rubricada pelos quatro músicos no derradeiro “The git go”.
Entusiasmante é a simples associação dos nomes de Louis Sclavis e Jean Derome, dois dos mais desalinhados e criativos artistas da música improvisada atual, em “Un Moment de Bonheur”. Sclavis, herdeiro de Portal e eclético solista e compositor do jazz francês, e Derome, autor canadiano com larga e, por vezes, burlesca obra na editora Ambiances Magnétiques, a solo, em duo com Robert-Marcel LePage ou René Lussier, ou com a sua orquestra de alunos, encontraram-se neste registo ao vivo de 2001, no 18º Festival Internacional de Musique Actuelle de Victoriavile. Os diálogos “free” entre a flauta, flauta baixo, saxofone alto e berimbau do canadiano e o clarinete, clarinete baixo, saxofone soprano e “objetos” do francês farão as delícias dos apreciadores de música improvisada, em uníssonos, contrapontos e fugas que atingem o âmago do “free jazz” nos longos “L’errance” e “Suite pour un bal”, respetivamente de 18 e 20 minutos, sendo a suite cortada a meio por uma descarga de ruído e de… rock, na melhor tradição da escola RIO (“Rock in Opposition”), da qual Derome, de resto, sempre esteve perto. E se Sclavis perde no processo um pouco da sua habitual eloquência e Derome uma parte do seu humor, ganha-se a unidade de duas forças vivas em combustão. Bruno Chevillon (contrabaixo) e Pierre Tanguay (outro “habitué” da casa dos “ambientes magnéticos”, bateria) deliram de satisfação na forma como enrolam ou desimpedem os caminhos aos seus companheiros solistas.
Em matéria de “suites”, o saxofonista, tenor e soprano Tony Malaby também não se sai mal, em “The mestizo suite”, tema de abertura de “Apparitions”. Malaby (marido de uma das mais dotadas pianista recém-surgidas, Angelica Sanchez), em anteriores ocasiões “sideman” de Tim Berne, Fred Hersch, Marty Ehrlich, Michael Formanek, Mark Dresser e George Schuller, a par de uma passagem breve pela Mingus Big Band, é um daqueles músicos que constrói por fases, sem relâmpagos flamejantes, mas possuidor de uma sólida intuição do tempo e da cor. A utilização em simultâneo de dois bateristas, Tom Rainey e Michael Sarin, juntamente com o contrabaixo de Drew Gress, sugerem um enquadramento rítmico reforçado que o saxofone, em permanente liquefação, se encarrega de diluir. O título tema, pontuado por percussões e pelo saxofone soprano, enfim liberto de um discurso em continuidade, acaba por ser o único a fazer faísca.
“Ruminations upon Ives and Gottschalk”, do quarteto do contrabaixista John Lindberg — com Baikida Carroll (trompete, fliscórnio), Steve Gorn (bansuri, flautas, clarinete, saxofone soprano), Susie Ibarra (bateria, percussão, kulingtang, gongos chineses) – dedica sete originais aos compositores norte-americanos Charles Ives (1874-1954, autor, entre outras obras, de uma “Concord Sonata” e uma “Symphony No.3”) e Louis Moreau Gottschalk (1829-1869, natural de Nova Orleães, apaixonado pelos sons exóticos das Caraíbas e pela música crioula). Difícil é catalogar estas “ruminações” que misturam instrumentos e melodias tradicionais (“Beau theme”) e jazz, através de improvisações que remetem as concepções de bitonalidade e polirritmia de Ives e a propensão étnica de Gottschalk para uma música de cambiantes sempre inesperados. Ou o que poderia ser o encontro de Ornette Coleman e Don Cherry com os Oregon e os Art Ensemble of Chicago. “Spirit great, golden shine”, inspirado nos trágicos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001, é uma evocação ao hino religioso “Holy Spirit, light divine”, de Gottschalk.
Ainda em direto para o coração e os ouvidos dos incondicionais da música improvisada, “Air Street” contrapõe, numa gravação ao vivo em Amesterdão, o saxofonista e clarinetista Michael Moore, elemento habitual do quinteto de Gerry Hemingway, à dupla holandesa Cor Fuhler (keyolin, piano, órgão Hammond) e Tristan Honsinger (violoncelo). A livre justaposição de sonhos e sons encontra o “free rock” dos Henry Cow, a voz humana anónima rivaliza com um apito para chamar pássaros, a música concreta harmoniza-se em súbitos afluxos de romantismo. Como em toda a (boa) música que nasce das iluminações do instante, cada um encontrará nela jóias ou lixo, consoante o grau de investimento posto na audição. Há aqui matéria de sobra para o cérebro fazer horas extraordinárias.

The Bad Plus – “These Are The Vistas” + Mark O’Connors Hot Swing Trio – “In Full Swing” + Judy Niemark – “About Time” + Clare Teal – “Orsino’s Songs” + Alexi Tuomarila Quartet – “02” + Christian McBride – “Vertical Vision” + Kenny Garrett – “Standard Of Language” + Marty Ehrlich – “The Long View”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 3 Maio 2003

O ponto de vista determina a visão da música. Há jazz para se ouvir de pantufas, jazz para não se pensar em nada e jazz que obriga a pensar. Descubra o leitor o lugar onde se sente mais confortável.


Vistas, vision, view

THE BAD PLUS
These are the Vistas
Columbia, distri. Sony Music
7|10

Os músicos não têm aspeto de músicos de jazz, conforme os cânones vigentes na “Enciclopédia dos Mitos do Jazz” (ed. Parker & Son, 1990), mais parecendo uma trupe de “grunge”, e “These are the Vistas” também não será um disco de jazz convencional. Os Bad Plus não são, aliás, normais. Reid Anderson (baixo), Ethan Iverson (bateria) e Dave King (piano) são descritos como um “power piano trio” de arrasar e é de facto sobre a torrente energética deste instrumento que o poder se instala. Encaixadas entre os vários originais do grupo, chamam a atenção as versões de “Smells like teen spirit”, dos Nirvana, “Flim”, de Aphex Twin, e “Heart of glass”, dos Blondie. O tema dos Nirvana chove com tristeza e beleza inauditas, com o piano de King a fazer lembrar os tempos de Roger Miller com os Birdsongs of the Mesozoic: notas soltas, marteladas, musculadas em regime de romantismo machista, clusters e cordas percutidas. Com a energia do rock & roll. King swinga como se estivesse na parada, de armas na mão, de compasso preparado para a batalha. Não é um pianista subtil, o seu “approach” refugia-se na dureza e no desafio, quando o lirismo assoma, tem ainda o jeito desengonçado dos pesos-pesados apaixonados pelos “blues”, como em “Guilty”, ou o sabor na boca dos impressionistas, como em “Silence is the question”. “Flim” (com o “gimmick” de um megafone traficado) e “Heart of glass” são, por sua vez, sujeitos a um processo de desconstrução que, de caminho, transforma as melodias em mutantes. Pós-jazz, se quiserem, a música dos Bad Plus é a de rapazes malcomportados com bom coração.

MARK O’CONNORS HOT SWING TRIO
In Full Swing
Odyssey, distri. Sony Music
7|10

Mark O’Connors (violino) e Frank Vignola (guitarra) recuperam em “In Full Swing” a estética “duelística” do violinista cigano Stéphane Grapelli e do guitarrista, também cigano, Django Reinhardt, no célebre Quinteto do Hot Clube de Paris, em meados dos anos 30. O “swing” acontece quando tudo entra nos eixos na “performance” de um músico ou de um grupo. “In Full Swing” swinga, não no modo “full”, mas com a fluência e o rigor de quem estudou bem a lição. Wynton Marsalis é o trompetista convidado (é interessante escutá-lo nos pouco usuais registos de “ragtime”) e Jane Monheit dá voz a “standards” ultra-explorados como “Honeysuckle Rose”, “Misty” e “As time goes by”. Escutamos a música de Grapelli e Django como se estivesse simultaneamente perto e longe. Sentem-se as afinidades mas percebe-se, por mais tecnicistas que O’Connors e Vignola se revelem, que o génio é fogo intransmissível.

JUDY NIEMARK
About Time
Ed. e distri. Sony Music
6|10

Já que se fala de jazz tradicional e bonito, porque não deixarmo-nos embalar pelas vozes de Judy Niemark e Clare Teal? Judy Niemark tem um registo próximo do de Matilde Santing, morno e insinuante, e a música de “About time” serve-a às mil maravilhas. Uma música que flutua nas ondas da bossa nova, no vibrafone etéreo de David Friedman, no baixo estival de Eddie Gomez e no saxofone, aqui também sonhador, de Lee Konitz. Sem riscos nem coriscos, o programa percorre “standards” de Rodgers/Hart e Bernstein, “’Round midnight” de Monk, “Time remembered”, de Bill Evans e “Time after time”, de Cindy Lauper. Curiosamente, a totalidade dos doze temas refere-se ao tempo e Judy não perde tempo em tentar seduzir-nos. Se nos refastelarmos num sofá, descansa e conforta. Quem procurar demónios, esqueça!

CLARE TEAL
Orsino’s Songs
Candid, distri. Dargil
7|10

Se a voz de Judy é veludo, a de Clare Teal alia aos tecidos macios um “vibrato” que, quando quer, sabe arranhar. Embora o início não pudesse ser mais soalheiro, com uma estonteante versão de “California dreamin”, hino do “flower power” popularizado nos anos 60 pelos The Mamas and The Papas, massajado por um solo de rebuçado de saxofone alto por Alan Barnes. Mas depois anoitece e desce-se aos bares e Clare senta-se ao balcão como Jessica Rabbit no filme, cromo animado de enredos de sedução que já não há. “The way you look tonight”, Porter, Rodgers/Hart, Gershwin e um pacote de originais confirmam o calor, a plasticidade e o “feeling” vocal da cantora. Continua a ser jazz para se ouvir de pantufas (“Ready for love to begin” é “Mary Poppins”…) mas, com mil raios, sabe tão bem fechar os olhos e sonhar…

ALEXI TUOMARILA QUARTET
02
Finlandia, distri. Warner Music
7|10

O jazz nórdico também vive fora da ECM. Oriundo da Finlândia, o quarteto do jovem pianista Alexi Tuomarila, se não é uma locomotiva que leve esta música às estações terminais, confirma pelo menos que o “mainstream” não está seguro por alfinetes. Tuomarila estudou pop e jazz em Oulunkylä, passou pelo Conservatório de Bruxelas e as suas principais influências são Keith Jarrett, Bill Evans, Bobo Stenson e Brad Meldhau que, na capa, lhe tece os mais rasgados elogios, enaltecendo o seu sentido rítmico. Sibelius (“Sacrament”) e o quinteto de Miles Davis (presente, aliás, na assinatura de um dos temas, “Solar”) são igualmente apontados como balizas. “Noàdi” e um “Goodbye little godfather” jarrettiano comprovam a força e naturalidade do “riffing”, acentuando essa proficiência rítmica que lhe é apontada, mas é o lirismo distendido de Bill Evans que amiúde prevalece no desenho melódico. Como segundo solista, o saxofonista Nicolas Kummert revela-se um bom discípulo da escola, com raízes nas tradições nórdicas, de Jan Garbarek.

CHRISTIAN MCBRIDE
Vertical Vision
Warner Bros., distri. Warner Music
7|10

Começa com uma “blague”: quinze segundos de um velho vinilo riscado com música dos primórdios do jazz. “No, no, put another record!”, grita uma voz, e “Vertical Vision” embrenha-se nos meandros do “jazz rock” através de um “groove” alimentado pelo baixo de McBride. Jazz moderno não será lá muito, mas o “funk” tornou-se uma benesse nos dias atuais de “lounge” e espuma. E “funk” mais “funky” que o do tema de Joe Zawinul (“Boogie woogie waltz”) que fecha esta visão vertical, não há. Ron Blake é razoavelmente plástico nas ornamentações dos saxofones tenor e soprano e David Gilmore mostra-se um competente guitarrista de rock, sedento de eletricidade. São “riffs” e motivos transcritos dos anos 70 e do “jazz rock” de bandas como os Soft Machine, Nucleus, Passport e Soft Heap (“Taihitian pearl” assenta a matar no gosto dos apreciadores de jazz progressivo) ou da fase mais “groovy” de Herbie Hancock. A boa notícia é que McBride e os seus companheiros entregam-se à música com uma jovialidade que dá a entender que esta foi uma sessão feliz.

KENNY GARRETT
Standard of Language
Warner Bros., distri. Warner Music
8|10

Outra boa notícia é que Kenny Garrett deixou de lado as concessões ao “bonito para pendurar na parede” que marcavam o disco anterior, “Happy People”, regressando em “Standard of Language” a uma música pujante que faz jus ao estatuto alcançado por este antigo “sideman” de Miles Davis. Digitação fluida, timbre cheio e uma imaginação em ação permanente, a impedir o recurso ao bordão dos “clichés”, caracterizam este retorno ao grande jazz, enquanto discurso que passa de dentro para fora e não o contrário. O hard-bop está na massa do sangue de “Standard of language”, seja na recriação do “standard” de Cole Porter, “What is this thing called love?”, seja na citação a McCoy Tyner de “Chief blackwater”, seja ainda nos três movimentos que constituem o título-tema, um tratado de swing e a confirmação da extraordinária coesão de um grupo que parece ter ressuscitado de “Happy People” para este novo registo, com particular evidência para o pianista Vernell Brown e o baterista Chris Dave.

MARTY EHRLICH
The Long View
Enja, distri. Dargil
8|10

Impressionista, a música de Marty Ehrlich (saxofones soprano, alto e tenor, clarinete baixo, flauta), como a de Satie ou Debussy, justapõe células melódicas, harmónicas e rítmicas de modo a criar uma estrutura que vive tanto da sua arquitetura intrínseca como da relação sensorial e afetiva com o ouvinte. “The Long View” é uma “suite” em seis movimentos e um poslúdio, cada um deles correspondente a um quadro do pintor Oliver Jackson, com quem Ehrlich travou conhecimento nos anos 70, através de Julius Hemphill, e cujas obras, estamos em crer, já por várias vezes foram aproveitadas graficamente para algumas capas de álbuns do saxofonista. Como numa auto-estrada de múltiplas faixas de rodagem, os solos e as sequências coletivas caminham lado a lado em velocidades diferentes, criando ilusões de aceleração e retardamento em que apenas a visão aérea, ou a “long view” do título, permitem distinguir a totalidade e intensidade gerais do tráfego. Sequências de pura matemática instrumental, interlúdios de música de câmara, instantes de lirismo (como os criados pelo piano de Wayne Horvitz no “Movement IV”), pinceladas “free”, instantes de pausa num bar da “downtown” e os “blues” (num “Movement V” etilizado pelo trombone de Ray Anderson) convergem numa obra de fôlego que, entre os vários participantes, conta com Ned Rothenberg, Mark Dresser, Mark Feldman, Bobby Previte, e os já citados Ray Anderson e Wayne Horvitz.