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Residents – “O Evangelho Dos Homens Sem Rosto” (livro)

pop rock >> quarta-feira >> 12.01.1994


O Evangelho Dos Homens Sem Rosto

Duas décadas de anonimato. Uma obra ímpar, expressa em conceitos, imagens e discos de pura alucinação / camuflagem / subversão. A música pop e os seus derivados dissecados até ao absurdo. Os autores de tudo isto e muito mais são os Residents, a banda mais estranha do universo. Agora também em livro.



O livro chama-se “Uncle Willie’s Highly Opinionated Guide to the Residents”, é apadrinhado pela Cryptic Corporation (há muito editor e produtora da banda) e historia 20 anos de “anonymous fame”, entre 1972 e 1992, do grupo de cujos membros ninguém conhece os nomes, as vidas ou sequer o número de calçado. Lê-se de um jacto e, no final, fica-se a saber mais e menos sobre eles do que no início. O mistério, tudo indica, permanecerá para sempre inviolável. Sobre o anonimato apetece perguntar como é possível, entre gravações no estúdio e múltiplas operações de “marketing”, manter em segredo os nomes, as profissões, o dia-a-dia destes músicos fantasmas? Entre tantas pessoas que contactam com a banda, não há ninguém que deixe escapar informações? Ninguém sabe nada? Tratar-se-á de uma cabala? No livro avançam-se algumas pistas que servem para baralhar ainda mais a questão.
Progredindo na leitura entra-se aos poucos na catedral da bizarria. “A verdadeira história dos Residents”, primeiro capítulo, assinado por Matt Groening, o criador dos Simpsons, é o bilhete de ingresso nesta viagem no comboio-fantasma, um texto originalmente publicado pelo clube de fãs “oficial” dos Residents, o WEIRD [esquisito, bizarro], ou seja, “We endorse immediate Residents deification” [‘apoiamos a imediata deificação dos Residents’], onde o autor se propõe contar toda a verdade sobre o mito, para logo de seguida dizer que “não existe uma verdadeira história da banda”. “The true Story” é então, como diz o subtítulo, “um breve sumário de factos conhecidos, ‘top secrets’, detalhes nebulosos, alusões veladas e mentiras espalhafatosas”. Segue-se, para aumentar a confusão, uma “Yet Another true Story”, desta feita da autoria de Uncle Willie, pseudónimo de nova personagem anónima que até poderá ser um dos próprios elementos da banda. Abandonada toda a esperança de racionalidade, resta-nos devorar a biografia conhecida e ficar estarrecidos com as fotografias. Das primeiras experiências com gravações caseiras, a teoria da obscuridade (editar um disco apenas quando toda a gente já se esqueceu dele…) e o encontro com o misterioso mestre da fonética, N. Senada, até à manipulação das novas tecnologias interactivas (um CD-ROM baseado no álbum “Freak Show”, de 1991, contendo vários argumentos a que os Residents chamam “novelas gráficas” sobre esta parada de monstros da idade tecnológica – edição prevista para este ano, pela Voyager Company) e filmes de animação realizados para a MTV. Perturbantes são as diversas máscaras e camuflagens com que, ao longo de todos estes anos, os Residents disfarçaram a sua identidade: fatos de camarões, escafandros anti-radioactivos (precaução que utilizaram numa sessão de compras num supermercado, contra possíveis alimentos contaminados…), capuzes ao estilo Ku Klux Klan ou os mais conhecidos globos oculares vestidos de fraque e cartola.
Segue-se pelo labirinto dos discos. Divididos em dois blocos, cada um abrangendo dez anos de carreira. O jogo é infinito, a desmistificação da pop, total. Um humor inspirado nos dadaístas faz de ferramenta para a desmontagem do cenário e artificialidade da pop. Os Residents começaram por destruir a imagem dos Beatles, logo no álbum de estreia, “Meet the Residents”, uma paródia violenta ao quarteto de Liverpool em que se aproveitam do título e da capa de “Meet the Beatles”. Forma deixando outros escombros pelo caminho. Em “The Third Reich’n’Roll” esventram os clássicos dos anos 60. Elvis Presley é crucificado em “The King And Eye”, “The American Composers Series”, uma série de obras dedicadas à memória de compositores americanos, é o veículo onde, à sua maneira, os Residents “homenageiam George Gershwin, James Brown, Hank Williams, John Philip Sousa.
“Mark of the Mole” e “The Tunes of Two Cities”, os dois únicos volumes de uma “The Mole Trilogy” até hoje sem conclusão, narram os combates épicos travados entre toupeiras e humanos, no que pode ser encarado como uma metáfora de múltiplas e perturbadoras leituras. Vídeos de pesadelo, como “Vileness Fats”, tão ou mais arrepiantes de que “Eraserhead” de David Lynch, um tratado sociológico sobre os ritos dos esquimós, “Diskomo” (de que existe igualmente uma versão “disco”), um álbum de “jingles” comerciais, “Commercial Album”, com temas de um minuto cada, a inversão demoníaca da Santíssima Trindade operada em “God in Three Persons” (recorde-se que a estreia absoluta, em 1972, dos Residents coincidiu com a edição do “single” duplo “Santa Dog”, um cartão de Natal em disco (em que é visível o anagrama “santa dog / satan god”, que os Residents enviaram na altura pelo correio, entre outros, a Frank Zappa e ao então Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon), e recuperação de uma banda pop inexistente, em “The Big Bubble”, são outros exemplos que ilustram uma imaginação delirante e uma vontade inquebrantável de mostrar o lado oculto do fenómeno e ideologia pop.
O livro vem acompanhado por um CD colectânea com 25 temas que abarcam os 20 anos de uma ”bad trip” sem igual, de “Santa Dog” ao álbum de 1992, “Our Finest Flowers”. Quem são os Residents? Ser ou não ser, continua a ser a questão.

Chico Buarque De Hollanda – “Chico Buarque Fala De ‘Estorvo, O Seu Primeiro Romance – ‘Talvez Eu Tenha Vivido O Pesadelo'”

Secção Cultura Terça-Feira, 12.11.1991 (entrevista)


Chico Buarque Fala De “Estorvo”, O Seu Primeiro Romance
“Talvez Eu Tenha Vivido O Pesadelo”


“Estorvo” representa a estreia “a sério” de Chico Buarque na literatura. No Brasil o aplauso foi unânime. O romance, que obrigou o seu autor a abandonar a música por mais de um ano, conta-nos uma história interminável de fuga e alienação. O livro encontra-se à venda em Portugal desde o final da semana passada.



Metáfora ou não, “Estorvo” incomoda pelo tom obsessivo da personagem principal, à deriva num universo de violência que o autor não deixa de comparar ao Brasil. Ao longo de uma narrativa em que a musicalidade da escrita está sempre presente, é todo um desfilar de fantasmas e desencontros que termina na morte. Mas o autor prefere falar da forma e das virtualidades da linguagem. O “filme-nefro” confunde-se com o romance psicológico.
PÚBLICO – “Estorvo” é um livro em que se nota um grande pessimismo, um tom desesperado, mesmo. Esse estado de espírito corresponde a uma fase da sua vida?
CHICO BUARQUE – Eu não me identifico a tal ponto com a personagem do livro. O tom geral é certamente de pessimismo. Talvez eu seja um pouco pessimista, se não tiver a música por perto.
P. – Mas houve alguma situação concreta que o angustiasse nessa altura?
R. – Talvez eu tenha vivido o pesadelo, durante a ecrita do livro, pelo próprio trabalho de o escrever. Foi um trabalho que mexeu bastante com alguns fantasmas. Mas digo isso hoje, porque já estou de fora. Na época não tinha muita consciência disso. Às vezes tinha até a impressão de me estar a divertir, de estar a escrever um livro cheio de humor. E quando o terminei, mesmo a partir da observação de outras pessoas, comecei a notar que está muito carregado de angústia.
P. – O livro começa por surpreender pela forma: a escrita na primeira pessoa do singular traduz-se na visão subjectiva da realidade. Os personagens não têm nome. Nesse sentido, “Estorvo” pode considerar-se um romance psicológico?
R. – Tem tudo a ver com o inconsciente. Cheguei a um certo ponto em que não vi qualquer necessidade de dar nome às personagens. Pareceu-me artificial. De resto, tenho uma certa dificuldade de dizer porque fiz de uma maneira e não de outra. Acredito que o uso da primeira pessoa facilite uma certa ambiguidade – a da realidade filtrada por uma única personagem. A sua imaginação e a minha acabam por se confundir.
P. – Um pouco à semelhança de “Barton Fink”, nunca sabemos se acção é “real” ou se se passa apenas na cabeça da personagem.
R. – Na minha cabeça, tenho uma história real, com princípio, meio e fim. A passagem da realidade para a imaginação da personagem, às vezes é marcada pelo tempo de um verbo. Mas para o leitor imagino que seja confuso. No fundo não pretendo esclarecer mais do que o necessário essa divisória entre o real e a fantasia.
P. – O romance começa com o “herói” num estado de “semi-vigília”. Não sabemos se está acordado ou a sonhar…
R. – Começa e termina nesse registo.
P. – A ambiguidade geral de “Estorvo” levou vários críticos a considerá-lo uma metáfora sobre a actual realidade brasileira. Concorda?
R. – Não tive a menor intenção nem preocupação metafórica. Por exemplo, a geografia da cidade é claramente a do Rio de Janeiro. Há sem dúvida coisas que dizem respeito à realidade concreta brasileira de hoje; elementos do seu dia-a-dia, se bem que romanceados.
P. – Mas é legítimo estabelecer um paralelo entre a personagem sem destino do romance e o cidadão brasileiro?
R. – Nesse aspecto, o cidadão brasileiro, hoje, está perdido, perplexo. E eu, como os outros brasileiros, também me sinto um pouco assim. Então aí, sim, “Estorvo” retrata o momento.
P. – Ao contrário do romance tradicional, em que o herói age sempre em nome de um ideal ou de um valor, em “Estorvo”, não existe qualquer tipo de motivação. Não há acções; apenas gestos…
R. – Há gestos, modificações, mas são movimentos sem intenção. O herói não tem intenção de interferir nos acontecimentos. Assiste a tudo, impotente.
P. – De onde vem essa sensação de impotência?
R. – Bem… As acções foram surgindo como consequência da linguagem. E ela é que determinou muitas vezes a maneira como as coisas se sucediam. Se as personagens tinham determinadas intenções, estas por vezes não se chegaram a concretizar porque na escrita soavam a falso. A linguagem não permitiu. Portanto, foi a própria escrita que determinou a acção, ou inacção, do livro. A questão da linguagem, para mim, é mais importante do que qualquer outra coisa. Num livro pequeno como “Estorvo”, passei meses a fio a reescrevê-lo. Só parava quando chegava a um resultado que me satisfizesse em termos de linguagem e não de enredo.
P. – Não receia que, com tal processo, “Estorvo” possa ser visto como mero exercício de estilo?
R.- Talvez tenha corrido esse risco, mas tenho a impressão que a própria linguagem criou uma tensão própria, um ritmo, que acaba por ser musical. Acho que o livro é musical, apesar de não ter nada a ver com a minha música. Mas tudo isto, agora, são especulações posteriores à criação.
P. – Há quem se refira ao enredo de “Estorvo” como sendo a descrição de uma fuga. Fuga de quê?
R. – Não sei se o personagem foge, se é escorraçado ou se é simplesmente um desajustado. É alguém que não se sente bem em lugar algum. Vai sempre para outro lugar, percorrendo um círculo vicioso, sabendo de antemão que não vai chegar a lado algum. Não sei se isso é uma fuga ou se é uma procura.
P. – Procura que no final cessa apenas com a cena do esfaqueamento como se o “herói” pudesse apenas ser aceite e redimido pela dor.
R. – Essas são impressões do livro. Penso nelas e é como se estivesse a pensar no livro de uma outra pessoa…
P. – Que impressão tem do seu livro, na perspectiva do leitor?
R. – A dificuldade é que eu ainda não consegui distanciar-me nem separar-me, do livro e da personagem. Ainda me sinto envolvido. Vivi essa saga. A facada no fim parece-me natural. Esse desejo de exibir o sangue vivo na camisa, para mostrar à ex-mulher, na tentativa de comunicar com ela através dessa ferida, faz parte da linguagem natural da personagem. Não foi numa perspectiva psicológica que fiz a leitura do que escrevi. Foi sobretudo ao nível da linguagem.
P. – Essa insistência no aspecto formal não esconderá o desejo inconsciente de afirmar perante a crítica a sua faceta de escritor?
R. – O reescrever e a obsessão formal são resultado de um grande prazer interior que tive em escrever. Não de inventar uma “cena” nova. Isso implicaria um sofrimento muito grande. Houve, quando muito, o desejo de ser aceite como escritor e não como compositor. O receio que tinha em relação à crítica era o de ser lido justamente enquanto autor de canções. E isso ter-me-ia parecido uma injustiça. Para ser assim, preferia ter feito um disco.
P. – O sucesso instantâneo de “Estorvo”, no Brasil, implica um redobrar de responsabilidade. Como pensa a partir de agora conciliar as facetas de escritor e compositor?
R. – Já me começaram a perguntar pelo próximo livro. Por outro lado, tenho contratos com editoras discográficas que estão preocupadas com este meu “desvio” para a literatura…
P. – Poderá haver um benefício recíproco entre a música e a litera?
R. – É um grande mistério que eu gostaria de desvendar. Julguei que, quando terminasse o livro, iria voltar para a música com muita sede. Mas fiquei exausto. E a música foi um bocado atingida. Como se todas as minhas energias tivessem sido sugadas pelo livro.

Jorge Luis Borges – “‘Ficções’, de Jorge Luis Borges, amanhã na Coleção Mil Folhas” (livro / literatura)

(público >> cultura >> literatura)
terça- feira, 25 Fevereiro 2003


“Ficções”, de Jorge Luis Borges, amanhã na Coleção Mil Folhas

As “Ficções” são um pequeno manual para se enfrentar a loucura como um jogo. A literatura do séc. XX ainda não saiu da armadilha-labirinto que o escritor argentino lhe montou


Jorge Luis Borges (1899-1986)

A literatura de Borges é como um poço. Um poço infinito e central tal como a goela da sua “A biblioteca de Babel”, um dos contos incluídos em “Ficções”, obra publicada originalmente em 1944, que definitivamente chamou a atenção do mundo para este escritor que, sem nunca ter conquistado o Prémio Nobel, foi dos que mais fez pelas letras deste século. E dos que mais as baralhou.
Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires a 24 de Agosto de 1899 e morreu a 14 de Junho de 1986. Entre dois Verões, viveu uma vida imaginária de símbolos, metáforas, equações e iluminações. O tipo de pesadelos que se tem quando se reduz a vida à literatura. O tipo de revelações que se tem quando se alarga a vida à literatura.
Borges disse certa vez pretender “destruir a realidade e converter o homem numa sombra”. O tipo de coisas ditas por um cego com pretensões a filósofo. Para Borges, o aristotélico, a cegueira física funcionou como um dos pilares do seu pensamento. Um míope vê melhor ao perto do que um homem normal, excessivamente bem, visão microscópica que toca o mais ínfimo detalhe das coisas. Um cego como Borges vê ainda mais longe – o avesso do real.
Quanto a “destruir a realidade e converter o homem numa sombra”, nem era necessário enunciar esse propósito, já que de há muito a condição humana se confinou à de espectro. Como o “Quixote” de Ménard, tudo já está escrito. Podemos apenas — Borges fê-lo — romper os véus e rebobinar o filme da memória. Existe, aliás, um livro escrito por um dos seus discípulos, Adolfo Bioy Casares, “A Invenção de Morel”, que descreve na perfeição todo o processo.
Borges limitou-se a estudar a teoria das possibilidades, aplicando a lógica e os hologramas da história, da linguística, do esoterismo e da teologia ao que, por essência, é o absurdo: o poço. A biblioteca de Babel, enciclopédia escrita por um Deus louco, tem a forma de uma torre forrada do lado de dentro (não consta que, para o escritor argentino, existisse um lado de fora) por infinitas estantes, correspondentes a infinitos andares, contendo um número infinito de livros, arrumados ao longo de uma área infinita, de forma aleatória. Nenhum igual ao outro. Alguns apenas diferentes por mais ou menos uma vírgula. Tudo o que foi dito, é dito e será dito, ao longo da eternidade, encontra-se escrito nos livros da Biblioteca de Babel. Um deles contém a explicação de todos os outros. A compreensão simultânea de tudo. Um “tudo” que o matemático Georg Cantor sintetizou numa potência e, como consequência, o levou à loucura. O mesmo “tudo” que Kafka, mais
precavido, dobrou num pequeno bilhete, fechou num envelope e, após a mensagem ser enviada ao imperador (que nunca a recebeu), pediu aos amigos para queimar. Ao centro, o eixo, abre-se o poço, onde alguns se lançam em desespero numa queda sem fim. Aconselha-se o leitor a não ir tão longe.
Para Jorge Luis Borges esse “tudo” era o Aleph, nome cabalístico que serve de título a outra das suas obras mais conhecidas, “O Aleph”, publicado em 1949. Mas o Aleph de Borges pode ser encontrado nas manchas da pele de um leopardo ou no vão de uma escada. Encontra-se, aliás, de certeza, dissimulado entre as páginas destas “Ficções”, que a Coleção Mil Folhas porá a partir de quarta-feira nas bancas.