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Phil Woods & His European Rhythm Machine – “At The Montreux Jazz Festival” + Julian ‘Cannonball’ Adderley – “Julian Cannonball Adderley” + The Sonny Stitt Quartet – “New York Jazz” + The Jimmy Giuffre 3 – “The Easy Way” + Gerry Mulligan / Johnny Hodges – “Gerry Mulligan Meets Johnny Hodges” + The John Klemmer Quartets – “Involvement” + Lee Konitz – “Motion” + Stan Getz – “Reflections” + Steve Kuhn / Gary McFarland – “The October Suite”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 6 Setembro 2003

Novo pacote de reedições em réplicas-miniatura dos vinilos originais, recupera algumas preciosidades do catálogo Verve. Objectos iconograficamente irresistíveis tanto para os melómanos como para os colecionadores. Como a máquina de Phil Woods, ideal para moer o juízo no Outono.


A máquina de ritmos dá pancada

PHIL WOODS & HIS EUROPEAN RHYTHM MACHINE
At the Montreux Jazz Festival
MGM
8 | 10

JULIAN ‘CANNONBALL’ ADDERLEY
Julian Cannonball Adderley
EmArcy
8 | 10

THE SONNY STITT QUARTET
New York Jazz
Verve
8 | 10

THE JIMMY GIUFFRE 3
The Easy Way
Verve
7 | 10

GERRY MULLIGAN/JOHNNY HODGES
Gerry Mulligan Meets Johnny Hodges
Verve
8 | 10

THE JOHN KLEMMER QUARTETS
Involvement
Cadet
6 | 10

LEE KONITZ
Motion
Verve
7 | 10

STAN GETZ
Reflections
Verve
6 | 10

STEVE KUHN/GARY McFARLAND
The October Suite
Impulse
7 | 10


Outros títulos disponíveis:
“This is Billy Mitchell” (BILLY MITCHELL), “Jim Hall Live” (JIM HALL), “Steel Guitar Jazz” (BUDDIE EMMONS), “Jazz Cello” (RAY BROWN), “Ask me now!” (PEE WEE RUSSELL), “Once upon a Time” (EARL HINES), “Afro-Harping” (DOROTHY ASHBY)

Todos distri. Universal

Olá amigos, a todos muito bom jazz. O fim do Verão traz jazz clássico, jazz de ouro, jazz em CD a imitar discos antigos em vinilo. Para os aficionados e para os colecionadores, o grupo editorial Verve lançou mais um extenso pacote de reedições cartonadas, apresentadas pela primeira vez no formato digital. A música que vem lá dentro vale quase toda ela a pena. E prepara-nos para improvisar o destino no Outono.
É o caso da música de Julian “Cannonball” Adderley, saxofonista alto de costela parkeriana e fabuloso melodista com os pés bem assentes no “blues”. No álbum de título homónimo gravado em 1955, primeiro para o selo EmArcy, o fraseado escorre como mel e o bop tomou calmantes. “Purple shades” e “Fallen feathers” conseguem ser tão comoventes como canções de amor. Nat Adderley, J.J. Johnson, Paul Chambers e Max Roach são alguns dos parceiros do tenorista neste álbum que canta do princípio ao fim.
Outro esteta da melodia, embora mais nervoso, Sonny Stitt entregou igualmente o alto aos desígnios do bop. O alto e o tenor. Em quarteto com a lenda Ray Brown, na bateria, Jimmy Jones, no piano, e Jo Jones, na bateria, gravou “New York Jazz” em 1956, disco de “boppar” com todas as letras onde o “blues”, claro, enche, sustenta e equilibra as ousadias da inspiração do momento. Ao contrário de Adderley, Stitt gosta de acelerar, mesmo nas curvas mais apertadas. O piano de Jimmy Jones e o balanço profundo de Brown (mas ouçam-no a correr sem tocar no chão, em “Twelfth street rag”…) chamam a atenção para as virtudes de segredar ao ouvido. “If I had you”, “Alone together” – Há sempre uma ocasião em que dizemos coisas como estas a alguém… A “Down Beat” limitou-se a afirmar que eram de “cortar a respiração”.
Um génio: Jimmy Giuffre. O senhor clarinete do som “West Coast”. A melodia fez-se luz. “The Easy Way”, sessão de 1959, tem como companheiros ideais ainda Ray Brown (“Ray’s time” entrega-lhe todo o poder para dirigir as conversações…) e Jim Hall, guitarrista dos céus sem nuvens. Álbum de planície, de estações amenas e de contemplações, estremece, embora sem chegar a ameaçar derrocada, quando o clarinete é trocado pelo saxofone tenor ou barítono. O cosmos só seria abalado mais tarde, em “Free Fall”. Entretanto o “swing”, no extremo da “coolness”, deslizava em “Off center”, a provar como muito do jazz moderno deve ao modo como Giuffre soube povoar os espaços vazios e a dinâmica dos silêncios. “Montage”, a prenunciar a matemática harmónica avançada de “Western Suite”, era já o futuro.
No mesmo ano, Gerry Mulligan contrapunha o seu saxofone barítono ao alto de Johnny Hodges. “Gerry Mulligan Meets Johnny Hodges” é uma conversa calorosa, travada mais em descontração do que em tensão. Em “What’s the rush” percebe-se como o “blues” é o coração de todas as baladas e por que razão o saxofone é, entre todos os instrumentos, o mais capaz (e verdadeiro) de chorar.
John Klemmer, saxofonista tenor, tem em “Involvement” (1967) tudo para impressionar os admiradores do jazz de fusão. Adepto de um som sintético, o saxofonista de Chicago optou pela eletrificação do instrumento na sequência do seu trabalho com a orquestra de Don Ellis. Porém, o que esta sonoridade tem de apelativo (som redondo, ausência de harmónicos “intrusos”) acaba por se esbater num discurso sem surpresas onde desaguam uma quantidade de fórmulas gastas no passado. A guitarra de Sam Thomas, próxima de uma sensibilidade rock, tenta dar ares de inovação mas é amiúde causa de irritação.
Expoentes, respetivamente do sax alto e tenor, Lee Konitz e Stan Getz são sinónimos do grande jazz bem modulado. De 1961, “Motion” apresenta o primeiro em trio com Elvin Jones, na bateria, e Sonny Dallas, no baixo. Getz entrou no estúdio dois anos mais tarde para gravar “Reflections”. “Motion” é um “tour de force” para saxofone apaixonado e apaixonante. Alteração de timbre, entre o doce e o ácido, ondulação firme, uma clareza que nada consegue (co)rromper, oferecem o prazer de seguir em direto as mudanças de sensibilidade e os jogos que esta trava com a cabeça.
“Reflections” sabe a licor. Em Getz, o Belo apodera-se dos sentidos. Mesmo que a Beleza tenha, como aqui, o manto barroco das orquestrações de Lalo Schiffrin e Claus Ogerman. Não chega a ser decorativo, embora o carimbo “Exotica” do “easy listening” (por falar nisto, experimentem deitar um ouvido ao cósmico e estonteante tema de abertura de “Afro-Harping”, de Dorothy Ashby, uma viagem espacial de harpa e theremin próxima das “Good vibrations” dos Beach Boys…) ronde os floreados do vibrafone, o sorriso das congas e cânticos que parecem ter servido de manual de ensinamento a Laetitia Sadier dos Stereolab. E terminar com uma versão pop lamechas de “Blowin’ in the Wind”, de Dylan, pode não ser boa política. “Reflections” insinua o jazz na música popular, termo que, diz o dicionário, significa “amado ou aprovado pelas pessoas”. Algo de que Getz nunca se pôde queixar. Pessoal da pop, não se acanhem e aproximem-se.
Se ainda não se afastaram, não percam a oportunidade de conhecer também a música de um jazzman que influenciou decisivamente algumas das experiências psicadélicas e de fusão da pop dos anos 60 e 70 (como Wolfgang Dauner, Gunter Hampel, Gordon Beck…): Phil Woods, extraordinário executante do saxofone alto, para muitos o maior depois de Parker. Gravado ao vivo no festival de Montreux de 1969, “At the Montreux Jazz Festival” apresenta a sua European Rhythm Machine ao mais alto nível, com uma secção rítmica formada por George Gruntz (piano), Henri Texier (baixo) e Daniel Humair (bateria). Free jazz, free rock, pós-bop progressivo, riffs incendiários, círculos e explosões, a máquina faz jus ao seu nome, “Ad infinitum” (um dos temas do disco, com assinatura de Carla Bley). “Riot”, de Herbie Hancock, é “free” para converter os céticos da liberdade. A máquina de ritmos dá pancada.
“The October Suite”, gravado em 1966, é já Outono. Notas que tombam e se enrolam como sentimentos separados do corpo. Gary McFarland compôs, orquestrou e dirigiu com o bónus de uma secção de madeiras e outra de cordas. Ao piano sentou-se Steve Kuhn, herdeiro espiritual de Bill Evans. Jazz de câmara, entre o lirismo e a abstração, a contemplação e a obsessão. Kuhn introduz dissonâncias no que parece poema sinfónico, espaços de inquietação entre as orquestrações cinematográficas de McFarland. “Traffic patterns” sai da redoma do idioma clássico revelando o melhor das capacidades de improvisação do pianista que em “Childhood dreams” rasga o tecido orquestral com uma lição de piano impressionista.

Drew Gress – “Spin & Drift” + Pharoah Sanders – “Spirits” + François Bourassa Trio – “Live” + Lee Konitz & Martial Solal – “European Episode” + François Théberge 5 c/ Lee Konitz – “Music Of Konitz”

(público >> mil-folhas >> jazz >> crítica de discos)
sábado, 12 Abril 2003

A selva de Sanders. O gozo de Dress. E grande jazz do Hexágono, de ontem e de hoje. Espirituoso ou espiritual.


Espíritos à solta

DREW GRESS
Spin & Drift
Premonition
8 | 10

PHAROAH SANDERS
Spirits
Meta
7 | 10

FRANÇOIS BOURASSA TRIO
Live
Effendi
10 | 10

LEE KONITZ & MARTIAL SOLAL
European Episode
CamJazz
9 | 10

FRANÇOIS THÉBERGE 5 c/LEE KONITZ
Music of Konitz
Effendi
6 | 10

Todos distri. Multidisc



Simbiose, com Drew Gress a trocar de papéis com o saxofonista Tim Berne, passando em “Spin & Drift” a assumir o papel de líder. Mas a cumplicidade entre ambos é tão grande que se torna irrelevante falar em liderança a propósito desta música em que a força do coletivo é superior à da soma das partes. Berne não é um saxofonista dramático, mas o timbre carnudo do seu alto permite colorir cada tema com os tons do folguedo. “Disappearing” é comunicação direta a quatro vozes entre o alto, o contrabaixo, o piano de Uri Caine e a bateria de Tom Rainey. Em “Torque”, o contrabaixista faz jus a um “swing” largo, Berne desce com agilidade às profundezas do barítono e Caine parece querer desmentir quem acusa o seu piano de frigidez. “It was after rain that the angel came”, outonal, reflete cambiantes de nostalgia nas notas do contrabaixo, com Caine resplandecente na sua faceta de recitalista clássico. A faixa exótica, e uma das mais belas do disco, chama-se “Aquamarine” e nela a “pedal steel guitar” de Gress escorre como um riacho pelo empedrado, com Caine a fazer tombar notas de chuva. Álbum belíssimo, forte sem gorduras, pujante sem gritar ao megafone, imaginativo sem cair no delírio.
“Spirits”, gravado ao vivo em 1998 em local não identificado, é o prolongamento lógico de toda a obra anterior de Pharoah Sanders, coltraniano coberto de missangas, cuja música viajou entre o “hard bop”, o “free”, a improvisação ascética e a música étnica. Os 19 minutos de abertura de “Sunrise” soltam os espíritos do mundo, em “drone” de ressonâncias indianas, com florescências de uma “mbira” africana, apontamentos de pequena percussão saídos da cornucópia de Adam Rudolph e o veterano Sanders a dividir-se entre a contemplação indolente no sax tenor e cânticos de chamamento. Organizado como um louvor à sabedoria “sufi ” e à intuição, “Spirits” oferece nesta longa prece introdutória mais do que um motivo de agrado aos apreciadores tanto do jazz como da “world music”. As restantes faixas oscilam entre o exotismo exuberante das percussões de Rudolph e Hamid Drake, o “free” do “quarto mundo”, como o saboroso piscar de olhos a Coltrane, “The thousand petalled lotus”, ou o “satori” de gongos e “overtone singing”, ecos da fauna e flora de uma selva tropical incrustada no cérebro. Flautas de bambu, tablas, batuques rituais, borboletas e flores canibais, “Spirits” une com as pontas de um arco-íris o passado ancestral a um futuro onírico, em que jazz e o folclore imaginário se entrelaçam, numa celebração exterior a qualquer noção de urbanidade como aquela que anima os Art Ensemble of Chicago. Um “Sunset” de fogo fecha como começou o ciclo do dia – “drone”, suspiros “aum” e os murmúrios da floresta. Pharoah Sanders encontrou o seu nirvana.
O disco da semana é o “Live”, do trio do pianista François Bourassa, registado em Toronto em Maio de 2001, com Guy Boisvert (contrabaixo), Yves Boisvert (bateria) e o convidado André Leroux, nos saxofones tenor e soprano e flauta. Bourassa é um fabuloso arquiteto e desenhador com uma fluência e imaginação inesgotáveis. O modo como constrói em crescendo “30 Octobre 85”, partindo de motivos simples para o recorte de frases cuja força e complexidade se concentram na recriação do “Big Bang”, em conjugação com o desempenho explosivo de Leroux, no tenor, constitui daqueles momentos raros de audição de música em que apetece gritar de excitação.
A contrastar, “W! U! W!” surge de seguida como um “pizzicato” de sombras e silêncios. Frases sintéticas, revelação de perspetivas oblíquas, que, uma vez iluminadas, adquirem a inevitabilidade das evidências. Como cidades construídas dentro de cidades, segundo uma infinidade de escalas sobrepostas. “Arico – Afab” confirma Bourassa como um pianista de exceção, capaz de equilibrar “clusters” tão vastos como o cosmos com miniaturas de ourives. Mão esquerda de mago negro, mão direita de pintor renascentista, Leroux brilha e inventa a cada momento, acrescentando novas ideias e soluções inusitadas ao terreno, já de si fértil, semeado pelo pianista. Uma paisagem impressionista, ”13”, e uma homenagem, em duas partes, ao pianista Herbie Nichols dão a conhecer o outro lado da moeda. Flauta e piano em diálogo intimista, com Leroux a utilizar, sem exibicionismos, um leque de técnicas e respirações ”extensivas” e Bourassa, uma vez mais, a operar prodígios. Tudo isto a transbordar de ”swing”, a oferecer um espetacular momento de bop (“Chambrette”) e, a culminar, um “medley” de 16 minutos ao redor de Monk (“Four in one”/“Round midnight”/“Epistrophy”/“Trinkle tinkle”) que entra diretamente para a galeria dos clássicos. Um dos discos do ano.
A música de Lee Konitz ocupa o centro das atenções, em dois discos registados em épocas diferentes. ”European Episiode” recupera em versão remasterizada uma sessão de 1968 com o pianista francês Martial Solal e dois compatriotas seus, Henri Texier (contrabaixo) e Daniel Humair (bateria), nomes de referência do jazz com origem no ”hexágono”. Uma colagem de ”standards”, com Konitz no alto eletrificado, ”Anthropology”, de Parker e Gillespie, um clássico do ”bop”, a balada ”Lover man” e o blues “Roman blues” têm a companhia de “Duet for saxophone and drums, and piano”, um “divertimento” em forma de improvisação “free” que pode servir de manual de aprendizagem. Criatividade e liberdade exigem ordem, seja de que natureza for. Konitz, Solal, Texier e Humair são professores de Direito. Descodificar o código de leis elaborado pelos quatro é um dos muitos aliciantes deste episódio europeu.
É um Konitz mais velho e cansado que escutamos a enriquecer com a sua participação um álbum que lhe é dedicado, “Music of Konitz”, pelo quinteto do saxofonista tenor francês François Théberge. Mestre e discípulos mantêm distâncias, neste encontro que ocorreu em 2002 no clube Duc des Lombards, em Paris. O encontro das autocitações do “bopper” com a reverência dos cinco franceses não faz faísca.



William Parker + Steve Lacy & Geri Allen + Lee Konitz & Joey Baron – “Conversa De Gigantes Do Jazz No CCB, William Parker Em Coimbra” (concertos / artigos de opinião / jazz)

(público >> cultura >> jazz >> concertos)
sábado, 18 Janeiro 2003


Conversa entre gigantes do jazz no CCB

WILLIAM PARKER EM COIMBRA

Duos no CCB. Jazz ao Centro em Coimbra. O jazz no centro das atenções. Steve Lacy, Geri Allen, Lee Konitz, Joey Baron tocam hoje em Lisboa. O quarteto de William Parker, em Coimbra




Steve Lacy, um dos saxofonistas mais inquietos do jazz contemporâneo

Jazz a dois é conversa. Amena, inflamada ou, se der para o torto, da treta. Jazz a duas vozes é o que esta noite se poderá escutar em concerto duplo no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a partir das 21h.
São quatro os conversadores, qualquer deles de monta, cada qual com muitas histórias para contar, para dizer ao outro e lhe pedir explicações, respostas ou um simples comentário. O outro fará o mesmo. A história do jazz está cheia destas conversas.
Steve Lacy, um dos saxofonistas mais prolixos e inquietos do jazz contemporâneo, terá como parceiro a pianista Geri Allen. Ele, homem de longas fidelidades (“são as relações a longo prazo que prezo mais”), com Kent Carter, Jean-Jacques Avenel, Oliver Johnson (recentemente falecido) ou a sua mulher Irène Aebi, mostra-se, no entanto, disponível para a descoberta de outras músicas que completem ou desafiem a sua. A de Geri Allen esteve sempre debaixo da sua mira. Cumprirá hoje esse desejo.
Lacy é o viajante por natureza que aprendeu com a tradição a fabricar o futuro. Duke Ellington, que continua a considerar “o músico nº1”, ensinou-o a gostar de jazz. Com Thelonious Monk, de quem é intérprete de excepção, manteve a ligação afectiva ao bebop. Mas, é claro, por ele passou grande parte da excitação que nos anos 60 ganhou o rótulo, a reputação e o grito de “free jazz”. Esteve ao lado de Cecil Taylor (foi quem lhe revelou Monk), Ornette Coleman, Don Cherry e Jimmy Giuffre. Era quando o seu saxofone – o difícil soprano, ao qual se dedicou em exclusivo, num caso ímpar de fidelidade a um instrumento a que a maior parte dos saxofonistas recorre em segunda escolha – soava mais agreste e libertário. A passagem dos anos arredondou-lhe o som, levando-o para junto do calor do alto.
Enrico Rava, Louis Moholo, Derek Bailey, Evan Parker, Steve Potts (Lacy foi dos poucos a reconhecer-lhe importância), John Stevens, Trevor Watts e Roswell Rudd, além da bizarra nave espacial chamada Musica Elettronica Viva, foram alguns dos músicos livres que consigo fizeram o jazz passar a fronteira do bop. Nos anos 80 encontrou no piano de Bobby Few um lugar de conforto.
Até hoje a sua atividade e os seus interesses estenderam-se à canção (de veia Brecht/Weilliana, na voz da sua mulher), ao teatro (trabalhou com Merce Cunningham), à poesia (gravou com Bryon Gysin, como Willam Burroughs, (poeta das máquinas de linguagem do mal) e ao cruzamento com outros universos musicais, da música do Oriente (um dos seus projectos próximos é compor sobre poemas zen e cânticos budistas) a peças impressionistas como as “Gnossiennes” de Erik Satie, que tranpôs para o sax soprano.
Geri Allen há-de levar em atenção as palavras de Lacy: “Quando toco com um estranho que nunca me ouviu antes ou só ouviu através de um disco, é possível que ele não me entenda e pense que estou perdido. Então é ele próprio que se perde e a coisa pode tornar-se uma grande confusão”.
Da sua extensa discografia, sugerimos (escolha necessariamente subjetiva e parcelar) os álbuns: “The Forest and the Zoo”, “Scretching the Surface” (triplo CD que reúne alguns dos trabalhos mais experimentalistas, como “Lapis” e “The Owl”, gravados nos anos 70 em Paris, onde viveu grande parte da sua vida), “Saxophone Special +”, “Weal & Woe”, “Trickles”, “The Way”, “Two, Five & Six/Blinks”, “We See”, “Vespers” e “5 x Monk 5 x Lacy” (sax soprano solo, Lacy e Monk em jogo de reflexos).

O universo dos outros

Geri estará decerto atenta. “Gosto de entrar no universo dos outros. É como ir para outro país e outra cultura – tem-se a sorte de se poder olhar para o nosso lado de dentro, mais de perto. E adquire-se uma maior clareza quando se volta ao nosso próprio universo”, diz. Discípula de Kenny Barron, Geri Allen possui uma musicalidade, um vigor e um swing inconfundíveis. Mergulhou fundo no movimento M-Base, tocando com Steve Coleman (“Motherland Pulse”, recenseado no Mil Folhas da semana passada). Andrew Cyrille, Julius Hemphill, Arthur Blythe, Dewey Redman, Lester Bowie, James Newton, Charlie Haden e Paul Motian puderam igualmente apreciar e aproveitar a poesia poderosa do seu piano. O seu novo disco tem por título “Twenty One”. Dúvida para hoje à noite: será que trará consigo o sintetizador?
Conversam a seguir Lee Konitz, saxofonista alto e soprano, e Joey Baron, baterista. De novo duas gerações frente a frente. Konitz é a voz dissidente do bebop que ousou contrariar o domínio de Charlie Parker e apontar novas direcções, até chegar ao “cool”, consciente de que o timbre e o fraseado do seu alto não são fáceis de assimilar.
Lennie Tristano, de quem foi fanático discípulo e acompanhante – e, por consequência, de Warne Marsh, outro saxofonista “desalinhado” – foi provavelmente o pianista que melhor o compreendeu, da mesma forma que ele foi dos poucos a compreender Tristano. Talvez por isso este saxofonista um pouco marginal que tanto se rodeia dos maiores solistas como de jovens aprendizes entusiastas, que participou nas sessões de “The Birth of the Cool” com Miles Davis e que acusou Anthony Braxton de ter insultado a música de Tristano, aprecie a companhia de bateristas “melódicos”. Como Joey Baron, em relação ao qual manifestou uma ânsia enorme de tocar.
Baron, o baterista do momento, é, como se costuma dizer, pau para toda a obra. Está no rock, no R&B, na “downtown”, na música improvisada como no mais redundante “mainstream”. A lista de participações é infindável: Dizzy Gillespie, Tony Bennett, Chet Baker, Laurie Anderson, Art Pepper, Stan Getz, David Bowie, Philip Glass, John Abercrombie, Al Jarreau, John Scofield, The Lounge Lizards, Tim Berne… Depois dos Naked City (com John Zorn, Fred Frith, Bill Frisell e Wayne Horvitz), integra atualmente os Masada, de John Zorn, Dave Douglas e Greg Cohen. É líder dos Barondown, em trio com Ellery Eskelin e Steve Swell. A sua mais recente gravação tem por título “Down Home”.
Hoje à noite se verá quem irá aprender com quem. Divertir com quem. Arriscar com quem.

Steve Lacy + Geri Allen;
Lee Konitz + Joey Baron

LISBOA Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
Às 21h. Tel. 213612444.
Bilhetes entre 5 e 20 euros

Baixo grande em Coimbra

O jazz da frente continua a dar cartas em Coimbra, através dos seus concertos mensais, no âmbito de Coimbra 2003, Capital Nacional da Cultura. William Parker e o seu quarteto prosseguem esta noite o ciclo Jazz ao Centro — Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra.
Além de Parker, contrabaixista de reconhecidos méritos que sucede em linha direta a mestres como Jimmy Garrison, Paul Chambers e Charles Mingus, fazem parte do quarteto Rob Brown (saxofone alto), Lewis Barnes (trompete) e Hamid Drake (bateria).
Parker faz uma súmula bastante convincente e totalmente personalizada do “free jazz”, do “hard bop” e do novo jazz que dispensa catalogações. Já no final dos anos 80 participa numa série de gravações com o pianista Cecil Taylor (“Looking”, “Celebrated Blazons”, “Olu Iwa”, “Melancholy”…), associando-se posteriormente a improvisadores como Peter Brotzmann, Paul Rutherford, Derek Bailey e Peter Kowald, integrando as fileiras da editora FMP (“Free Music Productions”).
O vozeirão do seu contrabaixo, como em Mingus, reivindicativo da primeira pessoa em discurso direto, dá ainda explicações no Little Huey Creative Music Ensemble de Nova Iorque.
O seu álbum mais recente, “Raining on the Moon”, com o selo Thirsty Ear (editora que, segundo alguns, estará a desempenhar neste novo milénio o mesmo papel que a Blue Note nos anos áureos do jazz comprendido entre as décadas de 40 e 60) surge curiosamente inserido numa linha tradicionalista, ou neotradicionalista, onde se cruzam os fumos da “downtown”, a citação bop e o cabaré.
Coimbra será o segundo ponto de passagem do quinteto pela Europa.

William Parker Quartet
Coimbra Teatro Académico Gil Vicente
Às 21h30. Tel. 239855636. Bilhetes a 10 euros (estudantes: 8 euros)