19 de Novembro 1999
POP ROCK
Poetas “on the road”
Jack Kerouac
Reads on the Road (7)
Lawrence Ferlinghetti
A Coney Island of the Mind (6)
Ryko, distri. MVM
Poesia em disco. Alimento para a alma, tendo o ouvido como intermediário. Uma outra forma de relação com o fluxo poético que à solidão do monólogo interior inflamado pela relação com a palavra do poeta contrapõe a mediatização do discurso musical. Em Portugal, Os Poetas mostraram em “Entre Nós e as Palavras” que a palavra poética se pode conjugar harmonicamente no e através do som musical. Pela fonética e pela voz/música própria, pessoal, do poeta (através de gravações ou declamando em tempo real) que a si próprio se diz, declamando. Na pop, a voz de William Burroughs tornou-se um ícone, símbolo mais fonético que significante, manjar dos samplers.
Agora chegou a vez de Jack Kerouac, papa da “beat generation”, dar a conhecer a sua obra num contexto musical. “Reads on the Road” reúne material disperso. Interpretadas pelo próprio, há canções como “Ain’t we go fun”, “Come rain and shine” e “When a woman loves a man” (Kerouac costumava cantar e tocar bongos nas míticas sessões de jazz e poesia que tiveram lugar no clube Minton’s Playhouse, berço do be bop, em sessões com Thelonius Monk, Charlie Parker e Dizzy Gilespie…) e uma leitura de mais de 26 minutos, em local e data não identificáveis, de “On the road”, a obra que serviu de bíblia ao movimento “hippie” na alvorada dos anos 60. “On the road” aparece de novo num curto excerto musicado pelo organista John Medeski.
David Amram, a solo ou com o seu grupo, criou arranjos instrumentais, respeitando escrupulosamente a métrica e as entoações vocais do autor, para “Orizaba 210 blues” e “Washington D.C. blues”, este último, sem publicação até à data, uma sátira imbuída de reflexões religiosas sobre o dia-a-dia num colégio feminino escrita por Kerouac em 1956 no quarto do seu amigo, e também poeta, Randall Jarrell, autor de “Pictures from An Institution”.
Tom Waits (admirador ferrenho do poeta que influenciou grandemente a sua escrita e a sua forma de cantar) fecha o álbum na companhia de Primus com nova leitura/canção de “On the road”.
“A Coney Island of the Mind” funciona de forma diversa, no modo de conjugação do tempo com o som e as palavras. Neste caso tratou-se de juntar o próprio poeta, Lawrence Ferlinghetti, a declamar os seus versos, com a música de Dana Colley, saxofonista dos Morphine, escolhido para este projecto pelas suas ligações ao jazz. Ferlinghetti é o autor da obra que dá título a este álbum, ainda um texto de referência da “beat generation”. Em 1955 foi acusado (e julgado inocente) de venda de pornografia devido a ter publicado, na editora City Lights Pocket Book Four, “Howl”, um texto de Allen Ginsberg, outro dos patriarcas da geração “beat”.
As gravações decorreram num estúdio instalado na cave do edifício Sentinel, em São Francisco, comprado por Francis Ford Copolla, que nesse local gravou as vozes de “Apocalypse Now”. Situado a curta distância da antiga editora City Lights e da galeria onde Ginsberg declamou “Howl” pela primeira vez, o edifício foi ponto de passagem, nos anos 60, de gente como Lenny Bruce e os Grateful Dead que aí gravaram algumas das suas famosas sessões psicadélicas.
Em termos sonoros não se pode dizer que “A Coney Island of the Mind” seja exaltante, apesar do minucioso trabalho do músico dos Morphine, sobretudo na “monstruosa” sequência de 38 minutos do título-tema (indexada em 29 faixas). Jazz cool, ambientes fumacentos e apontamentos instrumentais na penumbra pontuam com eficácia o discurso de Ferlinghetti, mas deixarão, decerto, desapontados os admiradores dos Morphine (“Dog” poderia ser uma canção do grupo, não fosse o peso do poeta…). Ficam para saborear, neste registo como em “Reads on the Road”, as palavras de dois dos poetas mais representativos de um tempo em que se achou ser possível fazer do sonho a regra de conduta. Caso se domine a língua inglesa, é evidente.