Arquivo de etiquetas: Lal Waterson

Norma Waterson – “The Very Thought of You” + Lal Waterson & Oliver Knight – “A Bed of Roses”

Sons

23 de Julho 1999
WORLD


Waterson & Waterson, o génio em família

Norma Waterson
The Very Thought of You (10)
Hannibal, distri. MVM
Lal Waterson & Oliver Knight
A Bed of Roses (8)
Topic, distri. Megamúsica


lal

“The Very Thought of You” apresenta uma das vozes com mais profundidade e carregada de emoção da música popular inglesa. E não dizemos folk, porque Norma Waterson é, hoje, a voz de muitas músicas. A veterana cantora dos Watersons, formação vocal pioneira do movimento de revivalismo folk que eclodiu em Inglaterra nos anos 60, faz-se acompanhar neste álbum – dedicado à sua irmã, Lal Waterson, recentemente falecida – por dois membros do clã Carthy, o marido, Martin, e a filha, Eliza, e por dois Thompson, Richard, o ex-Fairport Convention, e Danny, o ex-Pentangle. E é, precisamente, na composição assinada pela irmã, “Reply to Joe Haines” – resposta a uma carta, considerada “infame” pela cantora, publicada no “Daily Mirror” pelo dito Haines, a propósito da morte, de sida, de Freddie Mercury –, que “The Very Thought of You” atinge um grau de intensidade emotiva e uma beleza quase insustentáveis. Um tema para a eternidade.
Na canção anterior (Norma juntou-as aos pares sobre um mesmo tema), “Love of my life”, com a assinatura do próprio ex-cantor dos Queen, Norma faz coincidir o passado e o presente, o amor e a tragédia, num registo influenciado pelo pessimismo caro a Richard Thompson, que aqui contribui com dois temas da sua autoria: “Josef Locke”, outro dos momentos de maior intensidade interpretativa do disco, e “Al Bowlly’s in heaven”, ainda sobre a temática da morte, neste caso de Fred Astaire. Loudon Wainwright II, Nick Drake (“River man”, outro clássico, transformado num tema de folk de câmara pelo violino da filha, Eliza Carthy) e John Martyn (com “Solid air”, folk-jazz ao mais alto nível), dois nomes cujas obras têm em comum mais do que se possa imaginar, e Clive Gregson contribuem também com composições para “The Very Thought of You”. Um álbum que vai do clássico “Over the rainbow”, do filme “O Feiticeiro de Oz”, aos dias da rádio e ao jazz que se ouvia na rádio (o título-tema), das baladas mergulhadas num tempo já desaparecido à própria suspensão da temporalidade.
Em “The Very Thought of You” Norma Waterson pegou em canções com história e atirou-as para os braços da eternidade. Não há muitas cantoras, no mundo inteiro, que consigam aliar a tradição e a modernidade da maneira como ela o faz. Depois da estreia, com o álbum homónimo, de 1996, Norma Waterson assina em “The Very Thought of You” um dos melhores discos do ano.
Disco do ano foi, em 1997, para este suplemento, “Once in a Blue Moon”, de Lal Waterson e Oliver Knight. À semelhança do que acontece com Norma, que se socorreu dos serviços da filha Eliza, em “The Very Thought of You”, também Lal gravou “A Bed of Roses” com a ajuda do filho, Oliver Knight, o que já se verificara aliás, no disco anterior da dupla. Em “A Bed of Roses” há mais folk e menos fantasmas à solta do que em “Once in a Blue Moon”. E um pedaço de fado (!), pelo bandolim de Jody Stecher, em “Columbine”. Compreende-se, mais do que nunca, ao escutar temas como “Bath time” ou “Long vacation”, a influência que a cantora inglesa exerceu em Marianne Faithfull. E, no lugar onde ambas se encontram agora, decerto que Lal e Nico se terão encontrado para trocar segredos e maldições.
Em Lal Waterson, na sua voz impregnada de histórias, quase todas elas tristes, habitava o desamparo e a solidão dos exilados. Mesmo quando a intrusão de uma guitarra eléctrica “progressiva” se faz sentir, como acontece em “Train to bay”, é impossível escutar “A Bed to Roses” sem sentir uma gota fria de inquietação. E deslizar por um abismo de recordações saídas dos recantos mais escuros da memória, cercados por uma coroa de flores como as da capa, tão geladas quanto a voz e a música de Lal Waterson, uma cantora que ficará para a história como das mais enigmáticas da folk britânica. O tema, já sem a sua voz, é o espaço que fica depois da morte. Um espaço vazio.



Lal Waterson & Oliver Knight – “Once In A Blue Moon”

POP ROCK

5 Março 1997
world

Fantasmagoria

LAL WATERSON & OLIVER KNIGHT
Once in A Blue Moon (10)
Topic, distri. MC-Mundo da Canção


lw

Depois dos Watersons, ainda nos anos 60, da lição dos pais aos filhos, de “Waterson: Carthy” e de a jovem Eliza Carthy, primeiro com Nancy Kerr, recentemente, a solo, em “Heat, Light & Sound”, gritarem alto o nome da família, chegou agora a vez de outro dos seus elementos, Lal Waterson, com a colaboração de Oliver Knight (guitarras), abrir o livro noutra página. Provavelmente a mais brilhante.
A voz de Lal condensa, num universo pessoal e estelar, tudo o que existe de mais emocional em Norma Waterson e existia em Grace Slick (“Flight of the Pelican”) e Melanie (“Stumbling on”, “Wilson arms”) ou de inquietante, numa quase personificação de Nico, em temas como “Her white gown” e “Dazed”, de uma beleza sepulcral. Envolto numa produção atmosférica onde a reverberação e o dramatismo das vocalizações atingem, quase todos, a dimensão do sobrenatural, “Once in A Blue Moon” conta ainda com as colaborações, nos apoios vocais, em dois temas, de Norma Waterson e Jo Freya, uma ex-Blowzabella que também toca saxofone e clarinete, Martin Carthy, guitarra acústica num tema, e Charles O’Connor, rabeca, também num tema, entre outros nomes menos sonantes. Quanto a Oliver Knight, na guitarra, recorda, no estilo e na sonoridade, Martin Simpson. Mas o todo supera a junção das partes.
Disco lunar, parente das fantasmagorias de Nico e de Tim Buckley, difícil de enquadrar numa corrente, oscila entre a emoção levada a extremos de tensão quase insuportáveis e um tipo de experimentação que vai muito além do que a própria June Tabor ousou em “Angel Tiger” e “Against the Streams”. A este título, “Phoebe”, no modo como é feita a teatralização da guitarra eléctrica saturada de efeitos e distorção de Oliver Knight, constitui um dos momentos limite e mais perturbantes de “Once in A Blue Moon”. 1997 está a recolher do ano que findou alguns dos seus melhores trabalhos. Ambiental, trágico, totalmente introspectivo, “Once in A Blue Moon” é uma obra-chave do que poderíamos designar por “pós-folk”, em que a voz de Lal Waterson ultrapassa tudo o que poderíamos esperar. No pólo oposto, mas não menos brilhante, ao sol dos Dervish, está a lua de Lal Waterson.