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Kodõ – “Percussões Japonesas Nos Jerónimos – Sexo Com Os Tambores” (concerto)

cultura >> quarta-feira >> 28.04.1993


Percussões Japonesas Nos Jerónimos
Sexo Com Os Tambores


O grupo de percussões Kodõ, “crianças do tambor”, celebrou nos claustros dos Jerónimos um ritual de louvor à vida e ao ritmo. Ao ritmo da vida. Em guerra com os tambores tradicionais Taiko. Em paz com o mundo. Kodõ significa também “palpitar do coração”.



Aconteceu na noite de segunda-feira, em Lisboa, quando os tambores tradicionais Taiko, do grupo japonês Kodõ, invadiram os claustros dos Jerónimos, fazendo vibrar as pedras e o corpo da assistência convidada, numa cerimónia ritual de dança e percussões integrada no “Close-up of Japan-Lisboa-93”, iniciativa levada a cabo todos os anos, em diferentes cidades do globo, com o objectivo de divulgar a cultura japonesa. Cerimónia solene onde estiveram presentes o presidente da República, Mário Soares, e a princesa e o príncipe Takamado, do Japão, e que se repetirá hoje e amanhã, no mesmo local, em espectáculo para todos.
Cada instrumento musical tem uma alma própria. Qual é a alma do tambor? Explosão, rufo, disparo, baque, explosão. Um coração dentro da terra. Instrumento uterino, feito de matéria opaca, religa o corpo do homem ao ventre de Gaia, o planeta vivo. Os tambores Taiko assemelham-se a pipas de vinho, de tamanhos variáveis. Podem ser percutidos de ambos os lados, por um ou, nos de maiores dimensões (o maior de todos era gigantesco, montado sobre uma espécie de carro de guerra), dois músicos. Em vez de vinho produzem sons igualmente capazes de provocar a embriaguez.
Religação é sinónimo de religião. O grupo Kodõ, termo japonês com o duplo significado de “O palpitar do coração” e “crianças do tambor”, serve-se dos tambores para ritualizar os ritmos da terra, convocar os seus demónios, símbolo das forças telúricas que percorrem as artérias do planeta e, em última instância, para, comunicando com a terra, comunicar com o próprio corpo e as suas pulsões.
Durante o cerimonial zen dos Kodõ, o gesto dos executantes é indissociável da prestação musical propriamente dita. Homem, tambor e som confundem-se num corpo único. Num dos momentos mais altos de um acontecimento que terá deixado atónitos alguns dos convidados, os músicos, envergando apenas uns reduzidos panos brancos a envolver-lhes os rins, tocaram deitados, presos ao tambor, simulando (‘) as convulsões do orgasmo, gritando e gemendo, enquanto percutial o ventre do tambor. A música e o gesto, repetido, cadenciado, tendo por função a acumulação de energia sexual, segundo uma prática conotável ao tantrismo. Acto dionisíaco, demanda do transe extático e da sintonia com as forças e os fluxos naturais, em paralelo com um batuque africano ou uma bateria de samba.

Tantrismo

As artes marciais – como o tantrismo, uma técnica de auto-controle do corpo e da mente – estão também presentes na abordagem gestual e na aproximação estética dos Kodõ. Só assim se compreendendo, de resto, a capacidade de resistência física e a ginástica necessárias aos músicos para manter a inexorabilidade do ritmo e aceso o combate contra as peles dos tambores. O transe, e essa acumulação de força que invade o corpo do intérprete, permitiram o prodígio. Impressionante, a figura de um dos elementos dos Kodõ, erguido diante do monstruoso tambor Taiko, percutindo com dois enormes paus a superfície desenhada e iluminada, em ataques sucessivos, acompanhados de gritos de concentração (os “kiai” do karate), durante longos minutos, sem um desfalecimento, uma hesitação no gesto.

“Satori”

Oito percussionistas, um por cada tambor, executaram noutra ocasião simetrias corporais, em uníssono ou em desmultiplicações por ritmos sobrepostos, numa geometria arrebatadora de ataque gestual às peles. E aos nossos sentidos.
Mas não só os tambores fazem parte do arsenal manuseado pelos Kodõ. Pequenos címbalos de mão estilhaçaram o ar, chisparam, acenderam fogos-fátuos nos claustros dos Jerónimos. Sinos invisíveis que vieram acordar em nós a saudade de pássaros. Cintilações enredo em harmónicos de silêncio. A paz, também. Um flautista esculpiu o ar em bambú, esvaindo-se na noite antes de se perder entre o público, maravilhado. Uma figura feminina, a única do grupo, de cabeça em forma de lua, dançou a dança do luar, dos segredos ditos por amantes com a cumplicidade das águas espelhadas de um lago. Mulher em quarto minguante. Quarto-crescente, no céu.
Por fim, a festa. O encontro com a alegria. Com todos os celebrantes em júbilo colectivo, aos saltos diante da assistência, com os tambores a gritar alto o essencial: Acordem! “Satori”, como se chama no Budismo zen a este momento de iluminação.

Kodo & Isao Tomita – “Nasca Fantasy”

Pop Rock

26 de Abril de 1995
álbuns world

TAMBORES NO ESPAÇO

KODO & ISAO TOMITA
Nasca Fantasy (7)

Columbia, distri. Sony Music


kodo

“Kodo” significa “batida cardíaca”, no sentido de batida primordial, mãe de todos os ritmos. O grupo de percussões japonês com o mesmo nome* terá provocado alguns ataques cardíacos na memorável actuação que deu há dois anos nos claustros dos Jerónimos. Os Kodo têm a sua sede na ilha de Sado, onde todos os anos, durante três dias de Verão, se realiza um festival de percussões, “Earth Celebration”, em louvor do planeta, ao qual acorrem artistas oriundos de vários pontos do globo. “Nasca Fantasy” difere um pouco dos anteriores álbuns do grupo, não tanto pela temática abordada – os desenhos de origem desconhecida gravados na paisagem da região com este nome localizada no Peru – mas pelas participações de Isao Tomita, nos sintetizadores e computador, e do grupo tradicional peruano Kusillaqta. Assim, em vez do clamor percussivo, a música resulta em algo bastante mais próximo das contemplações “new age” do que da música tradicional ou da postura “zen” que caracteriza, em condições “normais”, a abordagem sonora dos Kodo. Isao Tomita, um especialista em versões electrónicas de composições clássicas (das quais, “The Planets”, de Holst, e “Firebird”, de Stravinsky, são as mais conseguidas), distingue-se de um Vangelis ou do seu compatriota Kitaro, pelo bom-gosto que coloca nos arranjos, não se limitando a um trabalho decorativo, antes procurando subtis deslocações de perspectiva. Em “Nasca Fantasy”, Tomita apresenta-se mais comedido do que é habitual, funcionando como orquestrador e condutor. Sobre as suas tapeçarias cósmicas, as percussões “cantam” de forma mais disciplinada, com a focagem a deslocar-se do ritmo propriamente dito para a dinâmica de timbres e alturas, valorizada ainda pela qualidade de gravação (com mais um sistema de captação inovador…), que é excelente. Temas de inspiração peruana e espanhola, uma variação sobre as “Bachianas Brasileiras nº2”, de Villa-Lobos ou a interacção das percussões acústicas com os ritmos computorizados e uma emissão de frequências sonoras emitidas por um “pulsar” na constelação de Vela criam um cenário de antecipação científica e misticismo que não desagradará aos apreciadores da música de Steve Roach, Robert Rich ou Kevin Braheny, representantes da nova escola planante californiana. Só que, aqui, o curso das estrelas ajusta-se aos batimentos do coração da Terra. Eric Von Daniken, pelos vistos, continua a estar na moda.

* Em vez de “nome” lia-se “mesmo” no original



Kodo, Depois Do Concerto, Apresentam O Álbum “Ibuki” – Entrevista –

24.07.1998
Kodo, Depois Do Concerto, Apresentam O Álbum “Ibuki”
Zen, Tambores E Monty Python
A espiritualidade é um termo inventado pelos ocidentais para explicar as coisas simples. Tão simples que a razão as desconhece. É esta a filosofia dos Kodo, que actuaram no passado fim-de-semana na Expo. Quem faltou, ainda tem à sua disposição o novo álbum do grupo, “Ibuki”, produzido por Bill Laswell.

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Como já acontecera há cinco anos, no Mosteiro dos Jerónimo, a combinação do poder das percussões com os efeitos cénicos dos Kodo voltou a causar a admiração geral. O álbum é menos espectacular. Falta-lhe o teatro, o lado visual que é parte essencial de qualquer apresentação ao vivo dos Kodo. Takashi Akamine, um dos elementos do grupo, explicou ao PÚBLICO como bate o coração de um tambor taiko.

FM – A que é mais importante na música dos Kodo, a disciplina, a precisão, o som, o teatro, a atenção?…

TAKASHI AKAMINE – É iso tudo junto. A nossa “perfomance” é muito visual, um aspecto tão importante como a música.

FM – A disciplina é dos factores mais impressionates nas vossas aprsentações. Como é que a treinam?

TAKASHI AKAMINE – Uma das vantagens de viver em comunidade é poder estabelecer uma intimidade. Como ser casado, conhecer em profundidade a mulher e os filhos com quem se vive.

FM – É difícil não especular sobre o que se passará nas vossas cabeças, sempre com o som dos tambores a ressoar lá dentro.

TAKASHI AKAMINE – Alguém fez uma vez a mesma pergunta a um dos músicos e ele respondeu que queria transformar-se no som do tambor. Quando se toca um instrumento como este tem que se lhe dar tudo, 100 ou 200 por cento de nós próprios. É uma luta connosco próprios. Não é possível representar, no sentido de fingir. De certa forma é essa a beleza da nossa música. Não representamos, oferecemo-nos à música.

FM – O modo como interpretam certas peças sugere uma relação com as artes marciais. Existe, de facto, essa ligação?

TAKASHI AKAMINE – É semelhante, mas nenhum de nós pratica artes marciais. Há uma quantidade de informação relativa ao que sepassa em palco nos nossos espectáculos mas nenhuma das interpretações esgota aquilo que na realidade somos. Há, é verdade, algo de espiritual na nossa música. Mas isso acontece com qualquer músico que acredite verdadeiramente naquilo que faz. Mas as pessoas colam-nos essa espiritualidade porque vimos do Oriente longínquo, com trajes e luzes diferentes. As pessoas acham tudo isto misterioso…

FM – E o zen?

TAKASHI AKAMINE – Isso é mais difícil de responder. Nenhum de nós pratica zen mas à medida que crescemos há determinadas influências que nos atravessam quase sem nos darmos conta. É como o Cristianismo que, consciente ou inconscientemente, está presente nos ocidentais. Mas é verdade que alguns dos músicos fazem meditação antes de entrar em palco, mas talvez de uma maneira diferente do zen. É mais uma abordagem mental.

FM – Como se processa a ligação entre a vossa música e a música tradicional japonesa?

TAKASHI AKAMINE – Há uma combinação de ambas. Os instrumentos são antigos, feitos por construtores tradicionais mas a maneira como nos expresamos é contemporânea. Em “Ibuki” existem temas tradicionais e composições originais. Mesmo alguns dos trajes tradicionais que usamos em cena foram uma ideia do estilista francês Pierre Cardin…

FM – Que significado tem o tambor taiko na cultura japonesa?

TAKASHI AKAMINE – O tambor taiko sempre esteve associado a aspectos rituais e religiosos ou ao teatro nô. Os mais pequenos costuma ser tocados em festas nas aldeias. Para nós é apenas um instrumento musical que adaptamos ao nosso próprio estilo.

FM – Um dos momentos mais espectaculares do vosso concerto é o longo “combate” solitário travado por um dos músicos que percute até exaustão o tambor maior. Há nesta peça algum significado especial?

TAKASHI AKAMINE – Significado… Não é importante perceber o significado. Porque não apenas sentir? E divertirmo-nos? Que sentido faz analisar?

FM – Eis uma perfeita asserção zen…

TAKASHI AKAMINE – Provavelmente, sim. Não renego que faça parte do meu passado. As pessoas querem sempre consultar o programa antes dos concertos, para saber o que se irá passar. No Japão não se distribuem programas. Se alguém quiser saber alguma coisa, só depois dos concertos. Preferimos que as pessoas façam a sua própria interpretação. Que achem a nossa música triste ou alegre. Que criem a sua própria história, a sua própria imagem no cérebro. Alguém definiu um dos nossos temas como gotas de chuva. Maravilhoso!

FM – Há alguma abordagem colectiva na forma como os Kodo encaram o ritmo?

TAKASHI AKAMINE – Há músicos com antecedentes diferentes dentro do grupo. Vê do jazz, do rock, da música clássica. Cada um traz o seu próprio “aroma” para a música. Alguns introduzem um lado jazzístico nas percussões japonesas. Digamos que o compositor específico de cada peça assume um papel determinante. Mas todos os outros ajudam contribuind com as suas ideias.

FM – Quem teve a ideia de entregar a produção de “Ibuki” a Bill Laswell?

TAKASHI AKAMINE – Fomos nós. Pedimos à editora se podíamos trazer um produtor de fora. ele ouviu a nossa música e achou que o disco devia reforçar o lado mais grave e profundo dos tambores…

FM – É o disco mais variado dos Kodo…

TAKASHI AKAMINE – Sim, tem música africana, peças que soam a jazz… É o lado excitante de gravar CDs, poder fazer coisas que são impossíveis de pôr em prática nos espectáculos ao vivo.

FM – Existe uma essência na música dos Kodo?

TAKASHI AKAMINE – Há alguns anos Michael Palin, um dos actores dos Monty Phyton, de quem sou grande admirador [N.R.: Nesta altura da entrevista ficámos definitivamente rendidos à imensa sabedoria dos Kodo] assistiu a um dos nosos espectáculos e insistiu que o deixássemos tocar um dos tambores. Acedemos, mas para nossa surpresa, bateu muito suavemente, quase sem fazer som. Perguntámos-lhe por que razão não batia com mais força. Respondeu-nos que qualquer inglês que se preze, em qualquer circunstância, não deve, não pode fazer barulho. Nós somos o contrário. Temos orgulho em fazer o maior barulho possível. Transgredir as regras socialmente aceites, aquilo que se deve ou não fazer. Fazemos todo o barulho que queremos. Penso que esta é uma das razões por que as pessoas se sentem mais livres ao ouvir a nossa música.