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Jorge Luis Borges – “COLEÇÃO MIL FOLHAS FICÇÕES: Jorge Luis Borges – A enciclopédia infinita”

(público >> cultura >> literatura)
quarta- feira, 26 Fevereiro 2003


COLEÇÃO MIL FOLHAS FICÇÕES

Jorge Luis Borges
A enciclopédia infinita

Em “Ficções”, obra hoje publicada na Coleção Mil Folhas, Jorge Luis Borges combina o arrebatamento poético com o delírio lógico. Contos para se perder ou ganhar a razão.


“Ficções”, de Jorge Luis Borges, foi editada em 1944. Junta duas coleções de contos, “O Jardim dos Caminhos Que Se Bifurcam” (1941) e “Artifícios” (1944). Poderiam ser datas fictícias e Jorge Luis Borges um anagrama do nome de outro autor, real ou imaginário. O próprio Borges admitiria o logro, questionando a sua identidade. “Às vezes sou Borges.”
Borges foi acima de tudo um filósofo poeta, da mesma forma que Fernando Pessoa foi um poeta filósofo. Um e outro tentaram descartar-se da personalidade, da máscara. Borges afirmou: “Na realidade não tenho a certeza de que exista. Sou todos os autores que li, toda a gente que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos
os meus antepassados.” Pessoa, mais sintético, falou em “ser tudo, de todas as maneiras”.
Transformaram-se integralmente em literatura. Procurando ser, como o Deus da Cabala judaica, o nome sagrado que em si é e contém todo o Real. No caso de Jorge Luis Borges havia ainda labirintos e espelhos, temas que, de resto, o enfastiavam “especialmente quando são outros que os usam”. Em “Análise da obra de Herbert Quinn”, um dos contos reunidos em “Ficções”, avalia-se uma obra deste escritor fictício intitulada “The God of the Labirynth”, através de fórmulas matemáticas. Existem espelhos disseminados nas salas hexagonais de “A Biblioteca de Babel”, conto central no universo borgesiano, que “fielmente duplicam as aparências”. Reflexos de reflexos. Em “Pierre Ménard, autor do ‘Quixote’”, Pierre Ménard, outro escritor imaginado por Borges, escreve uma obra inteira absolutamente igual, letra a letra, ao “Quixote” de Cervantes, no entanto absolutamente diferente porque Ménard reproduziu interiormente todo o processo psicológico e literário que conduziu à sua feitura.
Como se percebe, Jorge Luis Borges soube esconder-se. Ele que, na série de entrevistas concedidas a Georges Charbonnier em 1964, publicadas pela Gallimard no livro “Entretiens avec Jorge Luis Borges” (“Entrevistas com Jorge Luis Borges”, na tradução portuguesa pela editora Início) falava numa “máquina de fazer versos que nos diz para não pensar, esgotando as possíveis combinações das palavras até ao momento em que tais palavras dariam algumas ideias”. Mas que, no fundo, reconhece que esse “poeta mecânico” jamais “satisfaria inteiramente, dado que não conseguiria explicar a emoção”, e porque a intensidade do poema se mede pelo estado de “arrebatamento interior” do autor.

O jogador

Eis-nos instalados no eixo do paradoxo de que se faz a obra de Borges. Entre a arte combinatória do jogador e do matemático e a absoluta imprevisibilidade da vida e da literatura.
Os temas da lei (ordem) e do jogo (acaso) são sistematizados, de acordo com a lógica mais implacável (e, por isso, delirante) a par da poesia mais marcada pelo onirismo, em “A Biblioteca de Babel” e “A Lotaria na Babilónia”, dois contos fulcrais contidos em “Ficções”.
Em “A Lotaria na Babilónia”, das narrativas mais marcadamente kafkianas do escritor argentino, a sociedade é governada por uma Companhia que se dedica a tornar o quotidiano dos cidadãos num imenso jogo de lotaria que progressivamente se complexifica até à insanidade, permitindo toda a espécie de teorias explicativas. “Porque a Babilónia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos”, enquanto para outros “a Companhia é omnipresente mas só tem influência sobre as coisas minúsculas: o piar de uma ave, as cambiantes da ferrugem e da poeira, os meios sonhos da madrugada”.
Já na “Biblioteca de Babel” a ordem ostenta a crueldade de Sade. “Não há nesta biblioteca dois livros idênticos. A biblioteca é total e as suas estantes registam todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (número embora vastíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o relatório verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas…” e mesmo “um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros”.
Na biblioteca de Babel não é possível combinar os caracteres “dhcmrlchtdj”, “que a divina biblioteca não haja previsto e que nalguma das suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja plena de ternuras e de temores; que não seja nalguma dessas linguagens o nome poderoso de um Deus. Falar é incorrer em tautologias.(…). Um número ‘n’ de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; numas o símbolo ‘biblioteca’ admite a correta definição de ‘ubíquo e duradouro sistema de galerias hexagonais’ mas ‘biblioteca’ é ‘pão’ ou ‘pirâmide’ ou outra coisa qualquer, e as sete letras que a definem têm outro valor. Tu que me lês, tens a certeza de que compreendes a minha linguagem?”
Jorgeluisborges, rigsbsorulejore, sigerjgroseulo… Ao ler estas “Ficções” jogue o leitor e descubra quantos e quais são os nomes de Deus. Apenas ficções ou algo mais?

CRONOLOGIA

1899 Nasce a 24 de Agosto, em Buenos Aires, na casa do avó paterno, Isidoro Acevedo, onde cresceu rodeado de livros. Com seis anos, disse ao pai que queria ser escritor; dois anos mais tarde, escreve “La Visera Fatal”, inspirado num episódio do “D. Quixote”. Aos nove anos, traduz para espanhol “O Príncipe Feliz”, de Oscar Wilde

1914 Acompanha o pai numa viagem à Europa, fixando-se com ele em Genebra e depois em Lugano. Posteriormente, vive em Espanha — onde contacta com movimentos vanguardistas como o ultraísmo — e na Argentina

1923 Regressa à cidade natal, onde funda as revistas “Prisma” e “Proa”, com Macedonio Fernández. Foi aí que começou a publicar os poemas que, mais tarde, apareceriam reunidos nos livros “Fervor de Buenos Aires” (1923), “Lua Defronte” 1925) e “Caderno de San Martín” (1929)

1935 Publica “História Universal da Infâmia”. Mais tarde, “Ficções” (1944) e “O Aleph” (1949)

1938 Sofre um grave acidente, provocando-lhe uma degeneração progressiva da vista. Essa experiência foi relatada em “O Sul”, o seu melhor conto, na opinião do próprio

1955 É nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, cargo que ocupa até 1973, quando o avanço da sua cegueira o impede de continuar

1973 Viaja por todo o mundo, dando conferências e cursos

1986 Morre a 14 de Julho, em Genebra

Jorge Luis Borges – “‘Ficções’, de Jorge Luis Borges, amanhã na Coleção Mil Folhas” (livro / literatura)

(público >> cultura >> literatura)
terça- feira, 25 Fevereiro 2003


“Ficções”, de Jorge Luis Borges, amanhã na Coleção Mil Folhas

As “Ficções” são um pequeno manual para se enfrentar a loucura como um jogo. A literatura do séc. XX ainda não saiu da armadilha-labirinto que o escritor argentino lhe montou


Jorge Luis Borges (1899-1986)

A literatura de Borges é como um poço. Um poço infinito e central tal como a goela da sua “A biblioteca de Babel”, um dos contos incluídos em “Ficções”, obra publicada originalmente em 1944, que definitivamente chamou a atenção do mundo para este escritor que, sem nunca ter conquistado o Prémio Nobel, foi dos que mais fez pelas letras deste século. E dos que mais as baralhou.
Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires a 24 de Agosto de 1899 e morreu a 14 de Junho de 1986. Entre dois Verões, viveu uma vida imaginária de símbolos, metáforas, equações e iluminações. O tipo de pesadelos que se tem quando se reduz a vida à literatura. O tipo de revelações que se tem quando se alarga a vida à literatura.
Borges disse certa vez pretender “destruir a realidade e converter o homem numa sombra”. O tipo de coisas ditas por um cego com pretensões a filósofo. Para Borges, o aristotélico, a cegueira física funcionou como um dos pilares do seu pensamento. Um míope vê melhor ao perto do que um homem normal, excessivamente bem, visão microscópica que toca o mais ínfimo detalhe das coisas. Um cego como Borges vê ainda mais longe – o avesso do real.
Quanto a “destruir a realidade e converter o homem numa sombra”, nem era necessário enunciar esse propósito, já que de há muito a condição humana se confinou à de espectro. Como o “Quixote” de Ménard, tudo já está escrito. Podemos apenas — Borges fê-lo — romper os véus e rebobinar o filme da memória. Existe, aliás, um livro escrito por um dos seus discípulos, Adolfo Bioy Casares, “A Invenção de Morel”, que descreve na perfeição todo o processo.
Borges limitou-se a estudar a teoria das possibilidades, aplicando a lógica e os hologramas da história, da linguística, do esoterismo e da teologia ao que, por essência, é o absurdo: o poço. A biblioteca de Babel, enciclopédia escrita por um Deus louco, tem a forma de uma torre forrada do lado de dentro (não consta que, para o escritor argentino, existisse um lado de fora) por infinitas estantes, correspondentes a infinitos andares, contendo um número infinito de livros, arrumados ao longo de uma área infinita, de forma aleatória. Nenhum igual ao outro. Alguns apenas diferentes por mais ou menos uma vírgula. Tudo o que foi dito, é dito e será dito, ao longo da eternidade, encontra-se escrito nos livros da Biblioteca de Babel. Um deles contém a explicação de todos os outros. A compreensão simultânea de tudo. Um “tudo” que o matemático Georg Cantor sintetizou numa potência e, como consequência, o levou à loucura. O mesmo “tudo” que Kafka, mais
precavido, dobrou num pequeno bilhete, fechou num envelope e, após a mensagem ser enviada ao imperador (que nunca a recebeu), pediu aos amigos para queimar. Ao centro, o eixo, abre-se o poço, onde alguns se lançam em desespero numa queda sem fim. Aconselha-se o leitor a não ir tão longe.
Para Jorge Luis Borges esse “tudo” era o Aleph, nome cabalístico que serve de título a outra das suas obras mais conhecidas, “O Aleph”, publicado em 1949. Mas o Aleph de Borges pode ser encontrado nas manchas da pele de um leopardo ou no vão de uma escada. Encontra-se, aliás, de certeza, dissimulado entre as páginas destas “Ficções”, que a Coleção Mil Folhas porá a partir de quarta-feira nas bancas.