Cultura >> Sexta-Feira, 09.10.1992
João Bosco Tocou Ontem Em Lisboa
Cantos Do Imprevisto
Música brasileira não é só a que vem aos Coliseus dar-nos telenovelas e carnaval. Música brasileira pode ser sem fronteiras e viajar até ao imprevisto. João Bosco assim o disse e cantou. Num dos poucos espectáculos realizados este ano em Portugal em que fez sentido o termo “ao vivo”.
Devia haver mais brasileiros que portugueses, quarta-feira À noite, no Teatro Maria Matos, a assistir à estreia portuguesa de João Bosco. Foi um concerto notável, principalmente do lado direito da sala, mesmo junto à parede, que foi o local julgado ideal pela organização para situar o jornalista. Este, empolgado pela música, lá foi esticando e entortando o pescoço, como o homem dos colchões Pikolin, até ficar mais ou menos a meio. Valeu a pena.
João Bosco não é muito conhecido por cá. Escutando-se a sua música percebe-se porquê. Bosco não é um músico brasileiro parecido com os outros, que de cinco em cinco minutos vêm cá dar-nos beijinhos ao Coliseu dos Recreios, embora também já tenha composto temas para telenovelas, como “Tieta” e “Pantanal”. Ele próprio se define como um “artista inquieto, em constante delírio” que não deixa que as “barreiras impeçam a livre criação”. É óbvio que está a falar verdade. João Bosco não é tanto um compositor de canções, na acepção tradicional, mas um músico total, um “jongleur” de palavras e sons, um equilibrista no arame que rompe com os esquemas convencionais do canto. O seu último álbum tem por título “Zona de Fronteira”, com o selo Sony Music. Uma fronteira que existe para ser ultrapassada.
Voz De Comando
Uma guitarra acústica, um banco, uma garrafa de água do Luso sem poiso certo, eram os únicos artefactos em cena. Chegaram para ajudar o artista em cena, na primeira parte do espectáculo, a mostrar tudo o que vale. A voz de João Bosco recusa amarras. As canções são-lhe ponto de partida para uma divagação constante. A voz é quem comanda, a canção vai atrás. O artista brasileiro arriscou tudo, libertando-se da segurança de arranjos fixos que não passariam de espartilhos. É em casos como este que faz sentido falar da voz como um instrumento de possibilidades infinitas. Logo no primeiro tema, em que imitou a gaguez de um homem apaixonado, o ritmo brotou como que por magia das palavras, das onomatopeias, das síncopes cheias de “swing”, da plasticidade de uma voz que a cada instante se reinventou. “Obrigado gente!”, repetiu invariavelmente após cada “canção”. Em jeito humilde de quem vai pesquisando as emoções alheias e as conquistas para o seu território. Bosco é um louco, no bom sentido. A “grande confusão musical” – como define, com humor, a sua música – é a confusão de mundos, coabitando em simultâneo, de sons libertos em dança perpétua. Samba, bossa nova, os “blues”, o flamenco, África, Milton, Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, cruzam-se e encontram-se com os papéis trocados, no canto e no violão. O “louco” é afinal quem, como ele, se deixa tocar pela música, pelas músicas, e lhes dá voz própria.
Além-Fronteira
Na segunda parte juntaram-se a João Bosco, Ricardo Silveira, na guitarra eléctrica, e Armand Sabal Lecco, que já tocara anteriormente em Portugal, integrado na banda de Paul Simon, no baixo. Bosco, por sua vez, trocou a guitarra acústica por uma eléctrica. Loucura completa. Os três entusiasmaram-se e entusiasmaram a assistência. Não havia instrumentos de percussão nem se deu por falta deles. Duas guitarras e um baixo criaram ritmos intricados, dialogaram de forma imprevisível e improvisaram a cada momento, desmultiplicaram-se em cadências que misturavam o rock, ritmos brasileiros e fusões de índole jazzística.
Os músicos levantaram-se, riram, brilharam. João Bosco dançou pelo palco e fez gestos de agarrar as vibrações que pairavam no ar. E agarrou-as mesmo. Música sem fronteiras que no final foi aplaudida em pé, por uma plateia em delírio. O trio regressou ao palco para uma “jam session” admirável, carburando como uma máquina no máximo da afinação. Na zona além-fronteira. Zona livre.