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António Carlos Jobim / Tom Jobim – “Samba De Um Homem Só” (concerto | televisão | TV2)

televisão e rádio >> quinta-feira, 02.09.1993

DESTAQUE


Samba De Um Homem Só

ANTÓNIO CARLOS JOBIM, Tom Jobim, cronista do Rio de Janeiro, das praias do Ipanema, inventor da bossa-nova. Mito da música popular brasileira. Desafinado ou não. Esteve no ano passado nos Jerónimos. Acompanhado de “cinco raparigas lindas” e da solidão. “Com a idade, primeiro vão-se as moças, depois os rapazes, até que a gente fica sozinho.” Samba de uma nota só.
Habituámo-nos a pensar na música brasileira como uma bacanal de alegria. Como se o Brasil fosse só samba. E samba fosse igual a essa alegria. Não é. Tom Jobim ensinou-nos que não é. E inventou uma tristeza que sabe bem. Chamou-lhe Bossa-nova. Nostalgia que afinal também cabe dentro da alma brasileira. Tom Jobim garante que descende de portugueses da zona do Douro. Terá aprendido connosco a envergar o fraque da tragédia.
O samba é negro. Irrompe das favelas. Batuque de incêndio que criou raízes na escravatura. Samba é Pelé e carnaval. O resto apenas vida. Bossa-nova é mais distância. Silhueta do crepúsculo. Um entardecer em Ipanema que parece não ter fim.
Tom Jobim cantou entre nós, em cenário secular de História tendo por fundo o mar. Trouxe consigo a família, a ironia e música para se ouvir baixinho. Danilo Caymmi, Duduca, Márcio Mallard, Tião Neto e Paulo Jobim encarregaram-se das notas instrumentais. Paula Morelembaum, Ana e Elisabeth Jobim, ymmi, as “raparigas lindas”.
Admirador de Villa-Lobos, que considera o maior músico brasileiro de sempre, António Carlos Jobim recusa-se a reivindicar em exclusivo para si próprio o título de inventor da bossa-nova. Refere o nome de João Gilberto, claro, aproveitando para elogiar Caetano Veloso, Ary Barroso, Chico Buarque, Djavan e Gilberto Gil, todos grandes vultos da MPB.
Hoje, Tom Jobim olha em redor, dando a vez aos novos. Aparentemente já não há lugar para a simplicidade e o som acústico que sempre caracterizaram a sua música, substituídos, no seu entender, pela tecnologia e por uma “música violenta” em sintonia com o “mundo violento em que vivemos”. Não desapareceu contudo o observador atento, armado de uma ironia fina. Ecológico, Tom Jobim, estende um sorriso largo sobre o “mundo paradisíaco” em que vivemos. “Talvez dê para salvar um pouquinho, talvez sobrem algumas árvores…” Nos Jerónimo, abandonou por instantes o português, essa “língua maravilhosa”, para cantar em inglês um tema encomendado pela Eco 92: “É tudo igual. Flor é ‘flower’, hora é ‘hour’, informação é ‘information’…” Tom Jobim encerrou o concerto dos Jerónimos com “Chega de saudade”. Mas a saudade ficou.
TOM JOBIM NOS JERÓNIMOS
TV 2, às 19h05

Kodõ – “Percussões Japonesas Nos Jerónimos – Sexo Com Os Tambores” (concerto)

cultura >> quarta-feira >> 28.04.1993


Percussões Japonesas Nos Jerónimos
Sexo Com Os Tambores


O grupo de percussões Kodõ, “crianças do tambor”, celebrou nos claustros dos Jerónimos um ritual de louvor à vida e ao ritmo. Ao ritmo da vida. Em guerra com os tambores tradicionais Taiko. Em paz com o mundo. Kodõ significa também “palpitar do coração”.



Aconteceu na noite de segunda-feira, em Lisboa, quando os tambores tradicionais Taiko, do grupo japonês Kodõ, invadiram os claustros dos Jerónimos, fazendo vibrar as pedras e o corpo da assistência convidada, numa cerimónia ritual de dança e percussões integrada no “Close-up of Japan-Lisboa-93”, iniciativa levada a cabo todos os anos, em diferentes cidades do globo, com o objectivo de divulgar a cultura japonesa. Cerimónia solene onde estiveram presentes o presidente da República, Mário Soares, e a princesa e o príncipe Takamado, do Japão, e que se repetirá hoje e amanhã, no mesmo local, em espectáculo para todos.
Cada instrumento musical tem uma alma própria. Qual é a alma do tambor? Explosão, rufo, disparo, baque, explosão. Um coração dentro da terra. Instrumento uterino, feito de matéria opaca, religa o corpo do homem ao ventre de Gaia, o planeta vivo. Os tambores Taiko assemelham-se a pipas de vinho, de tamanhos variáveis. Podem ser percutidos de ambos os lados, por um ou, nos de maiores dimensões (o maior de todos era gigantesco, montado sobre uma espécie de carro de guerra), dois músicos. Em vez de vinho produzem sons igualmente capazes de provocar a embriaguez.
Religação é sinónimo de religião. O grupo Kodõ, termo japonês com o duplo significado de “O palpitar do coração” e “crianças do tambor”, serve-se dos tambores para ritualizar os ritmos da terra, convocar os seus demónios, símbolo das forças telúricas que percorrem as artérias do planeta e, em última instância, para, comunicando com a terra, comunicar com o próprio corpo e as suas pulsões.
Durante o cerimonial zen dos Kodõ, o gesto dos executantes é indissociável da prestação musical propriamente dita. Homem, tambor e som confundem-se num corpo único. Num dos momentos mais altos de um acontecimento que terá deixado atónitos alguns dos convidados, os músicos, envergando apenas uns reduzidos panos brancos a envolver-lhes os rins, tocaram deitados, presos ao tambor, simulando (‘) as convulsões do orgasmo, gritando e gemendo, enquanto percutial o ventre do tambor. A música e o gesto, repetido, cadenciado, tendo por função a acumulação de energia sexual, segundo uma prática conotável ao tantrismo. Acto dionisíaco, demanda do transe extático e da sintonia com as forças e os fluxos naturais, em paralelo com um batuque africano ou uma bateria de samba.

Tantrismo

As artes marciais – como o tantrismo, uma técnica de auto-controle do corpo e da mente – estão também presentes na abordagem gestual e na aproximação estética dos Kodõ. Só assim se compreendendo, de resto, a capacidade de resistência física e a ginástica necessárias aos músicos para manter a inexorabilidade do ritmo e aceso o combate contra as peles dos tambores. O transe, e essa acumulação de força que invade o corpo do intérprete, permitiram o prodígio. Impressionante, a figura de um dos elementos dos Kodõ, erguido diante do monstruoso tambor Taiko, percutindo com dois enormes paus a superfície desenhada e iluminada, em ataques sucessivos, acompanhados de gritos de concentração (os “kiai” do karate), durante longos minutos, sem um desfalecimento, uma hesitação no gesto.

“Satori”

Oito percussionistas, um por cada tambor, executaram noutra ocasião simetrias corporais, em uníssono ou em desmultiplicações por ritmos sobrepostos, numa geometria arrebatadora de ataque gestual às peles. E aos nossos sentidos.
Mas não só os tambores fazem parte do arsenal manuseado pelos Kodõ. Pequenos címbalos de mão estilhaçaram o ar, chisparam, acenderam fogos-fátuos nos claustros dos Jerónimos. Sinos invisíveis que vieram acordar em nós a saudade de pássaros. Cintilações enredo em harmónicos de silêncio. A paz, também. Um flautista esculpiu o ar em bambú, esvaindo-se na noite antes de se perder entre o público, maravilhado. Uma figura feminina, a única do grupo, de cabeça em forma de lua, dançou a dança do luar, dos segredos ditos por amantes com a cumplicidade das águas espelhadas de um lago. Mulher em quarto minguante. Quarto-crescente, no céu.
Por fim, a festa. O encontro com a alegria. Com todos os celebrantes em júbilo colectivo, aos saltos diante da assistência, com os tambores a gritar alto o essencial: Acordem! “Satori”, como se chama no Budismo zen a este momento de iluminação.

Tom Jobim – “Tom Jobim Nos Jerónimos – Silêncio Lento Dos Trovadores” (concerto)

Cultura >> Domingo, 13.09.1992


Tom Jobim Nos Jerónimos
Silêncio Lento Dos Trovadores


Tom Jobim foi, nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos, sexta-feira à noite, mestre de cerimónias de um Brasil diferente. Trouxe consigo a família, a bossa-nova, a nostalgia de canções que fazem parte da História. E uma ironia fina que causou arrepios.



Claustros apinhados de gente desejosa de ouvir e sentir a presença carismática do mito António Carlos Jobim, Tom Jobim, como é mais conhecido. Trovador do Brasil triste, das praias de Ipanema ao entardecer, de areia fina e gente que o pretende ser. Tão fina como a ironia do cantor.
Apresentado pela popular actriz brasileira, Christiane Torloni, sob uma luz vermelha quer transfigurava a fisionomia habitual dos claustros do Mosteiro, Tom Jobim deixou claro porque é considerado um dos maiores vultos de sempre da música popular brasileira. Veio acompanhado da sua Banda Nova, cinco instrumentistas mais outras tantas meninas a cantar. Em palco, três Jobins e dois Caymmi, cada um apresentado pelo compositor com um coment´rio jocoso ou poético: ele próprio Tom Jobim, a mulher, Ana Jobim (“esposa não é parente”) e o filho, Paulo Jobim, na guitarra (“tem sangue português misturado com o de um macaco das florestas da Amazónia…”), e dois Caymmi, “a água da fonte”.
A música foi como um feitiço, uma longa trova de amor que ardeu em fogo lento. As cinco vozes femininas juntaram-se ao piano do mestre e elevaram-se, aéreas, a cantar o Brasil da bossa-nova, essa mistura de samba, jazz, tristeza e um sol que não chega a queimar nunca. Tom Jobim não é um grande cantor – deixou que fossem as vozes femininas a encher o espaço -, mas possui um talento imenso que deixou marcas em toda a música brasileira e não só (recorde-se por exemplo, na Europa, herdeiros como os Hatfield and the North e, de forma indirecta, toda a escola de Canterbury, Everything But The Girl, Weekend ou Isabel Antenna).
Na música de António Carlos Jobim, na música que fez descer as estrelas até ao jardim dos claustros em noite de Belém, o amor serve de porta e praia a todas as imagens onde desagua um rio sem margens, o Rio, cidade oculta que não passa pela televisão.

Um Sonho

Cena de carnaval. “Slow Motion”. A imagem revela pormenores. O homem que toca pandeiro, perdido, olha para o lado. Sem ver. A mulher, na fileira das sambistas, solta uma lágrima em que ninguém repara. As serpentes não chegam a desenrolar-se. Os pés demoram a chegar ao chão. Cena de praia: O sol, parado, reflecte-se nos vidros dos apartamentos luxuosos do Leblond, em frente. A garota de Ipanema para de sorrir e sente uma nostalgia onde não vê motivo nem sentido.
O tempo volta ao normal, à cor do carnaval. Lá vão os arlequins e colombinas a acenar, na correnteza. Regresso aos Jerónimos. Tom Jobim sorri com os olhos. Do sonho, nosso e brasileiro. Fala pausadamente, solta pequenas frases que dizem mais do que dizem. Sobre ecologia e o “mundo paradisíaco” em que vivemos, sobre essa “língua maravilhosa que é o português” e o sangue luso presente em tudo o que é Brasil. Lugares-comuns ditos de uma maneira que provoca, sem querer, um arrepio muito ligeiro.

Sozinho

Não para de fluir a bossa-nova na cascata de meios-tons e melodias soltas pelo piano e pela flauta de Danilo Caymmi. As meninas atraem o olhar com a sua inocência estudada. O violoncelo de Marcio Mallard introduz a nota de angústica. A certa altura, elas abandonam o palco. Depois os músicos. Tom Jobim fica só: “Com a idade, primeiro vão-se as moças, depois os rapazes, até que a gente fica sozinho”. O fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho. “Luísa” abre um coração em chaga e pela primeira vez o cantor grita, “pobre amador apaixonado”, “aprendiz do amor”. “Desafinado”, “Samba de uma nota só”, “Águas de Março”, canções conhecidas de cor são murmuradas com devoção pela assistência. Jobim, senhor de uma ironia evanescente, canta um tema em inglês, encomendado pela ECO 92 (“essa língua tão latina… é tudo igual: flor é ‘flower’, hora é ‘hour’, informação é ‘information’”). Talvez dê para salvar um pouquinho, talvez sobrem algumas árvores”…
António Carlos Jobim sai do palco como entrou, em silêncio, o “silêncio lento dos trovadores” senhor de uma calma profunda de quem conhece o mundo e as pessoas. O público pede mais e ele anui. Despede-se finalmente com “Chega de saudade”. Um bom título para encerrar um concerto perfeito.
Perfeita não esteve a organização, a Propalco. 1500 escudos custavam os bilhetes para a geral, situada nos claustros superiores, a fazerem de balcão. 1500 escudos que, para quem não teve a sorte de se colocar na fila da frente, deram direito a ver cabeças. À saída não foram poucos o s que se queixavam de não ter conseguido ver nada. Em baixo, entre os canteiros de flores, acomodavam-se os ilustres. Assim de memória contámos, para além do Ppresidente da República e esposa, por ordem alfabética: Raul Solnado, o par Paulo de Carvalho-Helena Isabel, Carlos do Carmo, José Nuno Martins, Proença de Carvalho, Alçada Baptista, Maluda e, principalmente, Roberto Leal, muito notado no seu fato azul turquesa claro, da cor do mar. Todos igualmente satisfeitos numa noite para recordar. Olha que coisa mais linda.