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Dolores Keane & John Faulkner – “Sail Óg Rua” + De Danann – “Ballroom” + Gabriel Yacoub – “Trad. Arr.” + Mick Moloney, Jimmy Keane, Robbie O’Connell, c/ Liz Carroll – “There Were Roses” + Touchstone – “Jealousy” + Triona Ni Dohmnaill – “Triona”

Pop Rock >> Quarta-Feira, 16.09.1992


GREEN LINNET EM COMPACTO

A Green Linnet, talvez a mais importante editora de música tradicional da actualidade, passou a ter disponível em Portugal, no formato compacto, a maior parte do seu catálogo, com distribuição Megamúsica. Reedições e algumas novidades aí estão, prontas para completar as colecções. Segue-se uma resenha de alguns títulos representativos do primeiro grupo.


Dolores Keane & John Faulkner
Sail Óg Rua


A diva, em todo o seu esplendor, aqui na companhia de John Faulkner e de um grupo de amigos. Correspondente ao período no qual Dolores “ousou” a incursão no território armadilhado da pop, seguindo as pisadas de June Tabor (em qualquer dos casos experi~encias não muito bem sucedidas), na sequência da primeira e genial parceria do duo, “Broken Hearted I’ll Wonder”. Dolores personifica o expoente do canto tradicional irlandês. Tornou-se conhecida nos De Danann, onde desde logo demonstrou possuir uma voz e uma presença ímpares, a par de um virtuosismo que então, como neste disco, atingem o apogeu na difícil arte do canto “a capella”. “Sail Óg Rua” é brilhante da primeira à última faixa e uma espécie de compêndio das diversas vertentes da música tradicional irlandesa. Presentes alguns “monstros”, como os dois acordeonistas Mairtin O’Connor e Jackie Daly (ambos passaram pelos De Danann) ou os “velhinhos” Eamon Curran, nas “uillean pipes”, e Sarah Keane, esta num comovente dueto vocal com a sobrinha na canção que dá título ao álbum. Até o Fairlight CMI faz aqui figura de instrumento ancestral, num disco de aquisição urgente por parte dos aficionados. (10)

De Danann
Ballroom



O grupo dispensa apresentações. Independentemente da sua fidelidade aos tradicionais irlandeses, os De Danann ganharam a reputação de uma certa irreverência e gosto pelo desvio à ortodoxia, exemplificado, nos álbuns mais recentes, pela inevitável inclusão, em cada um, de uma canção dos Beatles. Outro amor de sempre, a música de salão de baile, é aqui ilustrado de forma sublime e com o virtuosismo de sempre, numa sequência de valsas, das que se dançavam no princípio do século nos inúmeros “ballrooms” espalhados pela Irlanda, e hoje votados ao abandono, como o retratado na capa. Homenagem a um estilo que noutro álbum da banda, “The Star Spangled Molly”, atinge a perfeição. “Ballroom” apresenta os De Danann com uma das suas melhores formações de sempre, que integrava, além dos fundadores Frankie Gavin e Alec Finn, Dolores Keane, Mairtin O’Connor, Caroline Lavelle (violoncelo) e Johnny Mc Donnagh (percussões). (8)

Gabriel Yacoub
Trad. Arr.



Primeiro disco a solo do vocalista dos Malicorne, posterior a “Pierre de Grenoble”, uma raridade, gravada na companhia da irmã, Marie Yacoub, de que é possível escutar algumas faixas que foram incluídas na colectânea daquele grupo lendário, “Légende”. “Trad. Arr.”, como o título faz supor, é uma viagem pelos tradicionais franceses, arranjados numa linha semelhante à dos Malicorne, segundo uma orientação estética que nos álbuns seguintes, “Elementary Level of Faith” (um equívoco e uma nódoa na carreira do cantor) e “Bel” (uma das mais bem sucedidas fusões de sempre entre a folk e apop, viria a ser completamente reformulada. A principal diferença reside numa maior simplicidade e contenção, ao ponto de Gabriel arriscar a voz em dois temas sem acompanhamento. Os apreciadores dos Malicorne encontrarão em “Trad. Arr.” O melhor Yacoub: as inflexões únicas da voz, o perfume de arranjos de jardim, o destaque dado às sonoridades dos instrumentos “quentes”, como a sanfona, a gaita-de-foles ou o órgão de pedais. Entre os músicos convidados, a irmã Marie, o mago das “gaitas”, Jean Blanchard, o antigo companheiro nos Malicorne Hughes de Courson e o violinista inglês Barry Dransfield. (8)

Mick Moloney, Jimmy Keane, Robbie O’Connell, c/ Liz Carroll
There Were Roses



Álbum que precede, na discografia do trio, o genial “Killkelly”, já importado anteriormente em quantidades reduzidas e que agora regressa aos escaparates nacionais. Tradicionais australianos, canções de emigrantes, alusões à country, marchas e “bornpipes” e a América de sangue irlandês passam como um sonho na voz inconfundível de Mick Moloney, também um virtuoso das cordas dedilhadas, no acordeão de Jimmy Kesne e na guitarra de O’Connell. Liz Carroll, a violinista americana vencedora de todos os concursos, é a convidada especial entre um grupo onde pontificam Jerry O’Sullivan (“uillean pipes”) e Eugene O’Donnell (violino). Muita atenção a “Drimin Donn Dilis”, uma assombração nocturna sobre a fome e a miséria nos cantos da Irlanda. (9)

Touchstone
Jealousy



Segundo trabalho de uma das bandas que melhor souberam recriar o espírito dos Bothy Band. O que significa que grande parte desse espírito passava pela voz, pelos teclados e pela personalidade de Triona Di Dohmnaill, cuja importância é de resto notória noutra “superbanda” da Folk, os Relativity. Caludine Langille faz o contraponto vocal feminino (num registo semelhante ao de Carolannie Pegg, de uma banda já extinta, estranha e pouco divulgada, os Mr. Fox) de Triona, de forma exemplar no magnífico “Jealousy (you better keep your distance)”. Há brinvadeiras com os lugares-comuns da folk, temas da Bretanha (entre os quais uma composição de Dan Ar Bras), variações impensáveis sobre o filão tradicional e baladas em gaélico. Disco lúdico, feito de contrastes e cores inusitadas. Uma história de encantar. (8)

Triona Ni Dohmnaill
Triona



Outro álbum de audição obrigatória, no qual a ex-vocalista dos Bothy Band põe em realce todo o seu talento nessa arte – nas baladas evocativas dos Bothy Band (incluindo o longo e nostálgico lamento amoroso que fecha o compacto), nas interpretações “a capella” ou nos duetos com Maíréad Ni Dohmnaill – e, num par de temas, de cravista solo, dentro da linhagem nobre de um Sean O’Riada: “Carolan’s farewell to music”, do mítico harpista cego Turlough O’Carolan, e “Foinn Bhriotáinescha”, uma selecção de temas bretões aprendidos com uma típica “Bagad”. Entre os convidados, três grandes músicos: Micheál O’Domhnaill (irmão de Triona e outro ex-Bothy Band), na guitarra, Paddy Keenan, nas “uillean pipes”, e Paddy Glackin, no violino (8)

Gabriel Yacoub – “Bel”

Pop Rock

22 Abril 1992

A BELEZA DAS COISAS SIMPLES

GABRIEL YACOUB
Bel

CD, Keltia, distri. Mundo da Canção

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Não sejamos avaros na apreciação: “Bel” é o melhor álbum de canções, sem mais, de há muitos anos a esta parte. Quanto à voz do seu autor, Gabriel Yacoub, é ao mesmo tempo vibrante e pungente, uma espécie de sortilégio cintilante que se insinua, audição após audição, no sujeito que ouve.
Gabriel Yacoub acompanhou Alan Stivell, à época de “Chemins de Terre”. Com o bardo bretão aprendeu o gosto pela música tradicional. Depois, com a irmã Marie Yacoub, formou uma banda que se viria a tornar lenda, os Malicorne, para muitos, incluindo o autor destas linhas, uma das mais importantes de sempre, em toda a Europa, do movimento de renovação de música tradicional.
Os Malicorne deixaram para a posteridade seis obras geniais, três denominadas simplesmente “Malicorne”, “Almanach” (obra-prima absoluta baseada em 12 rituais agrícolas e religiosos, correspondentes aos 12 meses do ano), “L’Extraordinaire Tour de France d’Adélard Rousseau” (périplo iniciático de um “maçon” pelo mapa oculto da França) e “Le Bestiaire”, antes da decadência e da cedência a um pop electrónico de eficácia duvidosa, com “Le Balançoir en Feu” e “Les Cathédrales de L’ Industrie”.
Extinta a chama Malicorne, Gabriel Yacoub enveredou por uma carreira a solo com resultados desiguais. Os dois primeiros álbuns não poderiam ser mais opostos. “Trad. Arr.” marca o retorno à simplicidade de arranjos e a uma veia declaradamente folk, enquanto “Elementary Level of Faith”, gravado nos Estados Unidos, investe de novo sem deixar grandes recordações, numa via electropop semelhante à de “Cathédrales”.
“Bel” dá o grande salto em frente e atinge, como um raio, a perfeição. São 11 temas em estado de graça que não cabem em qualquer categoria possível senão na do génio. Num disco que apenas inclui dois tradicionais, o quebequiano “Ma délire” e “Nous irons en Flandres”, é toda a arte do canto de Yacoub que se eleva a alturas insuspeitadas e aos extremos de emoção que caracterizam as obras maiores.
Partindo de fontes de inspiração tão díspares como um texto do filósofo Gaston Bachelard (“L’ Eau et les rêves, essai sur l’ imagination de la matière”, em “L’Eau”), uma história do autor simbolista Gustave Meyrink (no instrumental “Le jeu des grillons”) ou uma das muitas viagens a Nova Iorque, em que aprendeu a sentir pela cidade “uma amor irracional” (“Je pense à toi”), “Bel” impressiona sobretudo por ter essa qualidade que distingue um bom disco de uma obra-prima: o sopro da inspiração.
Chamem-lhe génio, chamem-lhe outra coisa qualquer, mas quando se escuta e sente uma canção como “Les Choses les plus simples” compreende-se que o absoluto está ali mesmo, num refrão celestial, numa voz como não há igual no universo, no amor que se desvela numa rosa sem espinhos. E logo no tema seguinte, de novo o paraíso, em mais uma peregrinação vocal de sonho, na comoção levado ao épico de “Nous irons en Flandres”.
Os arranjos servem cada canção com requintes de esplendor. “Bon an, mal an” e “Je serai ta lune” elevam-se sobre um quarteto de cordas (do qual faz parte René Werneer, antigo companheiro de Yacoub nos “caminhos de terra”), em teias harmónicas que recordam a obra capital dos primeiros Gentle Giant (de “Acquiring the Taste” e “Three Friends”). “Ma delire” é um novelo vocal complexo feito de texturas vocais sobrepostas da voz de Yacoub. “Words” consubstancia a glória harmónica da voz, das vozes, da “magia das palavras” além da língua e do significado. Sublime a gaita-de-foles de Jean Blanchard no tradicional “Nous irons en Flandres” ou nos sonhos povoados de “lobos negros” que uivam durante a “estação das estrelas” de “D’abord je ne me souviens plus”.
E volta-se sempre, uma e outra vez, a “Les choses les plus simples”, ao mistério de uma melodia que reconhecemos ter sido nossa desde sempre. “Bel”, nome de uma divindade celta solar, também quer dizer “Belo”. (10)

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