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sábado, 29 Novembro 2003
O cinema de Fellini, a canção próxima da pop, espiritualidade magiar e um instrumento invulgar acrescentam novas categorias ao jazz, aberto a múltiplas variações.
O azul que não cabe no “blues”
ENRICO PIERANUNZIO
Fellinijazz
Camjazz, distri. Multidisc
8 | 10
MURIEL ZOE
Red and Blue
Act, distri. Dargil
7 | 10
GÁBOR WINAND
Agent Spirituel Budapest
Music Center, distri. Multidisc
7 | 10
HANS REICHEL
Yuko, a New Daxophone Operetta
All, distri. Multidisc
8 | 10
A comemorar o décimo aniversário da morte de Frederico Fellini, em 31 de Outubro de 1993, o pianista italiano Enrico Pieranunzio convidou para esta gravação quatro músicos participantes em gravações de bandas sonoras de películas com a assinatura do mestre italiano. Paul Motian, em “la Dolce Vita”, Kenny Wheeler, em “Amarcord”, Charlie Haden, em “I Vitelloni”, Chris Potter, em “La Strada”. O jazz está intrinsecamente ligado ao cinema de Fellini (um filme como “Roma”, por exemplo, pode ser encarado como manifestação visual da improvisação jazzística – movimento simultaneamente exterior e interior), através da música de Nino Rotta mas também de Luís Bacalov, autor da partitura de “A Cidade das Mulheres”, aos quais o pianista acrescentou dois originais da sua autoria: “Cabiria’s dream” e “Fellini’s waltz”. “Fellinijazz” traduz essa ligação sob a forma de uma música terna e nostálgica, instrumentalmente imaculada, como seria de esperar, permitindo a recriação do mesmo e de um outro cinema felliniano na cabeça de cada um.
Nasceu na Alemanha há 24 anos, tem uma figura de anjo e uma voz a que ninguém fica indiferente. Muriel Zoe, pintora, artista gráfica, fundadora do grupo Zoe’s Echos, mais tarde Zoe and the Zebras, demonstra neste seu álbum de estreia possuir uma voz e uma atitude cujas relações com o jazz são idênticas às da holandesa Mathilde Santing. As canções podem ser “standards” como “You go to my head”, “Round midnight” ou “Autumn leaves”, mas a luminosidade é a de uma estrela pop. Os sentimentos e o canto são, por enquanto, pouco escavados, e o azul abre-se, para já, tão claro como o do céu. Mas escutamos esta voz que parece vir de um pássaro em liberdade e não deixamos de sentir que existe um coração, ainda pequenino, a prometer voos mais arriscados. E se temas, da autoria da própria Zoe, como “Lovesong nº1” (variante “light” das canções de magnólia de Aimee Mann…) e “All the way” são figuras de uma caderneta pop, nem por isso o jazz pode levar a mal o atrevimento desta menina que nos olha de frente, na foto, com a inocência das almas impolutas.
Pouco usual é a combinação entre a voz do húngaro Gábor Winand e um jazz também ele afastado dos seus ramos genealógicos principais. À semelhança do álbum anterior, “Corners of my Mind”, o novo “Agent Spirituel” vive da colaboração estreita com o guitarrista Gábor Gado. A música é estranha, algures entre os filmes sonoros de Bill Frisell, o teatro de Brecht e as pastagens do folkjazz de Canterbury. Depois, Winand não canta como um cantor de jazz ou, pelo menos, como um vulgar cantor de jazz. Tentem imaginar um Chris Isaak a atravessar uma crise mística e a ser contratado para fazer um disco de jazz na ECM com Stephan Micus. “Agent Spirituel” possui essa aura difusa, tornada ainda mais exótica pela inclusão de elementos de música tradicional húngara, musica de câmara contemporânea e lampejos de jazz ambiental.
Apesar das ilustrações que acompanham a edição desta segunda opereta (a primeira chamava-se “Shanghaied on Tor Road”, 1992) inteiramente executada no daxofone por este guitarrista/improvisador pertencente à mesma família de excêntricos como Fred Frith ou Eugene Chadbourne, continua a ser difícil explicar o que é um daxofone. Até porque a gama de sons produzidos pelo artefacto vão da voz humana, como que filtrada de maneira monstruosa por um Vocoder, até timbres electrónicos a imitar instrumentos de corda, sopro e percussão, de uma variedade e riqueza a que não será alheio o posterior (?) tratamento por computador. Os amantes exclusivos de jazz enquanto música inseparável de emoções e sons naturalmente humanos devem abster-se de escutar “Yuko”, obra porventura mais próxima da eletrónica pura, plena de “groove” mecânico, polifonias digitais androides (“Bubu and his friends”), programações tão aberrantes como as de “Virtual Stance”, de Elliott Sharp, e pura diversão tecnológica. “Oway oway” sugere como seria se Morton Subotnik ou Carl Stone resolvessem fazer pop.