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Chris Cutler & Lutz Glenadien – “Domestic Stories” + Fred Frith & François-Michel – “Pesenti Helter Skelter”

pop rock >> quarta-feira >> 21.04.1993


Chris Cutler & Lutz Glenadien
Domestic Stories (8)
CD Recommended, import. Contraverso
Fred Frith & François-Michel Pesenti
Helter Skelter (6)
CD Rec Rec, import. Contraverso



Em pleno período dourado da música progressiva, um grupo inglês lançava as bases de um movimento que influenciou o panorama da música alternativa feita na Europa nas duas décadas seguintes: Henry Cow. Dele faziam parte um guitarrista de génio, Fred Frith, e um percussionista-teórico alucinado, Chris Cutler. Na editora-distribuidora Recommended, que o segundo dirige actualmente, desenvolveram uma atitude e uma estética de ruptura que aliava a revolta (e a politização) do “free” à música de câmara europeia e ao dodecafonismo, cedo perfilhadas por um número razoável de outros grupos que até hoje vêm enxertando novos ramos no tronco original.
Posteriormente aos Cow, Chris Cutler tomaria a liderança, estética e teórica (sobretudo a partir de “Winter Songs”), no projecto consequente, Art Bears. A partir daí e até hoje, os dois não cessaram de cruzar os respectivos caminhos. Fred Frith, um pouco perdido após a debilidade da banda sonora “The Top of his Head” e desde que alinhou ao lado de John Zorn nos Naked City. “Helter Skelter”, um bom esforço de recuperação, embora longe das obras capitais “Gravity”, “Speechless” e “The Technology of Tears”, é a partitura adaptada de uma ópera de François-Michel Pesenti sobre a violência urbana, a alienação e o fim dos tempos. Dividida em duas partes distintas, “Qui peut m’aider?” e “La salle des adieux”, conta com a prestação instrumental do grupo francês Que D’la Gueule. Da colaboração nasceu um híbrido Henry Cow mais This Heat mais Diamanda Galas acorrentada que radica sem grandes rasgos no típico som Recommended. Radical para os que o desconhecem. Trivial e um pouco maçudo para os “habitués”.
“Domestic Stories” é outra história. Na boa companhia de Frith, o anarco-saxofonista Alfred Harthd e da cantora Dagmar Krause, Cutler volta a embrenhar-se em textos herméticos, entre a mitologia, a catarse mágica e a descrição do vazio existencial dos tempos modernos, em múltiplos diálogos/enredos com as sequências musicais compostas por Lutz Glandien que privilegiam o contraste e a alternância de linguagens. “Free rock”, jazz mutante, alucinação conceptual, pouco importam as definições. Chris Cutler, a cada novo projecto em que se envolve, insite em desestabilizar, contornar o óbvio e avançar perspectivas inusitadas. “Domestic Stories”, parecendo impenetrável a uma leitura racional, obedece contudo a uma estratégia definida desde cedo por Cutler, de redescoberta e codificação de lógicas outras. Simultaneamente ancestrais e revolucionárias.

Henry Cow + Fred Frith – “The Henry Cow Legend” + “Unrest” + “In Praise Of Learning” + “Gravity” + “Speechless” + “Cheap At Half The Price”

Pop-Rock Quarta-Feira, 23.10.1991 Reedições


A LENDA DE HENRY “PÉ DE VACA”

HENRY COW
The Henry Cow Legend (10)
Unrest (8)
In Praise Of Learning (10)
CD, East Side Digital, import. Contraverso
FRED FRITH
Gravity (10)
Speechless (10)
Cheap At Half The Price (8)
CD, Rec Rec, import. Contraverso


“The Henry Cow Legend” começa por ser diferente logo na capa: uma meia tecida em fios eléctricos de plástico. A bizarria prossegue estranhamente nos dois álbuns seguintes, com novas versões da enigmática peúga. A explicação só mais tarde viria a ser fornecida pelo grupo: trata-se de um trocadilho com o título, que ninguém descortinara.



“Legend” é lenda mas também, na mente distorcida dos lunáticos da vaca, “legend”, o fim da perna, ou seja, o pé. Daí a meia. A música dos Henry Cow funciona um pouco neste registo entre Dada e uma bonomia esquizofrénica, sobreposição de lógicas susceptíveis de múltiplas leituras, que revela a cada audição pormenores insuspeitados e uma frescura e irreverência que o tempo não logrou apagar. “Legend” parte do trabalho e das perspectivas abertas pelos Soft Machine (“Third” permanece como obra-prima absoluta dos anos 70), junta-lhe a loucura de Zappa, o “free jazz”, uns pós de Bartok e o perfume e elegância remanescentes dos jardins de Canterbury, para chegar a territórios e formas originais. O vanguardismo mais radical de “Amygdala” ou “The tenth chaffinch” alia-se à excentricidade pop de “Nine funerals of the citizen king” com a naturalidade e a cumplicidade de um sorriso. Improvisações delirantes, melodias intricadas mas sempre apelativas, arranjos que num instante passam de uma impossível complexidade à simplicidade mais desconcertante, contribuem para fazer de “Legend” um manancial de surpresas e descobertas. Fred Frith, Chris Cutler, John Greaves, Tim Hodgkinson e Geoff Leigh constituem a primeira formação da banda. No álbum seguinte, “Unrest”, Lindsay Cooper (oboé, fagote, flauta de bisel) substitui Geoff Leigh. “Unrest” é um disco mais difícil, ganhando em densidade e numa maior incursão instrumental o que perde em humor. Onde “Legend” é intervencionista (característica imputável a Chris Cutler, ideólogo de uma espécie de anarquismo esotérico, omnipresente em toda a obra dos Henry Cow, em particular no derradeiro manifesto “Western Culture”, e prosseguindo no seio dos Art Bears) de forma distanciada e cifrada, “Unrest” é obscuro, solene, denso, por vezes perturbante. Joga-se com metalinguagens estruturais e com a ambiguidade da gramática: “Half asleep; half awake”, “Ruins”, “Solemn Music”, “Linguaphonie”, exploram os recônditos de uma música de câmara fantasmática que investe contra as normas pré-estabelecidas com a inexorabilidade de um “iceberg”. Ousadias, estruturas e simetrias visionárias constroem o futuro num “trompe l’oeil” totalitário em “In Praise of Learning”, o álbum seguinte. Nesta altura junta-se à formação dos Henry Cow a “troupe” extravagante dos Slapp Happy: Peter Blegvad, Anthony Moore e Dagmar Krause. “Como sempre, a heterodoxia, o fascínio pelos jogos conceptuais, a recusa da “normalidade”. O disco constitui como que uma manifestação prévia da obsessão de Cutler (nomeadamente ao nível dos textos) pela temática do Apocalipse, presente, de uma maneira ou de outra, em “The World as i tis Today” dos Art Bears e posteriormente disseminada nas discografias dos News from Babel e Cassiber, bandas que o percussionista viria a integrar no período pós-Henry Cow. “Living in the heart of the beast” (“magnum opus” de 15 minutos que instaura a ordem no coração do caos), o golpe de faca vocal de Dagmar Krause em “War” ou a serração eléctrica da guitarra de Frith em “Beautiful as the moon, terrible as na army with banners” destacam-se como traves-mestras deste edifício monumental, inserido na vasta acrópole arquitectada pelos Henry Cow. Ao canto inferior da capa, uma frase (de John Grierson) esclarecedora de toda uma atitude: “A arte não é um espelho, é um martelo.”



Fred Frith, compositor prolífico e guitarrista pertencente ao clube restrito dos inovadores, tem, por seu lado, dispersado o talento por estéticas, projectos e colaborações incontáveis (seria fastidioso enumera-las) que atestam uma vitalidade ímpar na produção musical contemporânea. “Gravity” e “Speechless”, compostos numa veia semelhante, constituem talvez, a par de “The Technology of Tears”, os pontos culminantes da sua discografia a solo. Posteriores às lições de “Guitar solos”, “Gravity” e “Speechless” desenham a geografia de mundos novos interligados pelas músicas tradicionais e por confluências estilísticas de toda a ordem. Faixa a faixa, sucedem-se os cruzamentos de linguagens e a mestiçagem de estilos: o ambiente terceiro-mundista de uma rua de Porto Rico confude-se com um carnaval em Wall Street, os Shadows encontram-se com o rock industrial, recortes de guitarra ambiental dão lugar ao disco sound androide, um tema folclórico norueguês é partido aos bocados, cada um dando origem a um novo folclore imaginário. Os dois discos completam-se, na construção e no sentido. “Gravity” conta com a participação dos Aksak Maboul e dos suecos Zammla Mannas Maltid (ambos membros da associação Rock In Oposition, que, na altura, integrava ainda os Henry Cow, os franceses Etron Fou Leloublan e os italianos Stormy Six). “Speechless” inclui na ficha técnica os Etron Fou Leloublan e os Massacre (Frith mais Bill Laswell e Fred Maher). Os CD incluem respectivamente mais cinco e seis temas que as versões em vinil. Por último, “Cheap at Half the Price” (gravado originalmente para a Raph Records, a mesma editora dos Residents, com quem, de resto, Frith também tocou, em “Commercial Album”…), no qual o guitarrista demanda o Santo Graal da canção pop. O resultado assemelha-se bastante aos primeiros discos de Brian Eno: melodias em contra-mão, vocalizações surreais, arranjos instrumentaortodoxos. O disco vale como curiosidade e pela comprovação do génio de Fred Frith, seja qual for o contexto em que se insere. No conjunto, seis documentos fundamentais para a compreensão do “outro lado” da música popular.

Fred Frith – “O Grande Explorador” (valores selados | blitz | artigo de opinião | dossier)

BLITZ 19 DEZEMBRO 1989 >> Valores Selados


FRED FRITH

O GRANDE EXPLORADOR


Fred Frith é indiscutivelmente uma das personalidades mais marcantes e fascinantes da música atual. Os seus múltiplos talentos de instrumentista, compositor e produtor estendem-se praticamente a todas as áreas.

«The Top Of His Head», publicado muito recentemente pela Made to Measure, confirma a sua permanente capacidade de inovar e de nos espantar. Vale a pena arriscar a sua audição. Falo para os ignorantes, é claro, que os outros já adquiriram de certeza pelo menos cinco exemplares do disco. «Quem é Fred Frith?» perguntam os primeiros. Já explico.
Fred Frith é o homem com o dom da ubiquidade. Está em todas, como se costuma dizer. Não há músico ou grupo importante que não esteja de algum modo ligado ao seu nome. Senão, vejamos a lista: como membro em «full-time» fez parte dos Henry Cow, Art Bears, Massacre, Skeleton Crew e Aksak Maboul. Como músico convidado ou/e produtor participou em discos de (por ordem alfabética): Bill Laswell, Bob Ostertag/Phil Minton, Brian Eno, Derek Bailey, Etron Fou Leloublan, Golden Palominos, Henry Kaiser, John Zorn, Lol Coxhill, Martin Bisi, Material, Negativland, Nicky Skopelitis, Orthotonics, Polka Dot Fire Brigade, René Lussier, Residents, Robert Wyatt, Swans, Tenko, Violent Femmes, Zeena Parkins e Zazou/Bikaye. Se souberem de mais, escrevam.



Juntem a isto uma intensa atividade ao vivo em tudo o que é sítio, integrado em obscuras «Big Bands» ou sozinho, entretido a atirar com objetos sortidos para cima da sua guitarra e perguntem: «Como é possível?» ou «E ainda gravou discos a solo?» É verdade. Gravou discos em seu próprio nome; e que discos!
No primeiro não arriscou muito. Chama-se «Guitar Solos» (74) e é isso mesmo. Só que os solos são de molde a colocá-lo imediatamente ao lado de Hendrix ou de Fripp, como um dos grandes, dos maiores inovadores nesse instrumento. A sua linguagem é única, desmultiplicando-se (e mesmo desdividindo-se) em complexidades harmónicas, rítmicas e tímbricas absolutamente assombrosas que vão das explosões atonais concretistas a um som límpido e cristalino que até parece o dos Shadows ou o Rui Veloso se tocasse harpa. Se me é permitida a comparação, Frith é o Miles Davis da guitarra.
Agora atenção: «Gravity» e «Speechless» (respetivamente de 80 e 81) são duas obras-primas da música desta década. Frith apelida-as de «música de dança» mas está a brincar. Ou se calhar não. O que é a dança? Segundo Curt Sachs, na contracapa de «Gravity», dança «é a vitória sobre a gravidade, sobre tudo o que pesa e oprime, transformação do corpo em espírito, a elevação da criatura ao criador, a imersão no infinito, o divino», ao que Frith logo acrescenta: «O que pode não ter nada a ver com este disco mas é um bom ponto de partida.»



Nestes dois discos, além da guitarra, do violino e do xilofone (os seus instrumentos habituais), Frith encarrega-se ainda das percussões, teclados e manipulações eletrónicas. Em «Gravity» participam os membros do coletivo sueco Samla Mammas e os americanos Muffins. Em «Speechless» são os franceses Etron Fou Leloublan além dos seus parceiros nos Massacre, Fred Maher e Bill Laswell.
É difícil definir a sua música. Música universal, talvez? Música das músicas? «World Music» traficada? O melhor é ouvir. Há tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo que nos perdemos. Felizmente. O som exótico de steel bands confunde-se com o folclore dos Balcãs. As ambiências industriais cruzam-se e misturam-se com fragmentos de gaitas-de-foles e solos de guitarra gravados de trás para a frente e outra vez para trás e eu sei lá, é uma orgia onde se abraçam múltiplas referências e tradições. A música do Terceiro Mundo (tão cara ao músico) é a solução? Ou do quarto, ou do quinto?
«Live in Japan» (82, em dois volumes) apresenta-nos a sua faceta de improvisador, entre o genial e o chato. «Cheap At Half The Price» (de 83, para a Ralph Records, a mesma dos Residents) é uma extravagância construída à base de canções que lembram por vezes os primeiros discos de Brian Eno, outras, o célebre quarteto(?) incógnito. Coincidência ou influência?…
«The Technology Of Tears» é um duplo do ano passado composto para peças de bailado. Depuração formal de um estilo, testemunho requintado de um universo musical ímpar. Frith revela a melodia oculta na dissonância e as descontinuidades de todas as melodias, quando dissecadas ao microscópio. Operação difícil mas de resultados fascinantes.
«The Top Of His Head», agora importado pela Contraverso, é uma surpresa a vários níveis. Começando pela própria editora, a belga Made To Measure, pelo menos aparentemente afastada das anteriores propostas do músico. Em «The Top…» Fred Frith como que adapta os seus próprios métodos às estratégias e pressupostos estéticos daquela editora. O som e a embalagem ostentam o habitual pendor classizante, mas com o fundador dos Henry Cow empenhado em dinamitar pela ironia e por dentro essa mesma imagem. Atente-se, por exemplo, no solo redundante de guitarra de «Hold On Hold» ou na canção «This Old Earth», interpretada por Jane Siberry. Em ambos os casos é rompido o tom sério presente em quase todo o disco. Frith nunca se satisfaz em permanecer durante muito tempo no mesmo lugar. Quando julgamos reconhecer uma entoação mais familiar ou uma referência a obras anteriores somos imediatamente despistados por constantes fugas para a frente. A sequência lógica (se é que é lógica) com que se encadeiam os diversos temas é praticamente indecifrável. Talvez vendo o filme. Sim, é verdade, já me esquecia de referir que «The Top Of His Head» é a banda sonora de um filme de Peter Mettler. Estranho filme deve ser, a avaliar pelos sons que o acompanham.
«The Top Of His Head» é um disco que desconcertará os mais acomodados, sem ser dos de mais difícil abordagem de toda a colecção MTM. Por vezes há aproximações à música de Benjamin Lew, como em «The Way You Look Tonight» e mais frequentemente aos mundos desse outro excêntrico que é Peter Principle, dos álbuns «Sedimental Journey» e, sobretudo, «Tone Poems».
«New Music»? Mas se Fred Frith já a faz de há dezassete anos para cá quando os Henry Cow chocaram com os preconceitos da época. As pessoas é que não têm reparado…