Arquivo de etiquetas: Festa do Avante

Vários (Festa Do Avante!) – “Comunistas Celebram Na Atalaia – Os Dois Rostos De Uma Festa”

cultura >> segunda-feira, 06.09.1993


Comunistas Celebram Na Atalaia
Os Dois Rostos De Uma Festa


De um dia para o outro, pode-se mudar a fisionomia de uma festa. Entre o incómodo e o prazer, nem a música escapou à dialéctica dos contrastes. Ron Kavana abriu as portas do céu. Assim se vê a força do PC.

Inferno e céu, por esta ordem, aconteceram no sábado e no domingo a 17ª Festa do “Avante!”, a acusar cada vez mais sinais evidentes de um gigantismo incontrolado, já que a população continua a acorrer em número impressionante a este certame que o Partido Comunista Português organiza anualmente. O que é uma foice de dois gumes, uma vez que as infra-estruturas existentes, acabam por não resistir ao dilúvio e aos estragos provocados pelas massas. Assim aconteceu mais uma vez, mas só no sábado. Um inferno. O inferno de Dante, comparado com o inferno do “Avante!”, é um jardim no Pólo Norte.

Uma Estação No Inferno

Chegava-se lá a pé, de carro ou de camioneta, após bichas intermináveis que começavam logo à entrada da ponte, para quem vinha de Lisboa. Na altura, o facto causou alguma irritação. A lentidão, o calor, a inalação do fumo dos escapes, tudo parecia contriba infernizar a vida, ainda antes de chegarmos ao teatro das operações. Puro engano. Compreendemos depois tratar-se de um plano previamente traçado, com o objectivo de chamar-nos a atenção para a beleza natural do eixo Almada-Fogueteiro-Atalaia.
Mostrada a tradicional EP, entrámos no santuário. É preciso confessar que a primeira visão que dele tivemos foi do tipo das que durante a Renascença assombraram a pintura de Hyeronimus Bosch. Um mar compacto de gente, de onde emergia todo o tipo de alucinações com formato humano, engoliu-nos de imediato. Adiante a questão dos sanitários sem água – um bem que no passado não soubemos entender. Até porque a água, se virmos, bem não é precisa para nada numa festa com estas características. Pode-se muito bem lavar as mãos com cerveja ou mesmo vinho, excluindo oo tinto carrascão.
Relva, houve sim senhor, embora não resistisse muito tempo à sanha esmagadora dos pés assassinos. Chegou, no entanto, para pôr em respeito a terra, mantendo-se no lugar que lhe compete, junto ao chão.
Tentámos a música. No palco grande 25 de Abril, com bom som, boas luzes, e pouco tempo de intervalo entre cada actuação, o que fez com que o horário se cumprisse sem grandes alterações em relação ao previsto. Rock duro, boa presença e muita energia foram os ingredientes trazidos pelos Xutos & Pontapés, num espectáculo cujas características casam bem com o ambiente da festa do “Avante!”. Seguiram-se os Sitiados, na mesma linha populista que lhes granjeou o triunfo no ano passado. Desta feita não resultou da mesma maneira porque a inovação foi nula, com as mesmas canções, as mesmas palavras de apresentação dos músicos no final (o acordeão mágico de Sandra Baptista, a bateria atyómica, etc.,) e a previsível sequência de “encores”, com a “A cabana do pai Tomás”), um tema de António Mafra (“a melhor banda do Porto”) e o hino “Esta vida de marinheiro”.
Também os Madredeus apresentaram o reportório do costume, sendo a única novidade a presença de José Peixoto na guitarra, que há poucos meses substitui o fundador teórico da banda, Pedro Ayres de Magalhães. Música de introspecção que o público, excitado, respeitou, até à conclusão, em tom festivo, com “O Pastor”. A fechar a noite os escoceses Wolfstone desiludiram. Folk rock sem imaginação, muito sdécibeis a disfarçar os poucos requisitos técnicos dos executantes e um lote de canções e instrumentais revivalistas, no mau sentido (cópia de formas, nula assimilação de uma estética que deu frutos no início dos anos 70) pôs um ponto final sem glória num dia em que Rimbaud não desdenharia de incluir nas suas alucinações. Adiado para o dia seguinte ficou o espectáculo de “rap” com bandas nacionais, devido à falta de condições técnicas alegadas pelos músicos.

Kavana No Céu

Domingo abriram-se as portas do céu. Menos, bastante menos gente, transformou o recinto por completo, tornado-o num local quase aprazível.
Mais espaço, mais ar, circulação livre em todos os sentidos, restaurantes disponíveis e até, “hélas”, a água que voltou às torneiras dos sanitários, mudaram o rosto da festa para qualquer coisa de muito melhor onde o prazer se instalou pela primeira vez.
No 25 de Abril a banda do irlandês (e comunista, não se furtou a gritar um “Viva o Partido Comunista Português!”) Ron Kavana assinou uma actuação inesquecível, mostrando que a electricidade e a música tradicional não são incompatíveis quando resultam de um trabalho de profundidade.
O público entusiasmou-se, os músicos deixaram-se empolgar e tocaram cada vez mais rápido e melhor – excelenete Kavana, no bandolim electrificado, e a sua mulher Miriam Vandenbosch na rabeca. Pena não se ter ouvido melhor o tocador de “uillean pipes” – o público por sua vez começou a delirar, e aos poucos o frenesim instalou-se: dança colectiva e incontrolável, alegria esfuziante em cima e em frente do palco, ritual de comunicação dionisíaca que atingiu o auge com a invasão pacífica de centenas de jovens que empunhavam bandeiras vermelhas do partido, recém-chegados para assistir ao comício que se desenrolaria a seguir, com a presença de Álvaro Cunhal.
A música fechou em apoteose, aos gritos de “Assim se vê a força do PC!”. Cavaco e o PSD que se acautelem. O perigo vem da Irlanda… (Ver pág. 4.)

June Tabor – “O Silêncio É Tão Importante Como As Palavras” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira, 24.02.1993


“O SILÊNCIO É TÃO IMPORTANTE COMO AS NOTAS”

June Tabor tem um ritmo próprio. De falar e de cantar. Misto de solenidade e alegria. Começou nas baladas da tradição inglesa “a capella”, passeou pelo jazz e divertiu-se a vestir blusões de cabedal e a cantar canções dos Velvet Underground e Oyster Band. Hoje canta as canções que lhe falam directamente ao coração.



June Tabor vem cantar a Portugal pela terceira vez. Nas suas anteriores passagens pelo nosso país, ambas em Lisboa, no mesmo ano de 1991 – primeiro em Junho, no Coliseu dos Recreios, em espectáculo integrado na edição inaugural do Folk Tejo, depois em Setembro, no relvado do Jamor, na Festa do Avante! -, a cantora não terá encontrado as melhores condições para fazer ouvir o registo intimista da sua música. O som e o ambiente não ajudaram. Desta vez, espera-se, tudo será diferente, para melhor. Considerada uma das maiores “folk singers” britânicas de sempre, a sua voz, de timbre puro e austero, projecta-se como luz – umas vezes velada, outras radiante – numa catedral. Especialista no canto tradicional “a capella”, foi alargando, ao longo dos anos, o seu campo de acção. Hoje canta com o mesmo à vontade as baladas ancestrais da velha Albion, “standards” de Cole Porter, Gershwin, Ellington, Charles Mingus e Thelonius Monk, ou uma descarga eléctrica dos Velvet Underground. Gosta sobretudo de canções que contem uma história. Em cerca de 20 anos de carreira não gravou muitos discos. Mas os que gravou (seis a solo, um de parceria com Martin Simpson, dois com Maddy Prior, outro com os Oyster Band, mais a participação no mítico “The Transports”, de Peter Bellamy) tornaram-se, quase todos, clássicos. “Angel Tiger”, o mais recente, revela June Tabor no auge da criatividade. Uma grande cantora, perto da perfeição.

PÚBLICO – Comecemos pelo estômago. Esteve até 1988 à frente de um restaurante. Considera o alimentopara o corpo tão importante como o alimento para o espírito?
JUNE TABOR – O restaurante foi uma coisa boa, que me mantinha muito ocupada. Não me deixava tempo para cantar. Quando foi vendido, pensei que finalmente era chegada a altura de me dedicar à música em tempo inteiro.
P. – Por que demorou tanto até tomar essa decisão?
R. – Bem, quando comecei a minha carreira, há cerca de 20 anos, não queria ficar dependente da música. Não me queria sentir comprometida. Tinha medo que, se essa fosse a minha única ocupação, não pudesse ser aquilo que queria. Nessa altura tinha uma profissão – bibliotecária – e não queria abdicar dela. Podia ao mesmo tempo cantar a música de que gostava e, como bibliotecária, ganhar o dinheiro que precisava para viver. Sentia-me bem assim.

Segredos Do Canto

P. – Que relação mantém hoje com a cultura tradicional inglesa?
R. – Ainda canto algumas canções dessa tradição. Aquelas em que sinto as palavras. Sempre escolhi as canções em função das palavras. As melhores canções tradicionais são intemporais. Pode haver uma balada com 200 anos mas que continua a ser actual. Recuso-me a cantar peças de museu. A música tradicional não pode continuar uma coisa viva se não sofrer mudanças. Porque as circunstâncias actuais são outras.
P. – Houve uma época em que foi considerada uma purista. Estou a lembrar-me do escândalo que causou quando decidiu utilizar um sintetizador no álbum “Ashes and Diamonds”…
R. – Ainda hoje muitas pessoas pensam que, se eu não cantar só sem acompanhamento, é uma heresia (risos). Então um sintetizador, “oh my God!”.
P. – O mais curioso é que o novo álbum, “Angel Tiger”, está bastante próximo, em termos de sonoridade, de arranjos e de ambiência, dessa obra de 1977, não concorda?
R. – Sim, de facto, o ambiente e os arranjos, que são bastante austeros. É uma aproximação [“approach”] às canções que procura eixar as palavras e a melodia falarem por si próprias. O acompanhamento deve suportar as palavras e não escondê-las. Se as palavras são boas, deve-se-lhes dar espaço.
P. – Por outro lado, nota-se que dá cada vez mais importância ao acompanhamento instrumental, em detrimento das vocalizações “a capella” que constituíam grande parte do seu reportório antigo…
R. – Quando comecei, sabia cantar mas não sabia tocar qualquer instrumento. Hoje, continuo a não saber (risos). Era a maneira mais fácil de começar, por temas tradicionais “a capella”, que têm um esquema melódico rigoroso. Deste modo era possível apresentar-me em público sozinha. Depois fui conhecendo outros músicos, instrumentalistas, e a compreender o que podia ser feito com instrumentos. E também a encontrar outro tipo de canções, que queria cantar mas que não se aguentavam “a capella”, por não terem sido escritas para esse fim. Além disso, a força das vocalizações “a capella” sai fortalecida se estas forem integradas no meio de canções com acompanhamento. Sobressaem muito mais. Actualmente, nos meus concertos, este estilo aparece como uma espécie de destaque. Já não dou concertos exclusivamente “a capella”.

Questões De Estilo

P. – O que sente ao ouvir a sua voz registada nesse álbum já velhinho e lendário que é “The Transports”, do malogrado Peter Bellamy?
R. – Digo para mim mesma: “Sou realmente eu?” [Risos.] Neste intervalo de quase 20 anos a minha voz mudou. Tornou-se mais profunda, mais madura, pelo menos assim o espero (risos). Quando ouço discos meus antigos, às vezes é-me difícil aceitar que seja a minha voz. Admiro-lhe a técnica, mas prefiro a actual. Penso que canto muito melhor do que cantava, embora admita que em termos rigorosamente técnicos, não seja tão tecnicista como antes.
P. – Um dos seus projectos mais bem-sucedidos é o duo Silly Sisters, com Maddy Prior. Após dois álbuns brilhantes [“Silly Sisters” e “No More to the Dance”], nunca mais se ouviram cantar as duas juntas…
R. – Costumamos fazê-lo uma vez em cada dez anos (risos). Mas actualmente é mais difícil cantar em conjunto com Maddy, porque as nossas vozes mudaram. A de Maddy tornou-se mais aguda e a minha mais grave. E é mais difícil encontrar tonalidades que possam ser cantadas em conjunto pelas duas. Antes podíamos trocar, uma cantava a melodia, outra a melodia, e vice-versa. Hoje é mais problemático. Por outro lado, os estilos de canções que cada uma de nós deseja cantar tornaram-se cada vez mais afastados.
P. – “Some Other Time” [1989], um álbum de “standards” de jazz, não foi muito bem recebido pela crítica. Será porque a sua voz não se adapta a esse género de canções?
R. – O problema está em que a maior parte dessas críticas é de ordem subjectiva. As pessoas pensam que à partida, eu não devo cantar esse tipo de canções. Elas não as querem ouvir da maneira como as canto. Têm um preconceito, que eu não devo, ou não consigo, cantar “jazz”. A questão essencial de “Some Other Time” é que eu não estava a tentar transformar-me numa cantora de jazz. Apenas quis pegar em canções do reportório de jazz que tivessem letras fortes, que contassem boas histórias, e cantá-las à minha maneira. Nos concertos em Portugal vou cantar quatro temas do reportório de jazz. Com Huw no piano, Mark Emerson, violino e viola de arco e Mark Lockheart e saxofone e clarinete.

A Voz Do Silêncio

P. – A que se deveu a colaboração, ao vivo e em disco, com os Oyster Band? Um desejo de vestir blusões de cabedal ou algo mais?
R. – Gostei e continuo a gostar de cantar com os Oyster Band. E, já agora, de vestir blusões de cabedal (risos9. Foi uma experiência que, penso, resultou bem. O “show” em Portugal [na Festa do Avante!” em 1991] não aconteceu talvez no melhor local…



P. – Da outra vez que actuou em Portugal, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa [na primeira edição do Folk Tejo, em 1991], a música esteve imaculada, mas o som voltou a falhar…
R. – Sim, a música foi óptima. Em salas grandes como essa é impossível conseguir um som perfeito, porque não foram projectadas para este tipo de música. Prefiro tocar em teatros pequenos.
P. – Não em clubes folk, disse-o uma vez…
R. – A minha música não é propriamente para se ouvir de pé. Um teatro é mais confortável, as pessoas podem concentrar-se melhor. E pode controlar-se o som. O que nós fazemos é muito subtil, delicado mesmo. O silêncio é tão importante como as notas, como a música. É necessário poder criar a atmosfera certa. Esta é uma luta constante. Não acontece só em Portugal, em Inglaterra também.
P. – Que critério seguiu, na escolha dos compositores, em “Angel Tiger”? Escolhe os autores ou são eles que vêm ter consigo?
R. – Na maioria dos casos há uma escolha prévia. Em “Angel Tiger” só constam, a meu pedido, duas canções escritas: “All this useless beauty”, de Elvis Costello, e “The doctor calls”, de Ian Telfer, dos Oyster Band. Conhecem ambos a minha música e os meus gostos. Mas é sempre um risco… Felizmente gostei das duas. Seria embaraçoso chegar ao pé de Elvis Costello e dizer-lhe: “Obrigado, Elvis, mas não gostei!” [Risos]. Mas a escolha é minha. Posso sempre dizer que não.
P. – Disse recentemente, numa entrevista, que podia ter feito um álbum inteiro apenas com canções de Les Barker. O que encontra de especial neste autor?
R. – É o exemplo de alguém que trabalha a partir da tradição. Ele usa melodias tradicionais, peças instrumentais ou canções com versos em várias línguas, em gaélico ou outra qualquer, e trabalha até ficar totalmente familiarizado com elas. Depois escreve palavras novas que se adequem. Quase tudo o que ele escreve me fala ao coração e está de acordo com as minhas opiniões.
P. – Já agora, há algo mais que fale ao seu coração? Sei que gosta de gatos…
R. – Gatos e cães. Tenho quatro gatos, seis cães e… um burro.
P. – Pode explicar-nos em que consiste o projecto Passendale, em que vai colaborar?
R. – Passendale foi uma batalha travada em 1917, durante a I Guerra Mundial, de Julho a Dezembro. 500 mil homens morreram nessa ocasião, de ambos os lados. Um desperdício absurdo de vidas humanas. Esse acontecimento, no ano em que se comemora o 75º aniversário do fim da I Grande Guerra, vai ser evocado numa série de espectáculos ao vivo, com músicos de várias nacionalidades e canções desse conflito, a par de outras que falam da futilidade da guerra em geral. Participo eu, com Huw e Mark, uma cantora flamenga, três músicos árabes, um cantor e tocador de “oud” do Líbano e uma cantora sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. A intenção é dizer que a guerra não conduz a nada, uma coisa inútil que, apesar disso, está sempre a acontecer.
P. – O termo “world music” faz sentido para si?
R. – É um termo que se usa e de que se abusa. Deveria haver alguém mais sincero e chamar-lhe antes “música do Terceiro Mundo”, porque é disso eu se trata. Por mim, gosto de ouvir música da Ásia, da Escamdinávia… Não encontro muito com que me identifique na música africana, embora admire as suas técnicas, em particular dos cantores. Mas toda a música é subjectiva.
P. – Porque falou em técnica, já tentou cantar baladas irlandesas, em gaélico, por exemplo?
R. – Irlandesas sim, em gaélico não, porque não domino a língua. Nunca gravei nada nesse domínio. Há quem o faça muito melhor do que eu. Mas posso decorar o estilo, se quiser. Desde que as palavras sejam boas. Se quiser, nos concertos em Portugal posso cantar uma canção irlandesa para si (risos).
P. – Obrigado. Por falar em canções, em “Ashes and Diamonds” há uma belíssima, intitulada “Lisbon”. Pensa cantá-la em Portugal?
R. – É uma óptima ideia. Já não canto essa canção há imenso tempo. Obrigado pela sugestão. Vamos ensaiá-la nas próximas semanas [esta entrevista foi feita em meados de Janeiro]. Vou mesmo cantá-la!

LISBOA, TEATRO SÃO LUIZ, 28 DE FEVEREIRO, 22H
BRAGA, TEATRO CIRCUS, 1 DE MARÇO, 22H
PORTO, TEATRO RIVOLI, 2 DE MARÇO, 22H

DISCOGRAFIA SELECCIONADA
ASHES AND DIAMONDS, TOPIC, 1977

Primeira obra-prima. O álbum do “escândalo”. Nele, June Tabor, purista das puristas, utilizou um sintetizador. Canções “a capella” como a prova de fogo “Clerk saunders”, “The Easter tree” e “No man’s land” rivalizam com os arranjos instrumentais, belíssimos, de “Now, I’m easy”, “The earl of Aboyne” e “Cold and raw”. Dois duetos de maravilha: com o piano, em “Streets of Forbes” e com o sintetizador, em “Lisbon”, balada que evoca o encontro amoroso de uma portuguesa com um marinheiro inglês, no porto de Lisboa, durante a Renascença. Jon Gillespie era então o teclista. Participações de dois Steeleye Span, Rick Kemp e Nigel Pegrum. E de Nic Jones, um grande guitarrista da “folk” inglesa.

A CUT ABOVE, TOPIC, 1980
Encontro com outro guitarrista célebre do circuito “folk” inglês, Martin Simpson (que ensinou June Tabor a olhar para sons mais contemporâneos), e mais uma viagem pela tradição da ilha, desta feita com uma aproximação às sonoridades medievais. Dave Bristow substitui Jon Gillespie nos teclados. Ric Saunders (Soft Machine, Albion Band, Fairport Convention) traz para a música o virtuosismo do seu violino. Um álbum de que pouco se fala (há quem prefira a maior contenção de “Abyssinians”), mas que é um dos mais conseguidos.

AQABA, TOPIC, 1988
Deslumbrante. Nesta altura June Tabor passeava a voz e o talento por músicas de outras paragens. É o disco de apresentação de Huw Warren, em quem a cantora parece ter descoberto o parceiro ideal. Os tradicionais “a capella” ora pairam no éter, ora explodem nas vibrações vocais de June Tabor. A expressividade emocional levada ao ponto de equilíbrio perfeito. As irrupções bruscas do clarinete e do saxofone, a par do ambiente de religiosidade, formam como que uma extensão vocal das liturgias de John Surman para a ECM.
O título-tema, composto por Bill Caddick, integrou-se de imediato no grupo das melhores canções e interpretações de sempre da música inglesa de raiz tradicional.

ANGEL TIGER, COOKING VINYL, 1992
Álbum da maturidade. A aliança de recursos vocais aqui distribuídos por uma gama infindável de registos, com uma serenidade e segurança inquebrantáveis. Nada há para provar, senão que cada canção ganha, através do canto de June Tabor, significados e uma energia próprias. Como se ela fosse a única que lhes consegue descobrir o coração. Elvis Costello e Ian Belfer, dos Oyster Band, escreveram especialmente para a cantora. A divindade felina estendeu sobre June Tabor um sortilégio. Uma cantora em estado de graça.

NO MORE TO THE DANCE (SILLY SISTERS, DUO COM MADDY PRIOR), TOPIC, 1988
Não podia ser de outro modo: As vozes de duas divas da “folk” britânica irmanadas numa causa comum – de amor a uma tradição que ambas sempre serviram e ajudaram a potencializar – combinam da melhor maneira e o resultado é um disco de música de inspiração tradicional, que marcou os anos 80. E uma reunião de estrelas que aqui participam: Dan Ar Braz, Andrew Cronshaw, Paul James e Nigel Eaton (dois ex-Blowzabella), Patsy Seddon e Mary McMaster (duo Sileas). Para todos aqueles a quem o termo “música celta” quer dizer tudo, este é um dos seus tesouros mais valiosos.

Sitiados – “Último Dia Da Festa Do ‘Avante!’ – Estado De Sítio”

Cultura >> Terça-Feira, 08.09.1992


Último Dia Da Festa Do “Avante!”
Estado De Sítio


O último dia da Festa do “Avante!” proporcionou algumas novidades: sanitários sem luz, “lasers” nacionalistas e novos meios de pedagogia partidária. O triunfo pertenceu aos Sitiados, que ofereceram à multidão a única coisa que esta queria: desbunda. Para o ano, fica a sugestão de um chá dançante.



Loucos. Loucos e cegos. Fomos loucos porque não compreendemos o significado profundo da Festa, o da solidariedade, da lama e da poeira partilhadas em democracia rumo ao socialismo. Aliás, na Festa do “Avante!” tudo é partilhado: as febras, o garrafão, os Chieftains, o comício, o Adriano, a música que se ouve ao mesmo tempo em todos os palcos, os odores, os encontrões, as bichas, o lixo, o grande arraial do menor múltiplo comum.
A felicidade estampa-se nos rostos dos jovens estendidos na alcatifa naturista da Atalaia. Há um brilhozinho nos olhos e fumos e pó nas veias e nos pulmões. Há muita alegria, muita música e toda a gente se trata por tu. Três dias de folia comunitária em que apenas é proibido estar sozinho. Loucos, loucos, que não percebemos isto. E cegos porque não vimos com olhos de ver, com a acuidade da foice e a veemência do martelo. A poeira não serve de descuilpa. Foi a cegueira e só ela que não deixou ver a beleza imensa das multidões que se entrechocam e dançam e comem e bebem e tombam. Em êxtase, tombam muito. Maravilhoso de se ver. Bela, muito bela, a cena protagonizada por dois jovens que numa das alamedas principais do recinto, lutavam, ao murro e à cadeirada, numa alusão simbólica à luta de classes. As massas, agradadas, capataram a subtileza do conceito e aplaudiram, incitando ao despique de dois sers humanos em luta sob um sol tórrido e vermelho, protagonistas de um mito que os transcende, onde se degladiam proletariado e capital. Como não nos emocionarmos com o teatro da vida? Só por brutalidade.

Subversão Sanitária

Coisa bela foi também uma das inovações tecnológicas presentes este ano na festa do jornal comunista, apresentada em regime experimental, na noite de Domingo: as instalações sanitárias, vulgo urinóis, sem luz eléctrica. Em princípio esta inovação teria como objectivo tornar os actos de libertação orgânica em acções revolucionárias, de vasto alcance político e social, empreendidas na obscuridade e, em simultâneo, símbolos da escuridão ecológica em que chafurda o mundo capitalista.
Mas não só de ideologia viveu a jornada de encerramento de mais uma edição da festa do “Avante!”. A música, claro, mereceu um lugar de destaque. Música portuguesa, no palco 25 de Abril, protagonizada no comício do partido e nas actuações dos Sitiados, Resistência e Rui Veloso. Delicioso assistir à prestação do grupo de Pedro Ayres Magalhães, “desalinhado” da anterior orientação nacionalista, empertigado numa versão delicada de “Traz outro amigo também”, de José Afonso. Os Resistência procuraram ser subtis, privilegiando, como consta no seu plano de intenções, a “mensagem” e os textos. Tão subtis que, depois do espectáculo “infernal” dos Sitiados, não chegaram a aquecer uma assistência mais interessada em abanar o capacete, como se costuma dizer, do que em ser educada na luta por uma vida melhor, debaixo de um céu azul que ficará, segundo a letra do hino de solidão e rebeldia “Não sou o único” com que fecharam a sua actuação.

Temas Ordinários

Antes de Rui Veloso subir ao palco, teve imensa graça assistir ao “show” de lasers baseado em imagens dos Descobrimentos, com muitas caravelas e cruzes de Cristo, dentro da mais pura estética que ajudou a ilustrar os compêndios da “longa noite” fascista. Longa foi também a noite passada na companhia do autor do recente “Auto da Pimenta”. O guitarrista portuense e a sua banda deram um espectáculo de rigor e profissionalismo, passando em revista temas conhecidos da sua discografia. Com solos “bluesy” à mistura, novos arranjos e as palavras de Carlos Tê, sempre valiosas. Mas tudo se arrastou excessivamente e a noite acabou em anti-apoteose.
Mais valia terem sido escolhidos os Sitiados para o concerto de encerramento. João Aguardela, Sandra Baptista, João Marques, Fernando Fonseca e Jorge Cuco perceberam bem a onda colectiva e trataram de lhe dar corda, que combustível já havia. Temas populares, velocidade de execução, o diálogo bem-humorado com a assistência chegaram para provocar o delírio e a celebração desenfreada. Os Sitiados são os apaches do rock português. João Aguardela fez a apologia da mentalidade xunga e anunciou temas “um bocado ordinários”, com versos inspitados como “a minha sogra é um micro-ondas, é um esquentador, é um frigorífico, é um vibrador” ou a “Cabana do pai Tomás”, sobre “um arquitecto que gostava de ter sido realizador de filmes pornográficos”. O público aderiu, cantou às ordens do João – “primeiro só as moças, agora só os homens. Vá lá, agora todos” e saltou, fazendo levantar mais algumas toneladas de poeira. Sandra Baptista, correu que se fartou pelo palco, agarrada ao seu “acordeão mágico”, a querer justificar as suas declarações no jornal da Festa: “palco, para mim é um orgasmo, público, é ele que me faz chegar ao clímax!”. “Ponha aqui o seu pezinho” mereceu quadras populares entoadas por cada um dos elementos da banda. O frenesim que entretanto se instalou proporcionou decerto à Sandra um grande número de seguidores. “Sex, dust & rock ‘n’ rol.” O pessoal não pedia mais.