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Chico Buarque de Holanda – “Chico Buarque Em Portugal – Quem Te Viu E Quem Te Vê” (concertos)

cultura >> sábado >> 29.05.1993


Chico Buarque Em Portugal
Quem Te Viu E Quem Te Vê



No teatro S. Luiz, em noite de “jet set”, Chico Buarque cantou para uma plateia de convidados VIP, mas não lhes deu o prazer de canções para trautear. Ausente a festa, ficaram a bailar as palavras do poeta. Nos ouvidos de quem não se deixou ofuscar pelas aparências.

Socialmente falando, foi um acontecimento o concerto de Chico Buarque, na quinta à noite no Teatro S. Luiz, em Lisboa, reservado a convidados. Estiveram presentes Mário Soares com Maria Barroso, António Guterres, João Soares, Vítor Constâncio, Mira Amaral, Braga de Macedo, David Mourão Ferreira, Edite Estrela, Sérgio Godinho, Rui Veloso, Carlos do Carmo, Alçada Baptista, Eunice Munoz, Raul Solnado, Teresa Maiuko, o grande Roberto Leal, todo de branco, resplandecente como um anjo no centro da plateia, e um ou outro anónimo que veio despropositadamente só para ouvir a música do brasileiro. Um êxito. Um deslumbramento de “toilettes” e vaidades. “In”érrimo.
Hoje pelas 22h, como ontem, o espectáculo repete só para o povo que de longe prefere as condições do Pavilhão Carlos Lopes ao luxo intimidativo da velha sala do Chiado. Fez bem a aorganização, a Propalco, em separar o trigo do joio. Em relação às salas, claro.
Registe-se, à laia de curiosidade, que Chico Buarque também esteve presente. Em cima do palco, acompanhado pela sua banda, num espectáculo “cool”, “intimista” e “musicalmente apurado”, como tinhya anunciado na véspera, em confer~encia de imprensa. Enfiado na inevitável camisola de gola alta (que desta feita não era azul escura mas escarlate), o cantor brasileiro viajou pelas águas mais calmas do seu reportório, deixando de parte os temas que o público tinha na ponta da língua e reforçando a força das palavras de canções suas que andavam espalhadas por versões alheias. Vinte e quatro ao todo, emnos uma que no alinhamento previsto, ficando de fora “Morro dois irmãos”.
Não houve “show”, no sentido vulgar do termo, e Chico pouco comunicou, para além dos textos das canções. Apresentou, logo de início, os músicos, introduziu sem grande entusiasmo os temas “Futebol” e “Outra noite” (um dos quatro inéditos da noite). O resto foram as palavras, que tão bem domina – “d’ accord, d’ accord, a corda”, em “Joana francesa” – para se ouvir baixo (a sua voz também já não se presta a grandes explosões), ao sabor da tristeza do samba em fim de carnaval e de um violão que apenas abandonou, já em tempo de “encore”, em “Não existe pecado ao Sul do Equador”, para se permitir um tímido meneio de sambista.
“Ela desatinou”, “Pelas tabelas”, “Valsa brasileira” / “Piano” na Mangueira” / “Pivete”, estes dois últimos temas também inéditos, o quarto foi “Choro bandido”, destacaram-se numa actuação sem grandes contrastes, em que a banda de suporte se limitou a ser competente, aproximando-se por vezes perigosamente do tom “banda de casino”. “Eu ter amo”, “Gota d’água” e “O que será”, acompanhado em surdina pelo “lalaiá lalaiá” dos presentes, froam mesmo assim aqueles que conseguiram aquecer um pouco mais os ânimos.
No final, a organização ofereceu um beberete ao contingente VIP, que não se fez rogado. Champanhe e cervejola regaram apetitosas “tapas”, que compensavam os “destapas” de alguma indumentária feminina. No concerto desta noite, no Pavilhão Carlos Lopes, é de supor que o bar esteja de igual modo bem fornecido.
“Pai, afasta de mim esse cálice.” O tanas!

Chico Buarque de Holanda – “Chico Buarque Em Portugal – Geração Derrotada”

cultura >> quinta-feira >> 27.05.1993


Chico Buarque Em Portugal
Geração Derrotada


Chico Buarque regressa a Portugal e aos sons num novo espectáculo de “reconciliação com a música e o violão”. Canções novas, outras pouco conhecidas, a rodagem para um novo disco a editar no final do ano. A contrariar a imagem de um homem desiludido que fez parte de “uma geração derrotada”: “Nos anos 70 queria derrubar o Governo. Hoje não quero derrubar governo nenhum.”

Envergando uma camisola azul-escura de gola alta (dá a impressão que ultimamente apenas veste camisolas azuis de gola alta), olhar atento e penetrante, Francisco Buarque de Holanda, Chico Buarque, falou ontem em conferência de imprensa realizada na embaixada do Brasil sobre o seu novo espectáculo, com organização da Propalco, a apresentar em Portugal. Hoje À noite no Teatro São Luiz, só para convidados, com filmagem da SIC para posterior apresentação televisiva; dias 28 e 29, no Pavilhão Carlos Lopes, dia 3 de Junho em Aveiro, no Teatro Aveirense, e 4 e 5 de Junho no Coliseu do Porto. Todos às 22h.
“Mais ‘cool’, intimista – prometo não dançar – e apurado musicalmente” que o seu anterior “show”, “Frncisco”, é como o cantor e compositor brasileiro define a nova apresentação ao vivo, ultrapassada para já a faceta de escritor que lhe tomou toda a atenção durante os últimos meses. Do novo recital, como Chico Buarque prefere chamar-lhe, fazem parte quatro canções novas: as parcerias “Choro bandido”, com Edu Lobo, “Pianao na Mangueira”, com Tom Jobim, e “Outra noite”, escrita para a mini-série portuguesa “Procura-se”, ainda inédita, com Luís Cláudio Ramos, maestro e guitarrista do actual agrupamento, além de um novo arranjo para o tema “Pivete” (o puto da rua, no Brasil).
O resto será constituído por temas menos conhecidos do público aos quais se irão acrescentar novas composições, à medida que a digressão for decorrendo, para inclusão num próximo álbum a editar no final do ano. Completam a banda que acompanha Chico a Portugal o percussionista Chico Batera, o baterista Wilson das Neves, o baixista Jorge Hélder, o pianista João Rebouças e Marcelo Bernardes, nos sopros.
Chico Buarque, prestes a atingir os 50 anos de idade, está diferente. Joga futebol e distancia-se da política: “Aconteceu alguma coisa nova em política este ano no Brasil?” A ironia, percebe-se, tornou-se uma arma de dois gumes. Deixou de parte os temas mais politizados porque “há canções que ficam datadas, demasiado vinculadas a determinados momentos. Até podem voltar mais tarde, mas com uma referência histórica. Existe um hiato de tempo em que é melhor elas ficarem na geladeira”.
Canções “escritas na época mais dura da repressão brasileira, pela necessidade de contestar, mas que com o tempo se desgastam”. Depois, “a quantidade de problemas e de miséria é tão grande que chega a saturar. A canção, que pretendia tocar as pessoas, chamar-lhes a atenção, despertar emoções, tornou-se insuficiente. A realidade está ali gritante, na televisão e na rua, em toda a parte”.
Nota-se nas palavras o cansaço e a desilusão. Para o autor da “Ópera do Malandro”, “o papel político do artista tem muito menos peso hoje do que nos anos 70”. Aponta como exemplo as campanhas eleitorais em que “os artistas se fazem pagar para fazer propaganda política. Há dez anos, quando se queria insultar um artista dizia-se que tinha sido pago para fazer tal propaganda. Hoje já não é insulto mais uma coisa rotineira. Tudo ‘show business’”.
Sem querer fazer “juízos de valores”, Chico Buarwue diz que “são profissionais que, assim como anunciam uma geladeira ou um automóvel, também anunciam um candidato político”. “A opinião do artista”, acrescenta, “perdeu em termos de testemunho para se transformar num testemunho meramente comercial.”
Mas não se escusou a comentar problemas como a segregação dos brasileiros em Portugal (o cantor manifestou-se, inclusive, preocupado com a possibilidade de a sua filha ser impedida de desembarcar em Lisboa na próxima quinta-feira, por não trazer os documentos em ordem, estar sem dinheiro e não possuir visto de trabalho) – “resultante de uma ignorância que está um pouco disseminada por toda a parte” – ou o próximo acordo ortográfico: “Eu vou ter que mudar a minha escrita? [depois de algumas explicações] Ah, então para mim não muda nada, vocês é que vão ter que arranjar uma solução para o problema!…”
Por trás do sorriso ressalta, porém, a imagem do cidadão que viu desfazerem-se muitos dos seus sonhos. De alguém “com quase 50 anos” que “andou criticando muitas coisas que não se modificaram”. De Chico Buarque que um dia cantou “eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia” espanta ouvir dizer: “De certa forma pertenço a uma geração derrotada. Mas uma geração que se orgulha das suas derrotas, que sempre se manifestou contra o que está acontecendo hoje.”
Mas o tempo e o cansaço vão corroendo os ideais. Uma justificação: “O que muda é a atitude. Nos anos 70, se pudesse, eu derrubava o Governo. Hoje não quero derrubar governo nenhum.” E um conforto: “Continuo a ter uma reacção crítica em relação ao actual Governo, mas estou aqui na embaixada…”

Chico Buarque De Hollanda – “Chico Buarque Fala De ‘Estorvo, O Seu Primeiro Romance – ‘Talvez Eu Tenha Vivido O Pesadelo'”

Secção Cultura Terça-Feira, 12.11.1991 (entrevista)


Chico Buarque Fala De “Estorvo”, O Seu Primeiro Romance
“Talvez Eu Tenha Vivido O Pesadelo”


“Estorvo” representa a estreia “a sério” de Chico Buarque na literatura. No Brasil o aplauso foi unânime. O romance, que obrigou o seu autor a abandonar a música por mais de um ano, conta-nos uma história interminável de fuga e alienação. O livro encontra-se à venda em Portugal desde o final da semana passada.



Metáfora ou não, “Estorvo” incomoda pelo tom obsessivo da personagem principal, à deriva num universo de violência que o autor não deixa de comparar ao Brasil. Ao longo de uma narrativa em que a musicalidade da escrita está sempre presente, é todo um desfilar de fantasmas e desencontros que termina na morte. Mas o autor prefere falar da forma e das virtualidades da linguagem. O “filme-nefro” confunde-se com o romance psicológico.
PÚBLICO – “Estorvo” é um livro em que se nota um grande pessimismo, um tom desesperado, mesmo. Esse estado de espírito corresponde a uma fase da sua vida?
CHICO BUARQUE – Eu não me identifico a tal ponto com a personagem do livro. O tom geral é certamente de pessimismo. Talvez eu seja um pouco pessimista, se não tiver a música por perto.
P. – Mas houve alguma situação concreta que o angustiasse nessa altura?
R. – Talvez eu tenha vivido o pesadelo, durante a ecrita do livro, pelo próprio trabalho de o escrever. Foi um trabalho que mexeu bastante com alguns fantasmas. Mas digo isso hoje, porque já estou de fora. Na época não tinha muita consciência disso. Às vezes tinha até a impressão de me estar a divertir, de estar a escrever um livro cheio de humor. E quando o terminei, mesmo a partir da observação de outras pessoas, comecei a notar que está muito carregado de angústia.
P. – O livro começa por surpreender pela forma: a escrita na primeira pessoa do singular traduz-se na visão subjectiva da realidade. Os personagens não têm nome. Nesse sentido, “Estorvo” pode considerar-se um romance psicológico?
R. – Tem tudo a ver com o inconsciente. Cheguei a um certo ponto em que não vi qualquer necessidade de dar nome às personagens. Pareceu-me artificial. De resto, tenho uma certa dificuldade de dizer porque fiz de uma maneira e não de outra. Acredito que o uso da primeira pessoa facilite uma certa ambiguidade – a da realidade filtrada por uma única personagem. A sua imaginação e a minha acabam por se confundir.
P. – Um pouco à semelhança de “Barton Fink”, nunca sabemos se acção é “real” ou se se passa apenas na cabeça da personagem.
R. – Na minha cabeça, tenho uma história real, com princípio, meio e fim. A passagem da realidade para a imaginação da personagem, às vezes é marcada pelo tempo de um verbo. Mas para o leitor imagino que seja confuso. No fundo não pretendo esclarecer mais do que o necessário essa divisória entre o real e a fantasia.
P. – O romance começa com o “herói” num estado de “semi-vigília”. Não sabemos se está acordado ou a sonhar…
R. – Começa e termina nesse registo.
P. – A ambiguidade geral de “Estorvo” levou vários críticos a considerá-lo uma metáfora sobre a actual realidade brasileira. Concorda?
R. – Não tive a menor intenção nem preocupação metafórica. Por exemplo, a geografia da cidade é claramente a do Rio de Janeiro. Há sem dúvida coisas que dizem respeito à realidade concreta brasileira de hoje; elementos do seu dia-a-dia, se bem que romanceados.
P. – Mas é legítimo estabelecer um paralelo entre a personagem sem destino do romance e o cidadão brasileiro?
R. – Nesse aspecto, o cidadão brasileiro, hoje, está perdido, perplexo. E eu, como os outros brasileiros, também me sinto um pouco assim. Então aí, sim, “Estorvo” retrata o momento.
P. – Ao contrário do romance tradicional, em que o herói age sempre em nome de um ideal ou de um valor, em “Estorvo”, não existe qualquer tipo de motivação. Não há acções; apenas gestos…
R. – Há gestos, modificações, mas são movimentos sem intenção. O herói não tem intenção de interferir nos acontecimentos. Assiste a tudo, impotente.
P. – De onde vem essa sensação de impotência?
R. – Bem… As acções foram surgindo como consequência da linguagem. E ela é que determinou muitas vezes a maneira como as coisas se sucediam. Se as personagens tinham determinadas intenções, estas por vezes não se chegaram a concretizar porque na escrita soavam a falso. A linguagem não permitiu. Portanto, foi a própria escrita que determinou a acção, ou inacção, do livro. A questão da linguagem, para mim, é mais importante do que qualquer outra coisa. Num livro pequeno como “Estorvo”, passei meses a fio a reescrevê-lo. Só parava quando chegava a um resultado que me satisfizesse em termos de linguagem e não de enredo.
P. – Não receia que, com tal processo, “Estorvo” possa ser visto como mero exercício de estilo?
R.- Talvez tenha corrido esse risco, mas tenho a impressão que a própria linguagem criou uma tensão própria, um ritmo, que acaba por ser musical. Acho que o livro é musical, apesar de não ter nada a ver com a minha música. Mas tudo isto, agora, são especulações posteriores à criação.
P. – Há quem se refira ao enredo de “Estorvo” como sendo a descrição de uma fuga. Fuga de quê?
R. – Não sei se o personagem foge, se é escorraçado ou se é simplesmente um desajustado. É alguém que não se sente bem em lugar algum. Vai sempre para outro lugar, percorrendo um círculo vicioso, sabendo de antemão que não vai chegar a lado algum. Não sei se isso é uma fuga ou se é uma procura.
P. – Procura que no final cessa apenas com a cena do esfaqueamento como se o “herói” pudesse apenas ser aceite e redimido pela dor.
R. – Essas são impressões do livro. Penso nelas e é como se estivesse a pensar no livro de uma outra pessoa…
P. – Que impressão tem do seu livro, na perspectiva do leitor?
R. – A dificuldade é que eu ainda não consegui distanciar-me nem separar-me, do livro e da personagem. Ainda me sinto envolvido. Vivi essa saga. A facada no fim parece-me natural. Esse desejo de exibir o sangue vivo na camisa, para mostrar à ex-mulher, na tentativa de comunicar com ela através dessa ferida, faz parte da linguagem natural da personagem. Não foi numa perspectiva psicológica que fiz a leitura do que escrevi. Foi sobretudo ao nível da linguagem.
P. – Essa insistência no aspecto formal não esconderá o desejo inconsciente de afirmar perante a crítica a sua faceta de escritor?
R. – O reescrever e a obsessão formal são resultado de um grande prazer interior que tive em escrever. Não de inventar uma “cena” nova. Isso implicaria um sofrimento muito grande. Houve, quando muito, o desejo de ser aceite como escritor e não como compositor. O receio que tinha em relação à crítica era o de ser lido justamente enquanto autor de canções. E isso ter-me-ia parecido uma injustiça. Para ser assim, preferia ter feito um disco.
P. – O sucesso instantâneo de “Estorvo”, no Brasil, implica um redobrar de responsabilidade. Como pensa a partir de agora conciliar as facetas de escritor e compositor?
R. – Já me começaram a perguntar pelo próximo livro. Por outro lado, tenho contratos com editoras discográficas que estão preocupadas com este meu “desvio” para a literatura…
P. – Poderá haver um benefício recíproco entre a música e a litera?
R. – É um grande mistério que eu gostaria de desvendar. Julguei que, quando terminasse o livro, iria voltar para a música com muita sede. Mas fiquei exausto. E a música foi um bocado atingida. Como se todas as minhas energias tivessem sido sugadas pelo livro.