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“Exposição Sobre Celtas, Em Veneza – Em Demanda De Um Graal Contemporâneo” (celtas / exposição / veneza)

Secção Cultura Sábado, 15.06.1991


Exposição Sobre Celtas, Em Veneza
Em Demanda De Um Graal Contemporâneo


Patente ao público desde 24 de Março e até 8 de Dezembro, no palácio Grassi, em Veneza, a exposição “The Celts Exhibition” propõe uma viagem às origens da Europa e a descoberta de uma cultura que continua a povoar o nosso imaginário. Os celtas, esse povo estranho a quem os romanos chamaram “bárbaros” mas cujas fadas e duendes continuam ainda hoje a fazer sonhar.



Pretende esta “exibição celta” facultar a compreensão aprofundada de uma herança cultural comum, tanto mais apropriada quanto hoje se continua a discutir a ideia de uma Europa unificada. Como se de novo se assistisse à demanda do Santo Graal, o elo perdido, a varinha mágica que nos permitisse ultrapassar a crise, transformando em ouro o esterco acumulado durante os séculos da “Idade da razão”. Da mesma maneira que os ferreiros e fundidores celtas arrancavam o minério à mãe-terra para forjar, pela técnica e pela magia do fogo (nessa época técnica e magia eram sinónimos), a espada do deus ou o caldeirão da poção milagrosa onde Obélix tombou quando era pequeno.

Salas Iniciáticas

Durante mais de oito meses o palácio Grassi sobe no tempo e convida a compreender essa e outras histórias até agora envoltas em mistério. Percorre-se o palácio seguindo um percurso de iniciação aos tesouros “escondidos” (e paradoxalmente expostos) no centro de vinte sete salas, divididas por dois andares, rodeadas de painéis explicativos desenhados por Eliana Gerotto.
Cada sala, numerada, recria um ambiente relativo a um tópico específico, estabelecendo as diversas etapas de uma viagem cronológica, arqueológica e simbólica pelo mundo celta, desde a “promessa”, dos míticos antepassados hiperbóreos, até às “mensagem” e “herança” deixadas para decifração à Europa do Presente, passando pela “entrada dos celtas na Europa”, os “tesouros artísticos”, “animais míticos”, o “mundo dos deuses” e o “mundo dos mortos”. Especialmente interessante para nós portugueses, a sala dedicada aos celtiberos. Através das salas E e F entra-se “no mundo dos celtas com os computadores IBM”, especialmente programados para revelar segredos, até hoje ocultos, aos que gostam de saber tudo e depressa. Na sala A vendem-se catálogos, posters e videocassetes. Na B é possível comprar prendas alusivas ao tema, para oferecer aos maigos, no regresso. Ao todo a exposição reúne mais de 2200 peças, emprestadas por 200 museus de 34 nações. O trabalho de investigação científica esteve a cargo de uma equipa de seis especialistas, recrutados de diversas universidades europeias. O resto depende da sensibilidade e do modo de olhar de cada um, sobrando espaço tanto para a investigação académica como para a imaginação.
Do que foram (e talvez, de algum modo, sejam ainda…) os celtas, fica um esboço capaz de espicaçar a curiosidade e induzir eventuais interessados a viajar até Veneza, em busca de sonhos por cumprir. Apareceram no centro da Europa, por volta do século VI a.C., expandindo-se, ao longo de cinco séculos, para Oeste até à França (Gália) e Península Ibérica (Ibéria), para Sul até à Itália e Grécia, para Leste até à Ásia Menor (Galátia), ocupando, a Norte, as Ilhas Britânicas, constituindo-se como cultura dominante na Europa Central até ao advento do Cristianismo na Irlanda e o início da Idade Média. Os romanos assustaram-se com estes “bárbaros” sem medo de combater, que na procura de uma “morte gloriosa” buscavam a imortalidade e o convívio com os deuses mas que, antes disso, chegaram a ameaçar a capital do império. Nesta luta entre “civilizados” e “bárbaros”, ficariam célebres os feitos dos irredutíveis habitantes de uma certa aldeia gaulesa… Os gregos também não tinham deles opinião muito lisonjeura. O escritor Poseidonius descreve-os com “um aspecto aterrador, com vozes profundas e muito roucas” e de temperamento caracterizado pela “franqueza e fogosidade”, aliadas a uma “fanfarronice infantil” e ao “amor pelos enfeites”.

O Ramo Oriental

Mas para melhor compreender o espírito e a maneira de ser deste povo que afinal praticava a tolerância e se misturava com os povos conquistados (a exposição dá particular atenção ao problema de integração étnica e cultural gerado pelo fenómeno expansionista), é preciso saber que toda a História evolui a partir de uma união sincrética original (religiosa), de imediato transformada pela razão, orgulhosa e despeitada, em dialéctica. Saber este que passa pelo reconhecimento, na origem, de um elo de ligação com o Oriente e da matriz comum partilhada por celtas e hindus, ramos divergentes de um tal “Povo do machado de guerra”, localizado no Sul da Rússia. Também a raiz das línguas celta (indo-europeia) e hindu (originariamente o sânscrito) é amesma. Há até quem encontre semelhanças entre as respectivas divindades (alguns deuses celtas aparecem frequentemente figurados na posição de meditação hindu…) ou entre os sacerdotes brâmanes, indianos, e os druidas.
Da mesma forma que no Zen, os celtas acreditavam num mundo uno, interligado, de fronteiras difusas. Céu e terra cruzavam-se numa zona de brumas (as “Brumas de Avalon”, de que fala Marion Zimmer Bradley) por onde se acedia ao “outro lado”. Os planos físico e espiritual fundiam-se numa única realidade, confundida com o sonho. Deuses, homens e animais trocavam de forma entre si, num universo em permanente mutação governado por forças mágicas, telúricas (personificadas pelos duendes, fadas, e gnomos das histórias de encantar) e celestes.
Em “Tir nan Og” – “terra da promissão” – não existia pecado nem castigo, apenas um espaço ideal de bem-aventurança onde se podia eternamente brincar. A idade das trevas viria depois, com a Igreja católica, a apontar o dedo ameaçador, fazendo a distinção entre o Bem e o Mal.

O Temp(l)o Dos Celtas

BLITZ

13.2.90

O mercado discográfico nacional foi inundado recentemente por uma série de importações de obras relativas à música tradicional de raiz celta. No meio de tanta fartura muito terão ficado confundidos com a profusão de títulos e talvez pelo súbito interesse que este tipo de música volta a suscitar. Sobretudo para estes, que não sabem por onde começar, aqui vai como que um guia orientador das melhores opções de entre a oferta disponível

«O TEMP(L)O DOS CELTAS»

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A música tradicional nunca esteve (ou esteve sempre, consoante a perspectiva) na moda. Uma ou outra vez sai um pouco mais da sombra, são referidos alguns nomes e discos (geralmente os piores e menos representativos) por parte de algum crítico entediado e a coisa rapidamente passa de novo à História. Assim, periodicamente, o fenómeno renasce por entre a confusão dos «media» que apressadamente atiram com o rótulo revivalista ao ar e já está.
Quanto à música celta propriamente dita, vai dispensando e desafiando a incompreensão, o desconhecimento e todas as manobras que se vão desenrolando à sua volta. É intemporal, tem quem verdadeiramente a ame e isso basta-lhe. Os discos que agora vão enchendo as prateleiras de algumas das nossas discotecas, chegam-nos do Porto e abrangem unicamente as músicas irlandesa e escocesa. Vejamos então o que sobressai de tanta quantidade que justifique a aquisição ou pelo menos uma audição atenta.
Da Irlanda, através dos selos Claddagh e Tara, eis uma parte do que vale a pena. Tomem nota:

BAKERSWELL – Na linha dos Chieftains, com a encantatória gaita-de-foles, violino e a harpa da senhora que costuma tocar com os Oisin. Verde e água. Irlanda até ao fim.

CHIEFTAINS – O emblema musical irlandês. À disposição dos interessados nada menos que 14 álbuns, desde o primeiro, de 1964, gravado em mono, até ao recente «Ballad of the Irish Horse». Os exagerados não se contentarão com menos do que a totalidade. Em todo o caso, para os mais prudentes e selectivos, aconselho o volume 5 (na altura editado pela Island) e o seguinte, «Bonaparte’s Retreat», este último contando com a voz dessa grande senhora que dá pelo nome de Dolores Keane (posteriormente nos De Dannan a actualmente movendo-se a solo em terrenos menos tradicionalistas). Para além, claro, dos respeitáveis Paddy Moloney, na gaita-de-foles, Sean Keane e Martin Fay, os violinistas de serviço e Derek Bell na harpa. Jigs, reels, airs, hornpipes, é dançar até não se poder mais, de preferência com o bom velho whisky a acompanhar.

PLANXTY – Na minha opinião (e decerto nas de muitos mais), o grupo mais original e inventivo ao nível
dos arranjos e interpretações do cancioneiro tradicional irlandês. Por aqui passaram nomes lendários como Christy Moore, Liam O’Flynn, Andy Irvine, Donal Lunny ou Matt Molloy (que também tocou nos Chieftains e nos Bothy Band). Todos os álbuns são indispensáveis mais os mais fáceis de encontrar são «The Woman I Loved so Well» e «After the Break». Corram e não parem até os encontrarem.

WHISTLEBINKIES – Anda por aí o volume 4 que é excelente. Música bastante variada ao nível das combinações instrumentais, servida por intérpretes de primeiríssima qualidade. Ah, é verdade, são escoceses, embora gravem para uma editora rival.
Merecem ainda uma escuta atenta e aquisição por parte dos fanáticos que não deixam escapar nada, os álbuns a solo de Derek Bell («Carolan’s Receipt») e Matt Molloy («Stony Steps»), o quarto discos dos Oisin («The Jeannie C»). Só para os iniciados no grau mais elevado sugiro os discos de John Molineux com música tocada exclusivamente em saltério («Douce Amère») e finalmente temas tradicionais interpretados no cravo por Sean O’Riada («O’Riada’s Farewell»).

E passemos à Escócia.

ALISON KINNAIRD – «The Harper’s Gallery». A harpa escocesa (clarsach) em todo o seu cristalino esplendor. Alison também canta e nalguns temas é ajudada pelos seus amigos da Battlefield Band, em instrumentos variados, e pelo seu marido Robin Morton, patrão e dinamizador da Temple Records, cujo estúdio é mesmo uma antiga abadia perdida algures no meio do nevoeiro.
Exclusivamente de harpa é o álbum que gravou em dueto com Ann Heymann, uma americana de alma celta apaixonada pelas cintilações do instrumento, neste caso na variante irlandesa («The Harper’s Land»).

BATTLEFIELD BAND – Os reis da festa. A Escócia infinitamente recuperada e reinventada. Cada álbum que gravam é uma constante surpresa. Passam dos ambientes mais profundamente tradicionais para um reel baseado em «Bad Moon Rising» (esse mesmo, o dos Creedence) sem nunca perderem o pé nem o toque característico da música celta. Juntam descaradamente o som da gaita-de-foles ou de instrumentos medievais ao computador de ritmos. Sabem ser sérios e divertidos nas alturas certas. Retiram da música tradicional aquilo que ela tem de essencial e acrescentam-lhe a sua própria inspiração. São brilhantes. Adquiram sobretudo os álbuns «Home is Where the Van is», «There’s a Buzz», «Anthem for the Common Man», «On the Rise» e «Celtic Hotel». Excelente é também o disco a solo do multi-instrumentista da banda, Brian McNeill, «Unstrung Hero», com temas da sua autoria mas totalmente imbuídos do espírito antigo. Uma referência final para mais alguns discos, digamos que para especialistas: «O’er the Border» de GORDON MOONEY, o paraíso para os amantes das sonoridades das diversas gaitas-de-foles (no caso as variantes escocesas das Highlands e as «cauld Wind»), «Fonn is Furan» pela voz de FINLAY MACNEILL, inteiramente cantado em gaélico, os dois volumes de «Music in Trust», uma colaboração de Alison Kinnaird com os Battlefield Band para uma série televisiva dedicada aos monumentos e zonas históricas nacionais e mais um disco dedicado à harpa de MAIRE NI CHATHSAIGH («The new strung harp»).
Há pois muito por onde escolher e para complicar ainda mais a coisa, ainda por aí andam espalhadas algumas pedras preciosas, álbuns absolutamente indispensáveis para um «folkie» que se preze. São eles:
Ashley Hutchings/John Kirkpatrick: «The Compleat Dancing Master», Boys Of The Lough: «Farewell and remember me» e «Sweet Rural Shade», Blowzabella: «A Richer Dust», Cock & Bull: «Sacred Cows and concrete routs»; House Band: «The House Band», John Kirkpatrick/Sue Harris: «Stolen Ground», June Tabor: «Ashes and Diamonds», Late Night Band: «Kings of the Baroque’a’Billy», Martin Carthy: «Out of the Cut» e «Right of Passage», Roger Watson: «Chequered Roots», Richard Thompson: «In Strict Tempo», Shirley & Dolly Collins: «Love, Dead and the Lady» e Silly Sisters: «No More to the Dance», para além de tudo o que por cá existe de Stivell, claro.

… E depois o Universo imenso que falta: da Bretanha, da Galiza, da Provença, do resto da França, do Minho e Trás-os-Montes continuam a chegar os novos bardos e trovadores. An Triskell, Tri Yann, Malicorne, Mélusine, La Bambocke, Doa, Milladoiro, Pablo Quintana, Amâncio Prada, Mont-Jóia, Le Bardon, Emilio Cao, Ronda dos Quatro Caminhos, Maio Moço e mais algumas boas dezenas de nomes mas para já estes chegam.

A Chama e Alma Celtas continuarão eternamente a brilhar.

Planxty – The Well Below The Valley, aqui.