De tão simples, a ideia chega a espantar. Mas era preciso que alguém a pusesse em prática, e esse alguém tinha de ser José Mário Branco, mestre entre os mestres da produção. Gravar em estúdio como se fosse ao vivo ou vice-versa, eis a questão que se punha. A solução foi a criação de um cenário realista de uma casa de fados onde, ao mesmo tempo, fosse possível acontecer toda a emoção inerente ao fado cantado “in loco” nos sítios tradicionais e reunir as melhores condições técnicas da captação possíveis. Montado tal cenário, faltava saber se o fadista conseguiria tirar o máximo partido da situação. Ao desafio assim colocado pelo produtor respondeu Camané da melhor maneira. A garra do fadista veio ao de cima, com uma pureza despojada, afastadas as distracções, os fumos, os aplausos extemporâneos, as falhas que espreitam sempre que a emoção toma o freio nos dentes e a disciplina não lhe acompanha o passo. Excelentes o peso e a medida da voz e do sentimento de Camané em “Esquina da rua” (com algumas oscilações de volume pelo meio), “O espaço e o tempo”, “A saudade aconteceu”, “Fado da sina” e “Esta contínua saudade”. “Fado da tristeza” toca no fado-canção e em cantos antigos de um Carlos do Carmo, um toque em que é visível o dedo de José Mário Branco como compositor, enquanto “Saudades trago comigo” deixa adivinhar as condições de ambiente em que foi gravado. Em síntese, um projecto conseguido e inovador que volta a colocar o fado no lugar que lhe compete, na estreia em disco de um dos “veteranos” mais jovens do circuito. (7)
Camané não poder ser considerado uma esperança do fado pela simples razão de que, aos 28 anos de idade, já leva 15 a cantar aquele género musical nas casas da especialidade. Vencedor, aos 12 anos, do Grande Noite do Fado, em 1979, filmado por uma cadeia japonesa para a série Crianças do Mundo, interrompeu a sua carreira entre os 14 e os 18 anos, para regressar mais tarde ao fado e às suas capelas, do Fado menor, Senhor Vinho e Faia. Projectos para discos, esse foram ficando na gaveta, entre as noites fadistas e participações na “Grande Noite”, “Maldita Cocaína” e “Cabaret”, de Filipe La Féria. Até que a oportunidade surgiu através do convite que lhe foi feito por José Mário Branco, para produzir o álbum de estreia. Uma ideia germinada a partir do quartel-general no Teatro da Comuna e que levou à edição de “Uma Noite de Fados”, com o selo EMI-Valentim de Carvalho.
“Uma Noite de Fados” pode ser considerado um disco revolucionário no modo como foi produzido. Para o efeito, foi criado o ambiente de uma casa de fados, com convidados, comida e bebida à discrição. Posteriormente foram apagados da fita todos os ruídos (palmas, incitamento, etc.) do público, preservando-se apenas a música, recortada do ambiente ao vivo. “O que se procurou foi obter um suplemento de riqueza de interpretação”, diz José Mário Branco, o produtor, para quem o “fado é uma arte extremamente presencial, dependente da vivência directa do ambiente e da qualidade do público”.
Por outro lado, justificando a posterior eliminação dos ruídos exteriores, José Mário Branco defende que “a envolvência – a luz, os cheiros, as reacções do público – não é mediatizável”. “Agi como um encenador”, diz, “como uma pessoa que vê e sente o espectáculo antes dos outros. Peguei no som, levei-o para casa numa caixinha de plástico, como se fosse uma bolacha, meti-o na minha aparelhagem doméstica e comecei a ouvir, nas mais diversas circunstâncias. Achei que pôr os aplausos seria um factor dispersivo, desviando do essencial que é a interpretação.” José Mário Branco conta, inclusive, que pediu previamente ao público para “ao contrário do que acontece nas casas de fado”, não aplaudir no fim”. “Fazia um sinal. No fim dos fados tinha um braço levantado, deixava a ressonância dos últimos acordes. Só quando baixava o braço é que podiam aplaudir. Foi uma ‘violência’ para o público, houve até pessoas que reagiram desagradadas, achando uma chatice não poder ser como é costume. Curiosamente, isto provocou um aumento dos aplausos, motivado pela tensão criada pelo intervalo de espera.”
Camané, por seu lado, não sentiu qualquer dificuldade em se integrar nesta situação, paredes-meias entre o natural e o artifício. “Foram quatro noites em que se foi criando um ambiente. Às tantas, já quase me esquecera que estava a gravar.” Quatro noites, ao longo das quais foram sendo efectuados vários “takes” do mesmo fado, seleccionando-se aqueles considerados melhores. Uma selecção que inclui, entre as diversas autorias, dos textos e da música, os nomes de Frederico de Brito, Luís de Camões, Carlos Mendes, João Fezas Vital, Joaquim Campos, Ruy Belo, Miguel Ramos, Vasco de Lima Couto, Aldina Duarte (mulher de Camané), Gabriel de Oliveira, Fernando Farinha, Paulo de Carvalho, Manuela de Freitas e o próprio José Mário Branco.
Para Camané, esta “noite de fados” poderá significar fazer chegar mais longe o seu fado. Como ele canta, nas palavras de Manuela de Freitas: “O fado que vou vivendo/no canto e no gesto mudo/é tudo o que não entendo/que me faz entender tudo.”
“Uma Noite de Fados” tem prevista uma forma original de promoção. Durante duas noites, ainda sem data marcada, Camané circulará por alguns dos lugares típicos – outros nem tanto – do fado, como a Tertúlia, Senhor Vinho, Frágil, Os Ferreiras, Taverna do Embuçado e o clube de fado S. João da Praça, havendo ainda a hipótese de uma escapada até ao Teatro da Comuna, para cantar durante o intervalo da sessão.
20.02.1998
Camané Lança Segundo Álbum
Na Linha Do Fado
“O Fado retrata a vida como ela é, de uma forma muito profunda”. Por isso, “Na Linha da Vida”, segundo álbum do fadista, é o mesmo que dizer “na linha do fado”.
“Na Linha da Vida” sucede a “Uma Noite de Fado” na carreira de
Camané, um jovem fadista que faz do fado profissão de fé. Fados tradicionais, composições de José Mário Branco, José Luis Gordo, João Fereira-Rosa e textos de Fernando Pessoa, Antero de Quental e Manuela de Freitas contribuem para a renovação de um género, com “espírito” e “sabor” próprios que vivem da “comunicação” e da “interpretação”.
FM – O que fez no intervalo de dois anos entre o disco novo e o antigo?
CAMANÉ – Canto no Senhor Vinho. Entretanto, tenho feito espectáculos, no país e no estrangeiro, em festivais de música como o de Granada, na Holanda, em França, em Vigo…
FM – Prefere cantar numa casa de fado ou num desses espectáculos de maiores dimensões?
CAMANÉ – É muito importante cantar-se o fado numa casa de fados. Há coisas que aprendo nos espectáculos, mas continuo a preferir as casas de fado. No fado não há escola; então, nas casas de fado, como tenho oportunidade de cantar lá quase todos os dias, vou descobrindo aspectos novos na forma de cantar.
FM – À semelhança do que aconteceu com o anterior “Uma Noite de Fado”, a produção volta a estar a cargo de José Mário Branco.
CAMANÉ – Ele é uma pessoa muito musical que sabe separar muito bem as coisas. E sabe também que o fado é uma música espiritual. Uma maneira diferente de estar na música.
FM – Um dos temas, “Sopram Ventos Adversos”, da autoria de José Mário Branco e Manuela de Freitas, tem uma sonoridade diferente do todos os outros. É quase new age…
CAMANÉ – Aí gostei muito da letra, como já tinha gostado de ouvir o tema no disco do José Mário, o “Ser Solidário”. Para o meu disco o José Mário fez um arranjo diferente para guitarra, viola e contrabaixo. Não é fado mas canto como se fosse, com a inha maneira normal de entoar.
FM – E o que é ser fadista?
CAMANÉ – É uma maneira diferente de cantar a vida, a vida portuguesa. Não é uma coisa racional. Nunca me consegui sentir bem noutro tipo de música. O fado é a música que interiorizei desde miúdo, desde o s dez anos. Conheço todos os fados tradicionais que existem, às vezes não me lembro dos nomes, mas basta dizerem-me a primeira frase para me vir a música. Estão cá dentro. Não me reconheço em mais lugar nenhum a não ser no fado.
FM – Quis dizer alguma coisa quando escolheu para título do disco “Na Linha da Vida”?
CAMANÉ – Este título surge na sequência de uma série de espectáculos que tinha feito no Inatel. “Na Linha da Vida” é “nalinha do fado”.
FM – Linha da vida é também, na quiromancia, a linha do destino… Acredita na fatalidade?
CAMANÉ – Acho que o destino somos nós que o fazemos diariamente, a forma como a gente vive no dia-a-dia, que se pode reflectir no futuro.
FM – É uma pessoa triste?
CAMANÉ – Sou uma pessoa normal, nem muito triste nem muito alegre. Aliás, ou sou muito triste, ou sou muito alegre! O fado é falarmos da tristeza de uma forma que nos emociona. Aprendemos com isso: falar das coisas tristes é uma maneira de as deitar cá para fora, de exorcizá-las. É uma maneira de as pessoas crescerem.
FM – Nos tempos que correm, acha que o fado é uma música que toca nas gerações mais novas?
CAMANÉ – Nas casas de fado onde canto vai muita gente nova. Muitas vezes só para curtir… Mas são as pessoas que há. Não tenho muitas ilusões quanto a isso. É o sítio onde é necessário haver gente nova a cantar, é mesmo o único sítio onde as pessoas novas podem começar a cantar fado. Mas sinto muitas vezes é que o fado deixou de fazer parte da vida das pessoas, as pessoas já nõ crescem com essa vontade, têm outras energias e se calhar querem ouvir outro tipo de música.
FM – Acha que um fadista como o Paulo Bragança segue pelo caminho certo, no sentido de levar o fado às gerações mais novas?
CAMANÉ – O fado tem um espírito, um sabor que não se pode perder. Toda a emoção do fado é de dentro para for a. A maneira de cantar do Paulo para mim é fado. Tem a voz e a alma de um fadista.
FM – Fala-se na crise do fado. Não será melhor falar de uma crise de fadistas?
CAMANÉ – Sim, não há fado sem fadistas. O fado vive da comunicação, da interpretação, da capacidade criativa das pessoas que o cantam. Há várias opções musicais quando se quer meter um texto numa melodia de fado; interessa é escolher o melhor caminho com coerência e com alma.
FM – Qual é o seu caminho?
CAMANÉ – Escolher a partir da musicalidade das palavras, que são mais importantes do que tudo, mais importantes do que eu a cantar. É um processo que às vezes demora muito tempo. Os poemas da Manuela de Freitas, neste disco, são uma coisa complicada, dexcobrir o que é que liga e o que não liga. Interessa é que seja um processo natural. Não vou forçar as palavras numa música. Todo este disco já tinha sido cantado várias vezes nas casas de fado, embora talvez não tantas como eu gostaria, porque estive afastado delas durante algum tempo. Os fados que estão aqui gravados hoje já não os canto da mesma maneira.