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sábado, 10 Maio 2003
A liberdade que David S. Ware recria hoje por via da obra de Sonny Rollins é a mesma liberdade que 30 anos antes se espraiava pelas formações de “free music” europeias, agora recuperadas pela Unheard Music Series.
Música livre, música viva
DAVID S. WARE QUARTET
Freedom Suite
Aum Fidelity
8|10
DANIEL CARTER & REUBEN RADDING
Luminescence
Aum Fidelity
8|10
ALEXANDER VON SLIPPENBACH
The Living Music
Unheard Music Series
9|10
FRED VAN HOVE
Complete Vogel Recordings
2xCD Unheard Music Series
8|10
MANERI ENSEMBLE
Going to Church
Aum Fidelity
7|10
MANFRED SCHOOF
European Echoes
Unheard Music Series
9|10
BRÖTZMANN, VAN HOVE, BENNINK
Balls
Unheard Music Series
8|10
SUN RA & HIS ARKESTRA
Music from Tomorrow’s World
Unheard Music Series
7|10
Todos distri. Ananana
David S. Ware lança-se na “Freedom Suite” de Sonny Rollins, repetindo o que Branford Marsalis já fizera, ao incluir a mesma peça em “Footsteps of Our Fathers”, à qual, juntara, aliás, o “Love Supreme” de Coltrane. Rollins e Coltrane, dois músicos para quem os conceitos de composição e improvisação se confundiam na plasticidade de um discurso sempre renovado. Ware, provavelmente o mais coltraniano dos tenoristas da nova geração, entrega-se à tarefa “rollinsoniana” (ele que já recriara, deste compositor, “East Broadway Run Down”) com uma paixão que chega a ser avassaladora. Acompanham-no o habitual quarteto formado por Matthew Shipp (piano), William Parker (baixo) e Guillermo E. Brown (bateria), imprimindo em conjunto um sentido ascensional a uma obra que em Rollins se desenrola à luz de um sentido lúdico e de uma liberdade mais “horizontal”. Sem atingir os paroxismos de espiritualidade de “Godspellized”, esta “Freedom Suite” confirma, ainda assim, Ware como um dos expoentes do jazz contemporâneo.
Matthew Shipp é um dos participantes em “Going to Church”, do Maneri Ensemble, do pai, Joe (clarinete, saxofones alto e tenor) e do filho, Mat (viola de arco), numa formação que integra ainda Roy Campbell (trompete), Barre Phillips (baixo) e Randy Peterson (bateria). Álbum de devoção (à liberdade de improvisação), é composto por três únicos temas, dos quais se destaca “Blood and body”, 31 minutos de desmantelamento harmónico e melódico pautado pelos diálogos entre pai e filho, sob a supervisão do piano de Shipp e a intromissão de “drones”, gritos, entropia rítmica e sessões de catarse.
Na mesma editora, uma estimulante surpresa: “Luminescence”, de Daniel Carter (saxofone alto) e Reuben Radding (contrabaixo). Forçado pelas circunstâncias a limitar-se ao sax alto, Daniel Carter (o saxofonista, parceiro de projetos de “neo free” como Other Dimensions in Music Test, toca uma parafernália de sopros, mas o atentado de 11 de Setembro impediu que os transportasse a todos nos porões do avião…) concentra-se na exploração conjunta com o contrabaixo telúrico de Radding (amiúde tocado com arco) de microuniversos concentracionários como “Ancestral voyage-mystery suceed” e de um “free” de baixas e íntimas frequências, cruzadas pelo “hard” e pelos “blues” (“Refracted light and grace”, “Vignettes”) com o recurso a uma depuração de meios que, por vezes, lembra Joe McPhee, embora Carter faça questão de manter intactas e “redondas” as suas estruturas, feitas, como se diz no tema de fecho, de “Occurrences, places, entities and the sea”.
Sons da Europa livre
Recuemos ao passado, até ao período de transição dos anos 60 para os 70. Na Europa fervilhava uma música libertária que adaptava o manifesto “free” dos negros americanos às idiossincrasias da música contemporânea, do serialismo e da improvisação sobre moldes “folk”, clássicos, etc. No mais recente pacote de reedições da Unheard Music Series/Atavistic, compiladas pelo escritor, jornalista e músico John Corbett, a partir de arquivos da FMP (Free Music Productions), encontram-se raridades e entidades mutantes do novo jazz que então se produzia longe das margens do “mainstream”, álbuns feéricos, deslumbrantes, desconcertantes ou desopilantes, tão representativos como ignorados, deste intenso período de atividade do jazz europeu.
“European Echoes” é um “monstro” gravado em 1969 por um coletivo de 16 elementos liderados pelo trompetista alemão Manfred Schoof, que aglutinava uma série de pequenos combos onde estavam presentes, entre outros, Enrico Rava, Peter Brötzmann, Gerd Dudek, Evan Parker, Paul Rutherford, Derek Bailey, Fred van Hove, Alexander von Slippenbach, Ireen Schweizer, Peter Kowald, Han Bennink e Pierre Favre, a nata da música improvisada de então. A sessão, aproveitando a convergência musical, mas sobretudo ideológica, que unia todos estes músicos, teve como base uma sessão radiofónica em Bremen. Três pianistas, três baixistas, três trompetistas, três saxofonistas, dois bateristas unidos na criação de um magma explosivo de ideias, o fragor e a excitação do “free” tornado palco de batalha, mas também lugar de exteriorização de uma energia sem limites. Não convém estar no meio quando os pianos de Slippenbach, Van Hove e Schweizer partem a louça e as convenções, nem quando Han Bennink e Pierre Favre juntam forças para fazer deflagrar os seus torpedos e granadas. Seria como ser-se esmagado por placas tectónicas.
No mesmo ano, alguns destes músicos voltariam a reunir-se em “The Living Music”, num grupo mais reduzido, desta feita sob a liderança de Alexander von Slippenbach, estando presentes, além do mentor da Globe Unity Orchestra, Peter Brötzmann, Paul Rutherford, Han Bennink e J. B.Niebergall, participando pela primeira vez Michel Pilz, no clarinete baixo e saxofone barítono. A gravação decorreu sob a égide do engenheiro de som alemão Conny Plank, responsável nos anos 70 por inúmeros álbuns importantes do “krautrock”. E sente-se a sua mão.
Se “European Echoes” é um vulcão em atividade, “The Living Music” é “free music” com assento na eletro-acústica mais sofisticada e segundo a mesma conceção de som “cósmico”, ou espacial, que marca inconfundivelmente toda a produção de Conny Plank (convém esclarecer que, na Alemanha, o “krautrock” rondou de perto, neste período, o jazz. Wolfgang Dauner cortejou a música eletrónica e o rock progressivo, Jaki Liebezeit, baterista dos Can, integrou a Globe Unity Orchestra, Mani Neumeier, baterista dos Guru Guru fez parte de várias formações de “free jazz”…). As percussões e o piano ganham dimensões extra, abrindo novas hipóteses de exploração interna. Vislumbra-se o gozo da revisitação aos primórdios do “free”, em “Into the staggerin”, mas o que de facto permanece como absolutamente atuante e atual é a extrema vitalidade e organicidade desta música, que ousou, mais do que romper a tradição, revolvê-la e introduzir nas suas entranhas novos enxertos e sementes.
Em “Balls” (1970) já só encontramos Peter Brötzmann e o seu tenor embruxado, Fred van Hove, e as suas marionetas de piano, e Han Bennink, fabricante de percussões ilimitadas. Dois temas extra, “Untitled 1” e “2”, foram acrescentados ao alinhamento original do que foi a primeira gravação oficial do trio. Brötzmann é de uma fisicalidade extrema, levando a estética do grito contínuo ao esgotamento e, finalmente, ao silêncio. Fred van Hove dá uma amostra da heterodoxia que pauta o seu discurso pianístico, Bennink inventa ritmos como uma criança que constantemente troca de brinquedo. Quem tem “balls” que apare os golpes desta música lançada como facas aos que a ela se encostam como simples figurantes.
Posto à venda originalmente em edição limitada, “Complete Vogel Recordings” reúne as duas gravações efetuadas pelo pianista belga Fred van Hove entre 1972 e 1974, para o selo Vogel: “Live at the University”, piano solo registado nas universidades de Bruxelas e Antuérpia, e “Een Tweede Vogel”, em duo e em estúdio com o saxofonista tenor Cel Overberghe, mais um 45 rotações raro. A solo, Fred van Hove vai dos delírios mais livres ao “ragtime”, da balada e da marcha funerária ao exibicionismo, ao romantismo traficado e ao teatro burlesco, sem esquecer o ricochete de bolas de pingue-pongue nas cordas do piano. Já os duetos com o saxofonista vão do “free” e do exercício de escalas (num irónico “Bas la police”) até “New Orleans”. Em “Alle eendjes”, Van Hove troca o piano pelo órgão Hammond, enquanto no tema seguinte, introduzido por um excerto
de música concreta, é a vez de
Overberghe trocar, graças ao
“overdubbing”, o saxofone pelo
baixo e pela bateria.
Aproximemo-nos, por fim, do outro mundo, com “Music from Tomorrow’s World”, de Sun Ra e da sua Arkestra, captado ao vivo em 1960 na Wonder Inn de Chicago e, em estúdio, num obscuro The Majestic Hall. Infelizmente, o som ao vivo é pavoroso, o que faz diminuir um pouco o prazer de acompanhar as sessões quase clandestinas realizadas de madrugada pela Arkestra, ao longo de um ano de residência, entre mesas apinhadas e as paredes apertadas de uma taberna. Por lá passaram, como assistentes e participantes, Roland Kirk e Stan Getz (John Coltrane também quis, mas, reza a lenda, o porteiro ou quaisquer outras razões misteriosas não terão permitido a sua entrada…). Lá dentro, o som de uma festa. A Arkestra a tocar uma música primitiva, swing, batuques, cânticos de “music hall”, ritmos e flautas infantis (“Spontaneous simplicity” poderia pertencer a Raymond Scott) e fanfarra (Roscoe Mitchell e Joseph Jarman assistiram igualmente a estas sessões, aprendendo com elas muito do que viriam a pôr em prática nos Art Ensemble of Chicago), aos poucos fazendo coincidir “primitivo” com “ancestral”, levando os sons da selva para o desconhecido ou para a música de salão, nas várias versões de “Majestic”. Música de magos. Em mangas de camisa.