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Bob Dylan – “Mudam-se Os Ventos, Mudam-se As Vontades” (televisão)

rádio e televisão >> terça-feira, 19.01.1993

DESTAQUE


Mudam-se Os Ventos, Mudam-se As Vontades



O HOMEM é um mito. Símbolo de uma América marginal nada e criada no pacifismo “hippie” dos anos 60. Bob Dylan fez da palavra a sua arma, numa época em que a mensagem valia acima de tudo. O maior poeta do rock. Um génio. Desafina. Um traidor e um vendido que canta uma coisa e faz outra. De tudo já chamaram a Robert Allen Zimmerman, a quem, por comodidade de escrita, passaremos a chamar Bob Dylan. Ele esteve-se sempre nas tintas para o que lhe chamaram. Chamem-lhe Fred ou “acabado” que ele prosseguirá imperturbável o seu caminho. Há poucos meses, espantou meio mundo com um novo álbum onde interpreta em exclusivo temas tradicionais, apoiado numa guitarra acústica, na voz nasalada e na harmónica de sempre.
É esta figura lendária, este gigante da música popular, enfim, alguém cuja música não aprecio especialmente mas a quem reconheço um certo estatuto, que alguns colegas, da sua e de gerações mais novas, homenagearam num espectáculo realizado a 16 de Outubro do ano passado, no também mítico Madison Square Garden. Que ao mesmo tempo serviu para celebrar 30 anos de gravações do músico na editora Columbia.
Entre os homenageantes figuravam algumas “trutas” do “AOR” (“adult orientated rock”), que é uma maneira airosa de definir quem se habituou a descansar sobre o colchão dos tops (Willie Nelson, Eric Clapton, George Harrison, Tom Petty), mas também um “outsider” que, pelo contrário, jamais se acomodou ao que quer que fosse (Neil Young) e ainda uma cantora careca que errou na profissão (Sinead O’Connor). Esta última, protagonista do célebre episódio de acusação ao Papa, teve honras de receber, em pleno concerto, uma vaia monumental de desaprovação, deixando no ar a suspeita de a audiência ser na maioria constituída por elementos do Vaticano. Dylan, conta quem esteve lá (e esperemos que a RTP mostre o episódio), não terá pronunciado uma palavra de apoio ou de conforto à rapariga, que se desfez em lágrimas. O que, por seu lado, vem mostrar até que ponto o outrora “cantor de protesto”, autor de “Blowin’ in the wind”, se encontra ligado aos meios eclesiásticos.
O velho Bob esqueceu-se por certo de uma digressão que efectuou em 1966, quando o público reagiu mal a uma alteração de estilo do cantor, mimoseando-o com assobiadelas monstruosas e objectos atirados para o palco. “The times they are changin’”, é verdade. Mudam-se os ventos, mudam-se as vontades, e o espectáculo, em ambos os casos, teve de continuar.
Espectáculo que a RTP dividiu em três partes, completando-se a série, em princípio, a 26 de Janeiro e 2 de Fevereiro. Com todos os matadores.
Canal 2, às 00h35

Vários – “‘Guitar Legends’ Terminou Ontem, Em Sevilha – Guitarrossauros Excelentíssimos”

Secção Cultura Domingo, 20.10.1991

“Guitar Legends” Terminou Ontem, Em Sevilha
Guitarrossauros Excelentíssimos

“Rock” sem guitarra eléctrica não é “roll”, é conversa mole. Em Sevilha, durante cinco noites, a guitarra consagrou os seus heróis. A “velha guarda” uniu esforços e trocou de posições: Bob Dylan, Keith Richards, Phil Manzanera e Richard Thompson formaram uma das várias superbandas de ocasião que entraram directamente para a lenda. A CRGE – Companhia Reunida de Guitarras Electrificadas – deu festival. A todo o gás.



Sevilha está em festa. Não é caso para menos. A Expo 92 está à porta. O “Nuevo Sur” prepara-se para ser o centro do mundo. A música antecipou-se. Logo a seguir a estas “Guitar Legends” anunciam-se já os terceiros Encontros de “Nueva Musica” com nomes como Luis Paniagua, Cassandra Wilson, Markus Stockhausen, Klaus Schulze e Bill Frisell em cartaz. Mas por agora a rainha é a guitarra. No anfiteatro ultramoderno construído na ilha de La Cartuja, em pleno recinto da Expo 92.
Quinta-feira: Tempo de chegar ao hotel e de ligar a TVE 2, para assistir em diferido ao concerto da noite. Vicente Amigo, o novo menino-prodígio do flamenco, mal aquece as cordas da guitarra. Toca só dois temas mas dá para perceber que Paco e Manitas têm continuador à altura.
Joe Cocker, o vocalista convidado, continua a gesticular e a berrar como só ele sabe. Insiste em recusar os rebuçados “Dr. Baiard” só para manter a rouquidão da voz. Jack Bruce, por seu lado, faz reviver o fantasma dos “Cream”, com “White Room”, de parceria com Phil Manzanera (ex-“Roxy Music” e principal dinamizador deste festival).
Bob Dylan junta-se aos dois. Depois é a vez de Richard Thompson (dos lendários “Fairport Convention”) integrar esta “troupe” de génios, para aprestação conjunta de “All Along the Watchtower”.
Dylan cada vez mais canta com o nariz. Felizmente não está constipado. Mas quem se importa com a voz? Basta o velho trovador levar a harmónica aos lábios para que todas as interrogações sejam levadas pelo vento… Em todo o caso talvez não fosse má ideia mudar outra vez o nome para Zimmerman. É salvo à justa pela chegada de Keith Richards. Não tocavam juntos há anos. Keith Richards está com bom aspecto, aparentando uns 80 anos ao contrário dos habituais 120. Interpretam “Shake, Rock & Roll”, de Bill Haley. Depois o Rolling Stone é deixado a sós com os “Rhythm and Blues” que tanto aprecia.
Em cada noite tem sempre sido assim: um carrossel de estrelas em “roulement”. Sai uma, entra outra, tocam juntas um par de temas. No final reúnem-se todas, fazem a festa e apanham os foguetes. Na ocasião são Dylan, Richards, Thompson e Manzanera irmanados no ritmo de Eddie Cochran, antes de se desligarem as guitarras.

O Regresso Dos Heróis
Sexta-feira arranca com Roger McGuinn e o “hit” do seu novo álbum “King of the Hill”. “Turn Turn Turn” e “8 Miles High” não fazem esquecer os Byrds mas aquecem razoavelmente o ambiente. Em cima, na “Braza Gallery”, destinada aos jornalistas, as brasas femininas não param de passear, assegurando deste modo a manutenção de temperaturas elevadas no recinto.
Roger McGuinn e Richard Thompson ligam bem. Provam-no o dueto emocionante de “Keep your Distance”. Richard Thompson, com o seu inseparável Bone, é um dos heróis do concerto. As cordas vocais e da guitarra vibram em consonância com a magia da noite. “This Guita ris howling” – exclama, como se homem e guitarra se confundissem num corpo único.
Quando Les Paul, o homem que teve a ideia de ligar a guitarra à tomada, entra em palco, o público salta das cadeiras e aplaude de pé, como se apanhasse um choque eléctrico. De facto, os efeitos da guitarra são ruídos provocados por problemas nos cabos eléctricos. Resolvida esta questão Les dá “show” com a sua “Gibbs Les Paul”, a tal guitarra cujo som corta suavemente, sem ferir, tal qual uma lâmina de barbear de qualidade. Mais tarde a célebre “Gibson Les Paul” viria substituir o modelo “Gibbs”, de sonoridade um tanto ou quanto cremosa para a agressividade do rock actual.
Renascido das cinzas dos “The Band”, Robbie Robertson traz de volta ao auditório a energia dos decibéis, apoiado por uma secção de metais e um par de vocalistas disfarçados de índios. Profusão de penas e cores a sugerir talvez a ave ridícula escolhida como símbolo para a Expo 92: um misto de palmípede e galináceo, pata-choca “punk” de crista e bico multicolores. Refira-se, em abono da verdade, que os sevilhanos adoram as cores. Sobretudo se estiverem todas juntas.

Macacos A Ver Televisão

Robbie Robertson faz de anfitrião do músico mais ansiado da noite: Roger Waters, que chega acompanhado pela sua banda particular. Esperava-se espectáculo e é isso que acontece, embora numa escala, mais reduzaida que a habitual. Um mini “The Wall”, sem muro, mas mesmo assim com os adereços possíveis na ocasião: explosões de fumo, holofotes marciais, piras ardentes (propaganda velada aos próximos Jogos Olímpicos de Barcelona?), luzes às bolinhas, muito “exploding plastic inevitable”.
“Another Brick in the Wall, pt. 823” provoca o delírio, antes de “What God wants, God gets”, uma canção nova sobre “Macacos que vêem televisão”. Como neste caso não há adereços, o músico sugere que a assistência faça o papel de símios que ele, Waters, fará de televisão.
Entre as duas ofensas, é difícil distinguir a pior. De qualquer modo, dado que a assistência aceita a sugestão, é de crer que Roger Waters seja o “God” de que fala a canção. No final, uma fífia de uma das meninas do coro vem provar que afinal “God wants” mas nem sempre “gets”, já os “Stones” o diziam: “You can’t always get what you want”.
A seguir à macacada, um tema dos “Pink Floyd” mais antigos, “The dark side of the moon”, por entre efeitos luminosos psicadélicos. Um dia destes o clube “UFO” reabre as portas… Já com Bruce Hornsby em palco e Waters envergando uma bata branca a fingir de médico, a despedida com “Comfortably Numb”. Despedida irónica que a assistência, uma vez mais, não compreende. Finalmente a “Jam session” da praxe: Roger MacGuinn, Richard Thompson, Les Paul e Phil Manzanera juntos numa guitarrada sempre “a abrir”, fechando em beleza mais uma noite de lenda.
Agora o mais grave: com o sucesso destas “Guitar Legends”, uma das acções de preparação da Expo 92, e os Jogos Olímpicos de Barcelona e a Expo 92 já para o ano, Portugal vai ser irradiado do mapa. O melhor é metermos a viola no saco e, visto que há sempre um Portugal desconhecido que espera por nós, fugirmos todos para a Galiza. Valha-nos Rui Veloso e o fado.

Bob Dylan – “Dylan Imparável” (reedições)

Pop-Rock 06.03.1991 – REEDIÇÕES


DYLAN IMPARÁVEL
LUÍS MAIO

(introdução)



No próximo dia 21 de Maio, Bob Dylan cumpre 50 anos de vida e completa também 30 anos de carreira discográfica na Columbia. Para comemorar o duplo aniversário, Dylan iniciou no mês passado uma pequena digressão europeia, que se admite vir a passar por Lisboa. As celebrações incluem a reedição completa da discografia, mas o seu ponto mais alto deverá ser a edição de uma colecção de títulos inéditos de nome: “The Bootleg Series, volumes 1-3”, subintitulada “Rare And Unreleased 1961-1991”.
Esta em princípio agendada para meados do próximo mês e em vinil inclui cinco LP, enquanto são três volumes em cassete ou em compacto, em qualquer dos casos incluindo um libreto de 58 páginas anotado pelo próprio Dylan e exibindo fotos inéditas do artista. As caixas serão antecedidas, em Março, do single “Series Of Dreams”, tema agora recuperado das sessões de gravação do álbum “Oh Mercy”, onde não chegou a ser incluído.
O single é simultaneamente o tema que encerra a compilação deste Dylan “desconhecido”, que corre ao longo de 230 minutos. O material incluído divide-se em quatro gavetas: meia dúzia de faixas gravadas ao vivo, quatro maquetas gravadas em casa, um par de versões acústicas de temas que, originalmente, eram electroacústicos e mais de 40 gravações alternativas de canções que constam da discografia conhecida. Registe-se ainda a curiosidade da NASA ter planeado uma edição promocional de três mil exemplares para as “Bootleg Series”, num novo material para caixas de CD chamado Nextel, edição essa que inclui mais um disco com cinco temas e libreto alternativo.
Tudo isto não é tão evidente, quando este mês se procede à completa reedição da discografia de Dylan, e a caixa, tanto quanto se percebe, é principalmente constituída pelas mesmas canções que esse lote. Mas também não é normal começar a comemorar um cinquentenário na estrada três meses antes ou o que quer que seja, pelo que o artista continua a ser notícia. Mas vamos por partes, a começar pela parcela da discografia que já chegou até nós.

A REEDIÇÃO ATÉ AQUI
FERNANDO MAGALHÃES

(daqui para baixo)

“Self-portrait”, duplo, 1970
Discos de retorno ao naturalismo, da fase “pura” do compositor. Clássicos, como “Days of 49” e “Like a Rolling Stone”, e versões de temas de Paul Simon, Gordon Lightfoot e Everly Brothers. Uma lista infinita de convidados, que incluía os amigos The Band e Al Kooper. Na época, os críticos falaram em “desperdício de talento” e argumentaram que o duplo álbum nunca deveria ter passado de simples, mas nem por isso ele deixou de alcançar o primeiro lugar nos tops ingleses. Dylan considerou-o o seu próprio disco-pirata, numa altura em que os “bootlegs” das suas actuações mais inflamadas se vendiam a preço de ouro no mercado alternativo.

“New Morning”, 1970
Considerado um ensaio de regresso à grande forma, uns magros seis meses depois do decepcionante “auto-retrato”. Era uma primeira fase de reconhecimento e de novas honrarias, de breve reconciliação com a crítica. Recapitulação de todos os géneros que previamente ajudaram a fazer a sua música: a “country” (“Winterlude”), os “blues” (“If Dogs Run Free”), os espirituais negros (“Signo n the Window”), os “rhythm’n’blues” (“One more Weekend”), o “gospel” (“Three Angels”). Iluminações que ficaram para a história como as eloquentes do seu período de recato.

“Pat Garrett And Billy The Kid”, banda sonora, 1973
Terceira incursão no mundo do cinema, após o documentário “Don’t Look Back” que registava a sua digressão inglesa, com Joan Baez e “Eat the Document”, telefime que viria a ser rejeitado pela cadeia americana ABC. Não apenas como actor secundário, num papel especialmente criado para ele, mas como autor da banda sonora do “western” de Sam Peckinpah. Dele faz parte o hino “Knockin’ on Heaven’s Door”, entoado por toda uma geração nostálgica de anteriores vivências “on the road”. Convidados especiais: Roger McGuinn, dos Byrds, e Booker T.

“Dylan (A Fool Such As I)”, 1973
Colecção de misturas alternativas e versões rejeitadas de “self-portrait”. Um expediente para satisfazer uma procura que Dylan uma vez mais frustrava, passando desta feita os primeiros anos da década de 70 num silêncio só interrompido pela chamada de George Harrison ao concerto para o Bangladesh, em 1971.

“Blood On The Tracks”, 1974
Amores falhados, divórcio, confusão, parece que tiveram um efeito benéfico sobre Dylan, que investiu ainda em maior profundidade nas palavras, como forma de exorcizar fantasmas. Há quem compare a qualidade destes poemas a “Blonde On Blonde” e “John Wesley Harding”. Álbum de ambientes folk, concedendo o espaço que é preciso à guitarra acústica e à respiração pausada dos poemas. Dylan canta aqui o amor e as cicatrizes que este deixa quando seca. Também um adeus como vido aos dias dourados dos “sixties”, quando havia “música, à noite, nos cafés, e revolução no ar” e o espanto diante daqueles que estão para vir.

“Saved”, 1980
Convertido ao cristianismo depois do álbum do ano anterior, “Slow Train Coming”, Dylan não deve ter convencido ninguém com esta sua (auto-)salvação. O segundo disco do “novo cristão” não vendeu – foi, aliás, o maior fracasso comercial da sua carreira. Três anos mais tarde, em espectacular golpe de rins religioso, reconsiderou e regressou às antigas crenças de judeu convicto. Na época de “Saved”, porém, Dylan chegou ao ponto de recusar tocar ao vivo canções do período “pré-cristão”. Na capa interior cita-se Jeremias, capítulo 31. Os putos queriam era rock.

“Real Live”, 1984
Gravado ao vivo. Pouco importante quando comparado a “Live At The Budokan” ou “Before The Flood”. Versões de “Highway 61 Revisited”, “Tangled Up In Blue” e “Masters of War”. Guitarristas ilustres: Mick Taylor, dos Rolling Stones, e Carlos Santana (em “Tombstone Blues”). Dylan tinha já entrado no sistema da digressão permanente, alternando as velhas glórias com as novas insignificâncias.

“Empire Burlesque”, 1985
Rendição à modernidade. Depois de Mark Knopfler e antes de Dave Stewart e Daniel Lanois, a produção foi aqui confiada a Arthur Baker. Ainda a presença dos “sabidões” Sly Dunbar e Robbie Shakespeare e de membros da banda de Tom Petty, os Heartbreakers. Dylan procura, desde os finais dos anos 70, ser ele mesmo, inspirando-se na luz de sumidades posteriores. E com Baker as coisas funcionaram ao ponto de este álbum ter sido o seu maior sucesso comercial da década de 80. Não obstou, porém, a que se multiplicassem as histórias que desancavam o mito. O que também não impede que Dylan continue a gravar e tocar ao vivo. Vive num universo fechado e de difícil acesso. É um eremita em digressão permanente pelos estádios do mundo, esse género de paradoxo.