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5 Dezembro 2003
BERNARDO DEVLIN
Circa 1999 – 9 Implosões
Ed. e distri. Extremocidente
8|10
Devlin é um músico estranho, habitante de constelações geladas e com os olhos demasiadamente abertos para a noite. “Circa 1999” faz em absoluto jus ao complemento “Nove implosões”. A voz deste antigo elemento dos Osso Exótico situa-se algures entre o romantismo sombrio de Scott Walker e o tom operático de Peter Hammill, neste caso num registo próximo do de “The Fall of the House of Usher”. Entre a declamação, o lamento e a litania, Devlin fala da “Hora morta e outros segundos”, “À altura dos olhos” e de um “Novo alvor”, segundo uma gramática de secretas cifras interiores na qual “olhos” e “luz” são termos recorrentes. É dessa visão, alucinada (mas não é a alucinação a visão do invisível?) que nos fala e que nos esconde, sobre impenetráveis paisagens electrónicas que devem tanto à música industrial como à toca sem entrada nem saída de “Tilt”. Não é psicadelismo, porque a evasão onírica não é permitida, antes o desvario de poder de uma estranha cerimónia de sado-maso astral, em que a música – pianos tumulares, saxofones febris e eletrónica fabril, percussões dos abismos, naipes de cordas fúnebres – determina o mais pequeno gesto na encenação desta paixão infernal em forma de estátua.
Bernardo Devlin pertenceu aos Osso Exótico, uma banda estranha. A certa altura, resolveu sair – “por razões pessoais e estéticas”. Resolveu seguir carreira a solo e vai começar com um disco, “World Freehold”, que sairá com o selo Ananana, à semelhança do que já acontecera com trabalhos dos Telectu, “Off/Belzebu”, e de Carlos Zíngaro, “Musiques de Scène”, e acontecerá nos tempos mais próximos com Rafael Toral e “Sound Mind Sound Body”.
“World Freehold” tem quatro faixas longas: “World Freehold”, “The mystery od mirrors”, “World rearviewed” (improvisação instrumental) e “Season”, e nele participam, além de Bernardo Devlin, no canto, percussões, órgão, sintetizador e, num tema, violoncelo, o saxofonista Olivier Vogt, que também toca clarinete e percussões e já antes colaborara no segundo álbum dos Osso Exótico.
Diferente dos Osso Exótico? Bernardo Devlin diz que sim. Embora também diga que se “limita a prosseguir” algo que já começara na banda – um “elo” com ideias “que já tinha antes”. Ideias que passam pela “justaposição entre um ideal próprio, naturalmente indizível, e a estrutura de canção, embora não de formato tradicional”.
Os Osso Exótico pertenciam, pelo menos no primeiro álbum, à família dos que faziam a chamada música ritual-industrial. Bernardo Devlin acompanha a música de grupos como Current 93, Coil ou Einstuerzende Neubauten. Mas diz que “a única relação que possa haver” entre a música destes nomes e a sua é o facto de todos eles terem evoluído de um experimentalismo radical para o tal formato de canção. “Nunca me identifiquei com nada disso”, diz, “embora perceba perfeitamente que as pessoas fizessem a ligação com a chamada música industrial, em relação ao primeiro disco do grupo”.
“World Freehold” é um título bastante enigmático. Bernardo Devlin concorda, embora ressalvando que é “enigmático mas não no aspecto Crowliano [Aleister Crowley, célebre mago negro] em que estão os Current 93, os Coil e companhia”. Tem mais a ver com uma utopia”, explica, “o inglês tem palavras fantásticas. ‘Freehold’ é uma das que não existe em português, embora exista a tradução ‘propriedade livre e alodial’, sem encargos. Tem, sem dúvida, que ver com a utopia”.
Para Bernardo Devlin, “o espaço para alguma música que aconteça que não seja ‘mainstream’, música patética, existe”. Prova-o a simples existência dos Osso Exótico e o facto de já estar a trabalhar no seu próximo trabalho em disco, além de pretender levar as suas canções ao palco, incluindo as de “World Freehold”, “rearranjadas de forma a ser possível tocá-las ao vivo”.
Nas nove implosões de “Circa 1999”, Bernardo Devlin pinta telas da mente para observar com a luz baixa. Quem já ouviu “Tilt”, de Scott Walker, deve munir-se da mesma lanterna.
“Circa 1999 (9 implosões)” é um disco estranho. O seu autor, Bernardo Devlin, antigo elemento dos Osso Exótico, não lhe fica atrás. “Circa 1999” é o seu terceiro trabalho a solo, depois de “World Freehold” e “Albedo”. A capa é prateada, como um espelho, e o livrete inclui um caderno de folhas coloridas, sem qualquer texto – as cores, explica Devlin, correspondem a estados de espírito, a sua sequência aludindo è estrutura completa do disco.
A música é uma tapeçaria densa de texturas electrónicas e elementos acústicos que contaram com a participação dos convidados José Ernesto Rodrigues (violino), Nuno Leão e Pedro Lourenço (guitarras adaptadas), Luís Filipe Valentim (piano), Luísa Gonçalves (sintetizador), Miguel Sintra (percussão), Oliver Vogt (saxofone tenor), Damiano Tonegutti (oboé) e o quarteto de cordas Opus 4. Vítor Rua, dos Telectu, responsabilizou-se pelos arranjos e direcção de cordas. Soa a música de câmara de fantasmas (ou fantasias?), acentuada pelas vocalizações semi-declamadas de Devlin, de textos nalguns casos impenetráveis que falam de luzes, visões e paixões geladas. Do tempo e da comunicação/incomunicação com o outro. E com o espelho.
Olhos vítreos, cortados por uma tesoura, como no filme de Bunuel, em “Un Chien Andalou”. A luz das estrelas e da morgue. Do espaço sideral e de um quarto onde é impossível dormir. Um faroleiro aparece misteriosamente num dos temas… Como se fosse “A plague of lighthouse keepers”, “a praga dos faroleiros”, o épico de Peter Hammill, músico com quem Devlin mantém afinidades estticas. E “Tilt”, outra referência de “Circa”, do Scott Walker inatingível… Devlin fala “à altura dos olhos”, título de uma das canções de “Circa 1999”.
“Circa 1999” convoca as memórias desse ano, 1999, “em que a maioria das canções foram escritas” mas também marcado por “uma série de adversidades que tiveram de ser superadas”. As “nove implosões” do subtítulo indicam essa viagem para dentro. “O disco preenche um período de transição de uma atitude mais romântica, ou ultra-romântica, para um estado de espírito diferente, mais racional”.
Para Ouvir No Escuro
Mergulha-se na música de “Circa” como numa tina de mercúrio congelado. Os movimentos tornam-se difíceis, a bússola deixa de funcionar. “A diferença entre o exterior e o interior é muito ténue”. E pode ser “complicado entrar”, diz Devlin pausadamente, “muito complicado…”.
Resta ao ouvinte inventar as suas próprias histórias a partir das palavras do disco que a razão disseca, ou não, conforme o tipo de viagem que pretenda seguir. A cabeça encarregar-se-á de escolher o itinerário mais conveniente. “Gosto de dar espaço à interpretação”. Liberdade por vezes mais aparente do que real, pois “Circa 1999” esconde armadilhas e outros perigos. “Havia verdade na luz/ Quando me protegi/Operam marés na clausura/ Que do alto vi/ Foi impressão/ Ou algo acenou/ Em gesto tão real/ Se elevou/ Vigília/ De mundo de estátua/ E êxtases/ De visionários/ Em convixão/ Chama de mistérios/ Sem conversão”, canta em “Novo alvor”. “Visões” que, segundo o seu autor” não fazem necessariamente parte do quotidiano, fora do momento da grande interiorização”.
Devlin fala em “fornecer pistas” e em “referências”. Umas e outras são o que não faltam em “Circa 1999”. “A explicação é muito complicada. É mais como uma pessoa quando se lembra de um sonho… Quando se descreve um determinado sonho a alguém está-se a dar uma pista extremamente diminuta em relação à informação que estava contida no momento”. Pistas “verbais”, sem “princípio nem fim”. Num país, Portugal, onde “as pessoas estão pouco habituadas a ouvir canções que tenham um trabalho literário mais aprofundado”.
As canções de “Circa 1999” são como as cores. Dos vários tons de azul ao branco, com choque brusco com o negro e passagem ulterior para o castanho. Do céu para a terra. Símbolos de “um percurso cromático” – “quase um ‘travelling’ muito lento”, entre o claro e o escuro. Ou um “pôr-do-sol”, provavelmente o último antes do “novo alvor” de que fala a canção.
Scott Walker, Peter Hammill, Syd Barrett, Edward Ka’Spel, dos Legendary Pink Dots. Arautos da alucinação. Devlin conhece bem a sua obra. “Tilt” é uma referência, certamente, mas não o vou assumir como um álbum-modelo. Percebo a comparação mas, por outro lado, são coisas distintas, não há, de modo algum, qualquer tentativa de recriação da mesma atmosfera…”. Psicadelismo? Um dos temas de “Circa 19992 tem como título “Cirros”. Os Pink Floyd gravaram “Cirrus minor”. As nuvens. “não sabia, é fantástico! Os Floyd, do Syd Barrett, fizeram um disco fantástico, ‘The Piper at the Gates of Dawn’. “Hoje em dia já não consigo ficar deslumbrado pelo universo do rock e da pop, mas acredito que se for metido num saco, é nesse saco”. Hoje em dia, Bernardo Devlin prefere ouvir música clássica, “em casa, sozinho”. Rock, sobretudo, “em casa dos amigos”. Pere Ubu e Roxy Music, por exemplo, actualmente até “mais inspiradores” do que Peter Hammill ou Scott Walker.
Existe um lado mágico no disco. “O concretizar de algo faz parte de um processo de depuração extremamente pessoal. A energia é posta na concretização dos conceitos em causa. No decorrer desse trabalho há uma simbologia que se vai criando a ela própria”. As cores? “Também as cores. Mas não pretendo pintar a mesma tela repetidamente. Interessa-me fazer música que tenha vários níveis de escuta”.
“Circa 1999 (9 implosões)” é para se ouvir no escuro. Ou, no mínimo, “com as luzes baixas”. Na cabeça de Bernardo Devlin agitam-se já outros projectos: Um “no formato 5.1 [som “surround”], chamado ‘Agio’, de canções electrónicas e, em paralelo, um álbum duplo que se chamará “Vol.3: As Duas Antenas do Caracol”. Risos. Fica a garantia: “Estou mesmo a falar a sério…”