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The Chieftains + Barabàn – “Fecham Em Apoteose O Festival Intercéltico – Eram Os Deuses Irlandeses?” (festivais | concertos)

cultura >> segunda-feira, 05.04.1993


Chieftains Fecham Em Apoteose O Festival Intercéltico
Eram Os Deuses Irlandeses?


Os deuses eram de certeza irlandeses. E devem ter ensinado tudo o que sabiam das artes musicais aos Chieftains. A banda liderada por Paddy Moloney deu um espectáculo que perdurará na memória da cidade do Porto. Como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Pouca sorte para os Barabàn, que na primeira parte rubricaram uma actuação brilhante, das melhores entre todas as edições do festival. Mas os Chieftains abriram as portas do Olimpo.



Não vale a pena tentar descrever tudo o que se passou durante o espectáculo dos irlandeses Chieftains, no sábado à noite, terceiro e último dia do Festival Intercéltico, no Teatro Rivoli. Prestes a celebrarem o 30º ano de carreira, atingiram a perfeição. Festa, seriedade, religiosidade, humor ora desbragado, ora subtil, solos assombrosos, combinações instrumentais inusitadas, ritmo impressionante, histórias, anedotas, diálogos com o público e em circuito interno, mímica, música, mais música, música divina, irlandesa do espírito às tripas, música de copos, música da China, da Galiza, da América, combinaram-se na proporção exacta por forma a criar um ritual de magia e comunicação com o público. Até quando Paddy Moloney começou por se dirigir à assistência, que mais uma vez voltou a esgotar a lotação, num gaélico cerrado. Depois entrou-se no carrossel. No fim sobrou uma tontura, uma sensação de deslumbramento, de se ter assistido a algo que dificilmente se voltará a repetir, embora com os Chiftains nunca se saiba!
Em noite de mil prodígios, não houve outra solução senão a rendição. Perante um “Heartbreak Hotel” de ir às lágrimas ou da sucessão de “reels”, “jigs” e “hornpipes” acelerados, e ainda mais acelerados. Como é possível acelerar tanto e não perder o controlo da condução? De repente uma travagem em “souplesse”, cascata de harpa despenhando-se de um tema do mítico Turlough O’Carolan, por Derek Bell, que “ameaçou” abandonar o palco, despeitado por o seu companheiro o colocar atrás do harpista cego. Kevin O’Conneff em canto “a capella”, intimista ou num brinde efusivo ao pessoal dos copos em “Here’s to the company”, depois num gongo chinês (“os chineses eram celtas? É possível”, atirou de imediato Paddy Moloney), mestre do “bodhran”, mostrou por que razão se impôs como figura proeminente nos Chieftains. E Paddy Moloney, Sean Keáne e Matt Molloy, os magos das “uillean pipes”, violino e flauta, respectivamente. Dizer que tocaram como deuses não chega. Martin Fay, o segundo violinista, mais circunspecto, baluarte da vertente mais classicista do grupo, silenciou numa prestação de veludo de um tema de mestre ‘O Riada, incluído na banda sonora de “Barry Lyndon”.
Numa sequência absolutamente inacreditável de solos de todos os músicos, Paddy Moloney fingiu que se impacientava, olhou para o relógio, sem conseguir encetar o seu solo de “tin whistle”, meteu apartes delirantes e para cúmulo Derek Bell acabou ao piano em ritmo “ragtime”. A celebração incluiu ainda uma dançarina, Denise Flannery, loura e esbelta, de partir corações (a propósito, Derek Bell, com o seu ar de mestre escola engravatado, atirou-se a tudo o que vestia saias no Porto – um autêntico sátiro) e sabe-se lá que mais, que rodopiou pelo palco naquele estilo característico da dança irlandesa, braços inertes tombados ao longo do corpo, pernas e pés animados por asas sobrenaturais, embora já se tivesse visto, mesmo por cá, mais velocidade de resposta ao acompanhamento instrumental. Não faltou a surpresa, com a entrada em cena do galego Carlos Nunes, (esteve presente o ano passado no Intercéltico, com os Matto Congrio) em três temas onde cometeu verdadeiros prodígios na sua “gaita”, dialogando com agilidade quase insolente com as “pipes” de Moloney. Já na “jam session” final, juntaram-se à companhia Uxia, na pandeireta, e o bandolinista dos Jig, Alfredo Teixeira. O público rendeu-se, esmagado. Fez-se História, no Intercéltico.

Revelação

E os Barabàn, afinal, são ou não bons? São óptimos. Ao nível dos La Ciapa Rusa. Excelentes executantes, partem de um profundíssimo trabalho de investigação e recolha de temas da Lombardia e do Piemonte, aos quais acrescentam a sofisticação de arranjos próximos da estética renascentista e pré-barroca. Impressionaram as polifonias vocais (“la Merla”, “la Brunetta”, um “Stornelli”, “Le pute egie”, entre outras) e as vocalizações a solo de Aurellio Citelli – sublimes em “Lena” e “La fia rubada”, este um dos temas mais belos do último álbum da banda, “Naquane” – que se desdobrou nos teclados e sanfona. Giuliano Grasso e Guido Montaldo brilharam respectivamente no violino e no “piffero”/flautas. Paolo e Diego Ronzio construíram o suporte harmónico e ambiental, em guitarra, gaita-de-foles, sopros e percussões várias.
Aptos manipuladores da veia humorística, os Barabàn souberam alternar a ortodoxia com o divertimento e a crítica, por vezes verrinosa – “Será que a mulher de Andreotti andava na vida?”, comentaram a propósito de “La Brunetta”, “agora vamos tocar em instrumentos tradicionais italianos e (referindo-se ao sintetizador DX-7) num instrumento tradicional do Japão”. Divertida e original, uma “conversa” a quatro ocarinas sobre fundo de realejo. Já em tempo de “encore”, os Barabán soltaram-se numa polka fulgurante que serviu para mostrar a técnica superlativa do violinista e uma deliciosa utilização de colheres, em percussão, por Guido Montaldi. Os Barabán foram, como se esperava, a grande revelação do festival. Os Chieftains foram de outra galáxia.
Uma palavra de apreço final para as duas principais entidades ligadas à organização do Festival: a MC-Mundo da Canção e o Pelouro de Animação da Cidade, da Câmara Municipal do Porto, que, à semelhança das duas bandas da noite, foram exemplares. A partir de agora, o Intercéltico tem o infinito à sua frente.

Barabàn – “‘Il Valzer Dei Disertori’ + ‘Naquane'”

pop rock >> quarta-feira, 31.03.1993
WORLD


Barabàn
Il Valzer Dei Disertori (10)
Naquane (9)
CD Associazine Culturale Barabàn, distri. MC – Mundo da Canção



A música das regiões celtas do Norte de Itália, da Lombardia e Piemonte, tem sido até agora praticamente sinónimo dos La Ciapa Rusa. Os Barabàn repartem com o grupo de Maurizio Martinotti o mesmo trabalho de investigação e uma atitude idêntica de “revivificazione” do passado. A par, é claro, da utilização dos mesmos instrumentos populares da região: o “piffero”, o “organetto” diatónico, a sanfona (“ghironda”) e a gaita-de-foles (“musa”). A semelhança entre as duas bandas é perceptível sobretudo ao nível das vocalizações masculinas. Temas como “Gentil galente” ou “La brunetta”, de “Naquane”, enquadram-se na perfeição na estética dos La Ciapa Rusa. Em “Il Valzer dei Disertori”, de 1987, a banda de Giuliano Grasso e Aurelio Citelli assinou um trabalho sem mácula, de personalidade mais vincada, que restitui ao presente, com o mínimo de desvios permitido pelo tal processo de “revivificazione”, toda a beleza das baladas, “monferrinas”, “alessandrinas” e, neste caso, das valasas piemontesas. “Naquane” apenas sofre do uso, por vezes despropositado, das programações de computador, algo incomodativas no tema “Stranot di Lisander”, problema que os La Ciapa Rusa resolveram da melhor maneira em “Faruaji” e “Ratanavota”. Pormenor de somenos importância num álbum de aquisição indispensável.

Vários (Barzaz, Battlefield Band, Uxia, Sétima Legião, Barabàn, Chieftains) – “Peregrinos / O Despertar Dos Mágicos” (festival | antevisão)

pop rock >> quarta-feira, 31.03.1993


PEREGRINOS

O Festival Intercéltico do Porto, chegado à quarta edição, tornou-se uma instituição. Mais do que uma série de espectáculos musicais de música tradicional, o Intercéltico é um local de peregrinação onde, no princípio da Primavera, arribam os apreciadores e amantes destas música com raiz na eternidade. São três dias de festa no verdadeiro sentido da palavra: de celebração, de “diálogo e convívio entre as diferentes músicas e tradições de povos com um passado comum”, como afirma a organização. Os concertos podem ser melhores ou piores, mas o ambiente é único. Come-se bem, bebe-se melhor, ouve-se música, mergulha-se no âmago de uma cultura que também é a nossa. “Celta”, ou “céltico”, o termo está hoje na moda. Mas por detrás do folclore e das imagens que vão formando o “puzzle” de uma Europa genuína, está o amor a uma causa e muito trabalho. Porque nem só de música vive um festival, a organização (desde a primeira hora da responsabilidade da equipa da MC-Mundo da Canção) compreendeu a necessidade de um enquadramento à altura. É assim que, uma vez mais, o Intercéltico apresenta uma lista de actividades paralelas que neste ano incluem conferências, exposições, videorama, artesanato, banca de discos e revistas e a iniciação ao vidicuestla, o antigo jogo de xadrez celta.
Para completar o círculo (ou a espiral…), refira-se ainda a publicação, à semelhança do que aconteceu nos anos transactos, de um livro-programa de 160 páginas sobre o festival, com informação detalhada sobre a programação, incluindo textos e discografias dos artistas presentes, uma “bibliografia céltica”, uma compilação das leis (delirantes) dos Brehons, ou seja, as leis antigas da Irlanda, e até esquemas pormenorizados de algumas jogadas de vidicuestla…
Um elogio especial para Mário Correis, da organização, pelo notável trabalho de investigação e divulgação levado a cabo. Agora é tempo de fazer as malas, rumar ao Porto e viver um fim-de-semana diferente. Num tempo e num local que parecem ter sido tocados pela magia de Merlin. Na companhia das fadas, duendes e elfos que existem, porque a imaginação os materializa. O Festival Intercéltico é essa teia cruzada do mito com a actualidade, do ancestral com o moderno. Ritual de comunhão com a nossa identidade mais profunda.

O DESPERTAR DOS MÁGICOS



Barzaz e Battlefield Band preenchem o cartaz musical do primeiro dia do festival. Vibrantes os primeiros, transportam consigo a força dos rochedos e das ondas do mar que esculpe as costas da Bretanha. Mais serenos os segundos, abrigados de momento na calma enseada de um lago escocês.
Inseridos no movimento de renovação da tradição musical bretã encetada nos anos 70 por Alan Stivell, os Barzaz resultam da confluência de projectos anteriores dos seus membros, investidos da missão de levar a música da Bretanha aos círculos exteriores do mundo celta. Assim, na árvore genealógica do grupo descobrem-se os ramos Skolvan, Galorn, Kornog e La Mirlintantouille. Os Barraz fazem da beleza, por vezes rude, da música bretã uma arma contra aqueles a quem a história da Bretanha, “secreta e controversa”, incomoda, os mesmos que “ocupam os lugares do poder” e que interpretam essa História “de forma a melhor poderem dispor das suas gentes e do seu tempo”.
Os Battlefield Band são a instituição folk por excelência da Escócia. “Forward with Scotland’s Past” é o seu lema. Existem há décadas e passaram incólumes pelas tempestades. Da formação original resta o vocalista e teclista Alan Reid. O espírito, esse, manteve-se. Traçaram ao longo de uma vasta discografia os contornos da tradição escocesa sem nunca voltarem costas aos problemas sociais do presente. Juntam o canto da tragédia à dança e aos ritos da terra. O novo álbum, “Quiet Days”, é mais intimista que os anteriores. Uma pausa e um segredo entre o clamor da batalha.

A Voz E O Fogo

Sexta-feira é dia ibérico. Actuam Uxia e os Sétima Legião. Para a cantora galega Uxia significa o regresso ao Intercéltico, depois da sua aclamada participação, no ano passado, no projecto “Bailia das Flores” de Tentúgal. Uma voz, belíssima, com frequência desaproveitada. Esteve ligada ao grupo Na Lua onde a sua luz depressa começou a ofuscar os restantes músicos. Disse uma vez numa entrevista: “o importante nun cantor ou cantora é que prevaleza a voz; caquera instrumento que a oculte dificulta a sua comprénsion.” Não por acaso, o melhor trabalho dos Na Lua, “Estrela de Maio”, é aquele em que as vocalizações de Uxia surgem com maior proeminência. Abandonou entretanto o grupo para gravar um álbum algo incaracterístico, “Entre Cidades”, onde é sensível a falta de uma direcção definida. Porque não reatar as maravilhas do seu primeiro trabalho a solo, “Foliada de Marzo”?
Quanto aos Sétima Legião, cujo último álbum, “O Fogo”, foi mal recebido por alguma crítica, vão apresentar no Intercéltico um espectáculo especialmente concebido para o efeito que privilegiará as conotações célticas da sua música. Ao vivo, costumam criar um ambiente festivo, bastante diferente da melancolia que caracteriza os trabalhos discográficos da banda. Veremos se é desta que acendem o fogo.

Celebração

Absolutamente a não perder, o terceiro e último dia do Intercéltico. Com dosi grupos de passdo diferente mas ambos de qualidade musical fora de série: Barabàn, de Itália, e Chieftains, os reis magos da folk irlandesa.
Formados em Milão em 1982, os Barabàn dedicam-se ao estudo e interpretação da música do Norte de Itália, em particular da Lombardia e do Piemonte. Em disco, assemelham-se em sonoridade aos La Ciapa Rusa, seus vizinhos piemonteses. Baladas, canções de embalar, cantos satíricos e militares ou de protesto, cantigas de jograis e outros modos característicos da tradição (jigas, valsas, alessandrinas, monferrinas, curentas, sestrinas, “carmagnolas”, tuninas, “saltarelos”, …), recolhidos, na maioria, por Aurelio Citelli e Giuliano Graso, compõem o reportório básico dos Barabàn, servido pela utilização de instrumentos típicos da região: o “organetto” diatónico, flautas, ocarinas, sanfona e, claro, o “piffero” e a “musa” (incluindo a variante solista, a “piva”), a gaita-de-foles do Piemonte. Vão ser decerto, a par dos Barzaz, uma das revelações do festival.
Finalmente, os Chieftains encerram em glória o festival. Já não há palavras que cheguem para traduzir a importância desta banda lendária. Hoje, os Chieftains, como se tivessem uma varinha mágica, transformam em ouro tudo em que tocam. Depois de anos e anos a levarem ao mundo a música da Irlanda, passaram a trazer a música do mundo para a Irlanda. E a transformá-la por dentro. Levaram os caminhos da Irlanda ao encontro da China (“The Chieftains in China”), da Bretanha (“Celtic Wedding”) e dos Estados Unidos (“Another Country”). Cumpriram o ciclo nesse ritual apolíneo de convergência dos povos celtas que é “Celebration”.
Autêntica universidade da tradição onde leccionam alguns dos melhores instrumentistas da Irlanda, os Chieftains iluminaram diversos aspectos da cultura e da História desta nação onde ainda habitam as divindades antigas. O rock presta-lhes actualmente vassalagem. Eles retribuem e convidam músicos dessa área para participar nos seus álbuns, mantendo intacta a originalidade e a magia. Mas acabam sempre por regressar ao altar verde da única religião que professam – a música da ilha que lhes é exterior e interior, a Irlanda. O novo álbum, “The Celtic Harp”, tem a participação da Belfast Harp Orchestra. Nesta segunda vinda dos Chieftains a Portugal, ouçam-nos com os sentidos alerta, mas também com o coração.

Todos os espectáculos no Teatro Rivoli, com início às 21h30.

ACTIVIDADES PARALELAS

CONFERÊNCIAS: “L’Art des Celtes”, 1 de Abril, no Institut Français do Porto, e “L’Europe des celtes, V ème-Ier siècle a, C.”, dia 2, na Faculdade de Letras do Porto, ambas por Venceslas Kruta.

EXPOSIÇÕES: “Instrumentos Populares Portugueses”, 26 de Março a 18 de Abril, na Rua da Reboleira, Ribeira.
“Suonatori e Strumanti Popolari de’llApenninni”, 30 de Março a 3 de Abril, no Teatro Rivoli.

ARTESANATO: “Pablo Leal – um artesão galego”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

VIDEORAMA: “Imagens Musicais Intercélticas”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

DISCOS / REVISTAS: “A música celta e a folk europeia”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.

TEMPO LIVRE: “Vidicuestla – o jogo de xadrez celta”, 1 a 3 de Abril, Teatro Rivoli.