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sábado, 13 Dezembro 2003
A focagem de Blythe no desconhecido. Um reino desconhecido em fusão na Hungria. A fusão de dois irmãos na partilha de uma ancestralidade comum. Três formas de examinar o jazz.
Exames de consciência
ARTHUR BLYTHE
Focus
Savant, distri. Zona Música
8 | 10
GÁBOR GADÓ QUARTET
Unknown Kingdom
Budapest Music Center, distri. Multidisc
7 | 10
MAX ROACH & ABDULLAH IBRAHIM
Streams of Consciousness
Piadrum, distri. Trem Azul
8 | 10
Saúde-se efusivamente a saída de “Focus”, a assinalar o regresso de um grande e original saxofonista, Arthur Blythe, “Black Arthur”, conhecido sobretudo como elemento do grupo In the Tradition (com Stanley Cowell) e autor do aclamado “Lenox Avenue Breakdown”. “Focus” sintetiza de forma exemplar algumas das linhas de força do seu jazz – o enraizamento no “blues” e nos espirituais mas impulsionado por um exotismo congénito que o faz viajar por melodias e ritmos étnicos de várias proveniências. A instrumentação contribui para a sensação de “diferença”: um quarteto composto pelo sax alto, a tuba de Bob Stewart (um dos participantes de “Lenox Avenue”), a marimba de Gust William Tsillis e a bateria de Cecil Brooks III. Os resultados variam entre o híbrido África/orquestra gamelão de “Opus 1”, o gospel vaudevillesco de “C.C. rider” e irresistíveis pedaços de swing lançados pela “concert grand marimba” (que em “Once again” não deixa de evocar o modo como o percussionista japonês Stomu Yamashita constrói no vibrafone o balanço do tema que abre o álbum “Floating Music”), sem esquecer “My son Ra”, dedicatória ao paganismo e aos rituais do visionário de Saturno a que o trocadilho do título faz referência. Arthur Blythe, com o coração em Coltrane (“Bubbles”) e os ouvidos em Dolphy, faz avançar o seu alto do bop até ao imaginário do quarto mundo.
O exotismo do guitarrista Gábor Gadó é de outra natureza e tem origem na Hungria, através de mais um lançamento da Budapest Music Centre, em simultâneo com “Agent Spirituel”, de Gábor Winand, aqui recenseado na semana passada. O álbum chama-se “Unknown Kingdom” mas o território é conhecido – música de fusão, em oscilações entre o jazz rock, divagações frisellianas e a recriação de melodias tradicionais húngaras, variáveis às quais se junta o “free jazz” no longo “The world of Ulro”. Além do guitarrista, também o saxofonista tenor, o contrabaixista e o baterista contrariam a tendência para o exibicionismo e para os arranjos saturados, habituais noutros projectos do género, primando por uma depuração que em certos momentos chega a ser frieza.
Dois líderes, Max Roach e Abdullah Ibrahim, encontraram-se a 20 de Setembro de 1977 no estúdio para uma sessão de improvisação absoluta, sem quaisquer planeamento ou ensaio prévios. Explica o baterista que se sentaram, cada um diante do seu instrumento, e simplesmente começaram a tocar. O piano do sul-africano, marcadamente rítmico, tem com a bateria de Roach – cujas experiências com a música africana são conhecidas, seja pelos concertos com Manu Dibango ou Salif Keita ou pelo álbum “M’Boom”, um festim de percussões – uma relação privilegiada. A consciência político-cultural comum a ambos fez o resto. Construídas sobre quatro movimentos, com ênfase nos 21 minutos do título-tema, “Streams of Consciousness”, as improvisações abarcam citações de Ibrahim ao folclore do seu país de origem, a par de “clusters” e dissonâncias (por vezes com algo de Monk) cuja energia não apaga a clareza do “touching”. Roach mantém o momento, brinca com os timbres em “Inception”, serve o “blues/gospel” em “Acclamation” e, em “Consaguinity”, simbiose e apoteose rácica, assume os comandos da locomotiva. “Streams of Consciousness” é um encontro de irmãos.