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Almanaque – “Não À Chula E Ao Malhão” (entrevista)

pop rock >> quarta-feira, 13.10.1993


NÃO À CHULA E AO MALHÃO



Quem Diria? Os Almanaque, um dos grandes grupos de música tradicional portuguesa que agitaram o final dos anos 70, continuam vivos embora não de muito boa saúde. Não por causa da música, que nunca parou de crescer, mas da indústria, que tem a memória curta e voltou as costas à banda. Um mal que chegou altura de remediar.



“Desfiando Cantigas” surgiu em 1984, sendo de imediato considerado um dos melhores álbuns de recolha e adaptação de música tradicional portuguesa. Dois anos mais tarde é editado “Sementes”. A partir dessa data, o esquecimento e, segundo parece, também “algum azar” remeteram os Alamaque – nascido a partir do Coro da Juventude Musical portuguesa e cujo nome, sugerido por Nuno Rodrigues, é uma homenagem aos Malicorne e ao álbum “Almanach” – para o anonimato. José Manuel David, um dos fundadores e actual director artístico da banda, professor de Educação Musical no ensino preparatório, diz que “é preciso irem à bruxa”. Mas os Almanaque não desistem.
PÚBLICO – Qual é a actual formação dos Almanaque?
JOSÉ MANUEL DAVID – Além de mim, que toco teclados, gaita-de-foles, flautas, percussões e cavaquinho, é o Fernando Marques Gomes, estudante da escola superior de música, que toca guitarras, braguesa, flauta transversal, percussões e canta, o Miguel Pyrrait, professor de música na Juventude Musical Portuguesa, nas guitarras, e o Abílio Viegas, que é músico profissional, no baixo eléctrico. Ao vivo, costuma tocar connosco o João Nuno Represas, nas percussões.
P. – Como explica que um grupo com a importância dos Alamnaque se encontre hoje praticamente votado ao esquecimento?
R. – É uma espécie de círculo vicioso. Não temos discos porque não fazemos espectáculos e não fazemos espectáculos porque não temos discos. Costumo dizer a brincar que o grupo tem de ir à bruxa. Depois de 1986 e da gravação de “Sementes”, quando ainda nos designávemos grupo de recolha e divulgação de música tradicional, o grupo sofreu uma transformação. Achámos que tínhamos fechado um ciclo musical e de trabalho e que aquela coisa de sermos um grupo de recolha que faz espectáculos de animação musica não estava a resultar. Pretendemos continuar a trabalhar a música portuguesa, embora tivéssemos deixado de ser um grupo de música tradicional, no sentido vulgar do termo. Passámos também a fazer música nossa.
P. – Concretamente, que obstáculos encontraram?
R. – Penso que há muito pouca cultura deste tipo de música em Portugal…
P. – … O que não impediu que grupos como os Vai de Roda ou a Brigada Victor Jara tivessem lançado discos que, ao que parece, até venderam bem…
R. – Qundo chegámos à cooperativa UPAV, de que nos tornámos sócios, já lá estavam os Vai de Roda e a Brigada. Logo de início disse ao José Mário Branco que não vínhamos tirar o lugar a ninguém. Além disso, a UPAV não é prioritariamente uma editora de discos e tem as dificuldades inerentes a quem pretende editar. Os artistas têm que procurar fora da UPAV os seus financiamentos. O disco dos Vai de Roda saiu num pacote de discos que já estavam a ser financiados quando nós entrámos. Quanto à Brigada, conseguiu aquilo que nós não conseguios, um financiamento externo, além de que tinham o trabalho facilitado por não ser preciso gravar, visto tratar-se de uma colectânea. O que é sempre mais barato do que ir para um estúdio e passar lá um mês.
P. – Por outro lado, têm proliferado novas bandas sem qualquer qualidade que embarcaram na onda do oportunismo, do “é o que está a dar”, aos quais foi dada oportunidade de gravarem discos…
R. – Essa pergunta é mais para fazer às editoras… Pelo nosso lado, falámos com muita gente que não nos aceitou o trabalho alegando que não dá para bater o pé à primeira… Houve quem dissesse: “Isto é muito bom, mas é chato.” Quando as pessoas me dizem que é chato, eu tiro as minhas conclusões. O que se tem de fazer quando se pensa em música popular portuguesa é meter uns bombos e tal, uns bandolins, uns ritmos meio à chula. A nossa opção não é essa.
P. – Qual é então?
R. – O nosso trabalho com a música portuguesa passa por várias sonoridades e influências, com referências por exemplo à música irlandesa, da Galiza, da Bretanha, até ritmos indianos e africanos. Na Galiza, chamar-nos-iam simplesmente “um grupo folk”. Por exemplo, a referência que fazemos aos ritmos indianos, na abordagem aos romances tradicionais portugueses, é algo que fazemos aproveitando o facto de o João Nuno Represas tocar “tablas” nos nossos concertos. As “tablas” passaram a ter importância no som dos Almanaque, mas em conjunto com os outros instrumentos, os adufes ou os bombos pequenos, chamados “de rusga”, o que dá uma riqueza tímbrica e de ambientes bastante grande.
P. – Um grupo de fusão, portanto?
R. – Um pouco, sim. Tem havido aliás alguns desaires em termos de concertos por causa disso. Quando dizemos que somos um grupo de música popular as pessoas acham que obviamente temos que tocar umas chulas ou uns malhões para o pessoal bater o pé… Temos que ter direito à diferença.
P. – O que mudou, para melhor ou para pior, dos anos 80 até hoje, na música tradicional portuguesa?
R. – Houve uma escolha, uma selecção que não sei se já estará acabada. Nos anos 80 havia muito entusiasmo e pouco “savoir faire”. Nessa altura até costumava dizer a brincar que quem queria entrar para um grupo de música tradicional e não soubesse tocar nada, tocava bombo. Ou então, se tocasse um bocadinho de cordas, fazia sol e dó na braguesa… Hoje há mais profissionalismo, mesmo entre os músicos amadores.

Almanaque – “Desfiando Cantigas” – Série: “Os Melhores De Sempre – Música Portuguesa”

Pop Rock

20 de Setembro de 1995
Os melhores de sempre – música portuguesa

Almanaque
“Desfiando Cantigas”


almanaque

Como foi

Menos de um ano passado sobre o golpe de Estado do 25 de Abril, forma-se em Março de 1975 o Almanaque, Grupo de Recolha e Divulgação da Música Popular da Juventude Musical Portuguesa, com o objectivo de fazer, como se pode ler num comunicado de imprensa da época, citado por Mário Correia na sua obra “Música Popular Portuguesa – Um Ponto de Partida”, a pesquisa folclórica e a divulgação por todos os meios ao seu alcance da verdadeira música popular portuguesa, tendo por base o seu próprio trabalho junto do povo que canta, os resultados práticos do trabalho de dois grandes etnomusicólogos – Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti -, os seus próprios estudos colectivos sobre o assunto e, por fim, a sua própria prática musical”.
Esta ênfase posta na “verdadeira música popular” encerra toda uma crítica ao desvirtuamento daquilo a que o grupo designava por “folclorite”, personificada, nessa altura, por artistas como Carlos Alberto Moniz, Tonicha ou os Intróito, e a vontade de trabalhar e divulgar uma música de raiz o mais aproximada possível das origens. Em 1979, o grupo edita o seu primeiro álbum onde concretiza estes princípios e intenções, “Descantes e Cantaréus”, uma obra revolucionária que somente cinco anos mais tarde viria a apurar-se na maior sofisticação de “Desfiando Cantigas”. Aida no âmbito de actividades do Almanaque, é editada em 1982 uma obra importantíssima de recolhas – em três volumes discográficos – da autoria de José Alberto Sardinha (de quem acaba de ser publicado o livro “Tradições Musicais da Estremadura”), com a colaboração de Vítor Reino: “Recolhas Musicais da Tradição Oral Portuguesa”.
“Naquele tempo era difícil gravar”, recorda José Alberto Sardinha, justificando o intervalo de cinco anos entre o primeiro e o segundo disco do Almanaque com “convulsões internas” no seio do grupo. “Éramos muitos, havia sempre pouca estabilidade para fazer um disco.” “Desfiando Cantigas” é justamente o último disco gravado sob aquela designação. José Alberto Sardinha deixa o colectivo por “razões profissionais”, para se dedicar à advocacia, sem contudo abandonar o trabalho na área da música tradicional, continuando no campo da recolha e da investigação.
Durante este período que medeia entre os dois discos ocorrera “uma grande cisão” dos elementos do Almanaque que ditara, inclusive, a saída do terceiro director musical do grupo, José Manuel David, hoje nos Gaiteiros de Lisboa e mentor de um projecto de fusão que ostenta ainda o nome do grupo. “Tentámos seguir uma direcção democrática, não autoritária nem rígida”, continua José Alberto Sardinha, que considera “o domínio da tradição popular um domínio muito fluido em que qualquer pessoa pode dar opiniões”, o que, na sua perspectiva, esteve na origem dos problemas: “Veja o que é um grupo de trinta pessoas, cada uma a dar a sua opinião! Pessoas que não tinham feito recolhas, que não tinham lido nada nem estudado nada, que não sabiam nada, a pôr em causa o que eu dizia!” O abandono de José Manuel David, “que se deixou levar pelos cantos de sereia de uma certa parte do grupo e começou a fazer contravapor contra os outros dois”, teria sido, segundo o etnomusicólogo, o gatilho que desencadeou a tal “grande cisão”.
Seja como for, nada disto parece ter afectado a gravação de “Desfiando Cantigas”, já com o poder de decisão nas mãos de José Alberto Sardinha e Vítor Reino. “Tínhamos as recolhas feitas, da minha responsabilidade exclusiva, com o compromisso de as facultar ao grupo e de fazer todos os anos, no Verão, uma recolha aberta a quem quisesse”, diz o primeiro, sobre quem recaía também a maior parte da responsabilidade do estudo desse material. “Depois seleccionávamos aquelas que víamos que eram mais adaptáveis ao nosso instrumental e à nossa maneira de cantar.”
Só que, nos ensaios, tal direcção tinha “pouca autoridade”. “Eu só podia ir a um ensaio por semana, morava fora de Lisboa e entretanto tinha-me casado e organizado a minha vida profissional em Torres Vedras” – conta. “Nos ensaios em que eu não estava era uma barafunda! O Vítor Reino, por ser invisual, não podia assegurar uma regência efectiva. Gerou-se um clima de democracia de base exagerada que depois não funcionava.” Em estúdio, porém, “a coisa correu bem.” Aí a direcção musical de Sardinha e Reino “não era muito mais que dar as entradas e marcar os compassos”, embora a direcção coral, a cargo do advogado, exigisse outro tipo de cuidados, pela sua “maior expressividade”. “Desfiando cantigas” demorou, mesmo assim, alguns meses a fazer.
Em pé fica a atitude, manifestada desde a formação do grupo, de lutar contra o que consideravam ser o desvirtuamento do nosso folclore, e da qual “Desfiando Cantigas” permanece como um manifesto. “Mais do que uma reacção”, diz José Alberto Sardinha, o projecto Almanaque “era uma afirmação”. Na altura eram eles, a Brigada e “outros grupos – hoje em dia existem aos milhares, todos a dizer que têm recolhas feitas… – que continuavam a transmitir da música tradicional apenas a música bailada, no fundo a mais superficial, a mais simples e a mais agradável ao ouvido”.
O Almanaque seguiu por outra estrada. Repleta de escolhos mas que permite chegar a bom porto, sob a orientação das estrelas. “Tínhamos uma concepção própria de espectáculo. Fizemos uma vez um na Fundação Gulbenkian em que tentámos fazer o ciclo rural todo, desde a Natividade, passando pelo Entrudo, a Quaresma – com uma “encomendação das almas” – , a Páscoa… Não era uma coisa agradável de se ouvir, a encomendação das almas. Nós apagávamos as luzes, acendíamos velas e cantávamos a encomendação, o que provocava um efeito cénico muito bom.”
O futuro da música tradicional portuguesa, descontando honrosas excepções como as da Brigada, Vai de Roda, Raízes ou Terra a Terra, viria a atravessar uma noite bem mais escura. “Os grupos que apareceram depois, continuavam a dar aquela musiquinha…” Como um guardião, ou um farol, o Almanaque continua disponível para consulta. “Tínhamos uma perspectiva purista. De reproduzir tal e qual como encontrávamos no campo. Arrostando com os riscos próprios de sermos um grupo urbano. Não me parece que seja chocante”.

Como é

Ressalta em primeiro lugar, de “Desfiando Cantigas”, o seu rigor. O rigor que resulta da aplicação de um método e de uma opção estética bem definidas e orientadas. José Alberto Sardinha e Vítor Reino, os dois directores musicais do projecto, sabiam o que queriam. Movia-os o amor a uma causa que ambos viriam a prosseguir posteriormente em separado e por vias diferentes. O primeiro por um trabalho de recolha e investigação sistemático, o segundo numa continuação musical que frutificaria na Ronda dos Quatro Caminhos e viria aos poucos a definhar nos Maio Moço.
“Desfiando Cantigas” é um disco puro, feito por puristas. Um trabalho elaborado sobre gravações de campo efectuadas sobretudo por José Alberto Sardinha, que procurava pôr em destaque os aspectos mais genuínos e profundos da música tradicional portuguesa, desvalorizando o seu aspecto espectacular (quando não o fútil e o deturpado, daquilo a que chamavam “folclorite”) se destituído dessa componente essencial que liga os sons e os ritmos do povo às pulsões da natureza. Tendo sempre presente a compreensão de que, tratando-se em qualquer caso de uma reprodução – que se procurou ser o mais fiel possível – levada a cabo por músicos urbanos, nunca o resultado final poderia ser uma cópia exacta da música vivida e criada no contexto original das populações rurais.
A alternativa foi ensaiar como que um “aperfeiçoamento” formal das características intrínsecas das várias peças etnográficas abordadas – danças, cantos de trabalho, romances e cânticos religiosos, entre outras – de maneira a valorizar os seus núcleos rítmicos, modais ou harmónicos, sugerindo uma focagem afinada com maior ênfase e nitidez.
Afastada deste modo uma perspectiva meramente arqueológica, é de facto um almanaque que se desfolha, na forma de percurso pelas tradições do Norte ao Sul do país, do Minho e Trás-os-Montes ao Algarve, com desvio pelos Açores. Ciclo concêntrico ao dos rituais mágicos do ano solar que se desenrola, em sentido inverso, entre a despedida a um dia de trabalho de uma “Chamarrita” açoriana e o apelo à festa de uma “Alvorada” matutina vibrante no casamento das gaitas e bombos transmontanos.