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Lights In A Fat City – “Sound Column” + Jorge Reyes – “El Costumbre”

pop rock >> quarta-feira, 15.12.1993


Lights In A Fat City
Sound Column (6)
Jorge Reyes
El Costumbre (8)
Extreme, import. Contraverso



Música do reino das sombras, electrónica e ritual. Os Light In A Fat City, trio inglês, não conseguem repetir a qualidade do anterior “Somewhere”, onde expandiam as fronteiras traçadas por Jon Hassell na sua música imaginária do quarto mundo. Em “Sound Column”, gravado ao vivo em San Francisco, foi eliminada por completo a componente rítmica, ficando o didgeridoo – artefacto sonoro fetiche da banda – desamparado no meio da amplitude das “drones” electrónicas, dos “samples” subliminares, sinos de tragédia e ruídos de animais escondidos na escuridão que aproximam este disco de alguns trabalhos dos Nocturnal Emissions.
Jorge Reyes é um músico mexicano, autor de álbuns como “Musica Mexicana pre-Hispanica”, “Cronica de Castas” (com o guitarrista espanhol Suso Saiz) e “Bajo el Sol Jaguar”, nos quais cria de forma fascinante a tradição da cultura ancestral dos seus antepassados, para tal recorrendo a uma mistura original da electrónica com instrumentos de osso, pedra, conchas ou batimentos no próprio corpo. “El Costumbre” toma por base as bonecas de papel que consoante a forma e a cor, os índios otomies, da Serra de Puebla, utilizam nas suas cerimónias de magia branca e magia negra. As constantes referências ao peiote e às viagens astrais, no corpo de animais voadores, fazem desta obra o equivalente musical da literatura alucinatória de Carlos Castaneda.
A colaboração de Steve Roach, a linguagem dos sonhos pronunciada pelos Huichols em “Taksu”, o som da terra e da chuva, os murmúrios da floresta captam, como “fotografias Kirlian”, a trama simultaneamente etérea e orgânica do México dos mitos, em imagens de “feérie” e pesadelo que recordam o dia dos mortos mexicano, com as suas lanternas, máscaras, fogo-de-artifício e fantasmagorias.

Kodõ – “Percussões Japonesas Nos Jerónimos – Sexo Com Os Tambores”

cultura >> quarta-feira >> 28.04.1993


Percussões Japonesas Nos Jerónimos
Sexo Com Os Tambores


O grupo de percussões Kodõ, “crianças do tambor”, celebrou nos claustros dos Jerónimos um ritual de louvor à vida e ao ritmo. Ao ritmo da vida. Em guerra com os tambores tradicionais Taiko. Em paz com o mundo. Kodõ significa também “palpitar do coração”.



Aconteceu na noite de segunda-feira, em Lisboa, quando os tambores tradicionais Taiko, do grupo japonês Kodõ, invadiram os claustros dos Jerónimos, fazendo vibrar as pedras e o corpo da assistência convidada, numa cerimónia ritual de dança e percussões integrada no “Close-up of Japan-Lisboa-93”, iniciativa levada a cabo todos os anos, em diferentes cidades do globo, com o objectivo de divulgar a cultura japonesa. Cerimónia solene onde estiveram presentes o presidente da República, Mário Soares, e a princesa e o príncipe Takamado, do Japão, e que se repetirá hoje e amanhã, no mesmo local, em espectáculo para todos.
Cada instrumento musical tem uma alma própria. Qual é a alma do tambor? Explosão, rufo, disparo, baque, explosão. Um coração dentro da terra. Instrumento uterino, feito de matéria opaca, religa o corpo do homem ao ventre de Gaia, o planeta vivo. Os tambores Taiko assemelham-se a pipas de vinho, de tamanhos variáveis. Podem ser percutidos de ambos os lados, por um ou, nos de maiores dimensões (o maior de todos era gigantesco, montado sobre uma espécie de carro de guerra), dois músicos. Em vez de vinho produzem sons igualmente capazes de provocar a embriaguez.
Religação é sinónimo de religião. O grupo Kodõ, termo japonês com o duplo significado de “O palpitar do coração” e “crianças do tambor”, serve-se dos tambores para ritualizar os ritmos da terra, convocar os seus demónios, símbolo das forças telúricas que percorrem as artérias do planeta e, em última instância, para, comunicando com a terra, comunicar com o próprio corpo e as suas pulsões.
Durante o cerimonial zen dos Kodõ, o gesto dos executantes é indissociável da prestação musical propriamente dita. Homem, tambor e som confundem-se num corpo único. Num dos momentos mais altos de um acontecimento que terá deixado atónitos alguns dos convidados, os músicos, envergando apenas uns reduzidos panos brancos a envolver-lhes os rins, tocaram deitados, presos ao tambor, simulando (‘) as convulsões do orgasmo, gritando e gemendo, enquanto percutial o ventre do tambor. A música e o gesto, repetido, cadenciado, tendo por função a acumulação de energia sexual, segundo uma prática conotável ao tantrismo. Acto dionisíaco, demanda do transe extático e da sintonia com as forças e os fluxos naturais, em paralelo com um batuque africano ou uma bateria de samba.

Tantrismo

As artes marciais – como o tantrismo, uma técnica de auto-controle do corpo e da mente – estão também presentes na abordagem gestual e na aproximação estética dos Kodõ. Só assim se compreendendo, de resto, a capacidade de resistência física e a ginástica necessárias aos músicos para manter a inexorabilidade do ritmo e aceso o combate contra as peles dos tambores. O transe, e essa acumulação de força que invade o corpo do intérprete, permitiram o prodígio. Impressionante, a figura de um dos elementos dos Kodõ, erguido diante do monstruoso tambor Taiko, percutindo com dois enormes paus a superfície desenhada e iluminada, em ataques sucessivos, acompanhados de gritos de concentração (os “kiai” do karate), durante longos minutos, sem um desfalecimento, uma hesitação no gesto.

“Satori”

Oito percussionistas, um por cada tambor, executaram noutra ocasião simetrias corporais, em uníssono ou em desmultiplicações por ritmos sobrepostos, numa geometria arrebatadora de ataque gestual às peles. E aos nossos sentidos.
Mas não só os tambores fazem parte do arsenal manuseado pelos Kodõ. Pequenos címbalos de mão estilhaçaram o ar, chisparam, acenderam fogos-fátuos nos claustros dos Jerónimos. Sinos invisíveis que vieram acordar em nós a saudade de pássaros. Cintilações enredo em harmónicos de silêncio. A paz, também. Um flautista esculpiu o ar em bambú, esvaindo-se na noite antes de se perder entre o público, maravilhado. Uma figura feminina, a única do grupo, de cabeça em forma de lua, dançou a dança do luar, dos segredos ditos por amantes com a cumplicidade das águas espelhadas de um lago. Mulher em quarto minguante. Quarto-crescente, no céu.
Por fim, a festa. O encontro com a alegria. Com todos os celebrantes em júbilo colectivo, aos saltos diante da assistência, com os tambores a gritar alto o essencial: Acordem! “Satori”, como se chama no Budismo zen a este momento de iluminação.

Kodõ – “Percussões Japonesas Nos Jerónimos – Sexo Com Os Tambores” (concerto)

cultura >> quarta-feira >> 28.04.1993


Percussões Japonesas Nos Jerónimos
Sexo Com Os Tambores


O grupo de percussões Kodõ, “crianças do tambor”, celebrou nos claustros dos Jerónimos um ritual de louvor à vida e ao ritmo. Ao ritmo da vida. Em guerra com os tambores tradicionais Taiko. Em paz com o mundo. Kodõ significa também “palpitar do coração”.



Aconteceu na noite de segunda-feira, em Lisboa, quando os tambores tradicionais Taiko, do grupo japonês Kodõ, invadiram os claustros dos Jerónimos, fazendo vibrar as pedras e o corpo da assistência convidada, numa cerimónia ritual de dança e percussões integrada no “Close-up of Japan-Lisboa-93”, iniciativa levada a cabo todos os anos, em diferentes cidades do globo, com o objectivo de divulgar a cultura japonesa. Cerimónia solene onde estiveram presentes o presidente da República, Mário Soares, e a princesa e o príncipe Takamado, do Japão, e que se repetirá hoje e amanhã, no mesmo local, em espectáculo para todos.
Cada instrumento musical tem uma alma própria. Qual é a alma do tambor? Explosão, rufo, disparo, baque, explosão. Um coração dentro da terra. Instrumento uterino, feito de matéria opaca, religa o corpo do homem ao ventre de Gaia, o planeta vivo. Os tambores Taiko assemelham-se a pipas de vinho, de tamanhos variáveis. Podem ser percutidos de ambos os lados, por um ou, nos de maiores dimensões (o maior de todos era gigantesco, montado sobre uma espécie de carro de guerra), dois músicos. Em vez de vinho produzem sons igualmente capazes de provocar a embriaguez.
Religação é sinónimo de religião. O grupo Kodõ, termo japonês com o duplo significado de “O palpitar do coração” e “crianças do tambor”, serve-se dos tambores para ritualizar os ritmos da terra, convocar os seus demónios, símbolo das forças telúricas que percorrem as artérias do planeta e, em última instância, para, comunicando com a terra, comunicar com o próprio corpo e as suas pulsões.
Durante o cerimonial zen dos Kodõ, o gesto dos executantes é indissociável da prestação musical propriamente dita. Homem, tambor e som confundem-se num corpo único. Num dos momentos mais altos de um acontecimento que terá deixado atónitos alguns dos convidados, os músicos, envergando apenas uns reduzidos panos brancos a envolver-lhes os rins, tocaram deitados, presos ao tambor, simulando (‘) as convulsões do orgasmo, gritando e gemendo, enquanto percutial o ventre do tambor. A música e o gesto, repetido, cadenciado, tendo por função a acumulação de energia sexual, segundo uma prática conotável ao tantrismo. Acto dionisíaco, demanda do transe extático e da sintonia com as forças e os fluxos naturais, em paralelo com um batuque africano ou uma bateria de samba.

Tantrismo

As artes marciais – como o tantrismo, uma técnica de auto-controle do corpo e da mente – estão também presentes na abordagem gestual e na aproximação estética dos Kodõ. Só assim se compreendendo, de resto, a capacidade de resistência física e a ginástica necessárias aos músicos para manter a inexorabilidade do ritmo e aceso o combate contra as peles dos tambores. O transe, e essa acumulação de força que invade o corpo do intérprete, permitiram o prodígio. Impressionante, a figura de um dos elementos dos Kodõ, erguido diante do monstruoso tambor Taiko, percutindo com dois enormes paus a superfície desenhada e iluminada, em ataques sucessivos, acompanhados de gritos de concentração (os “kiai” do karate), durante longos minutos, sem um desfalecimento, uma hesitação no gesto.

“Satori”

Oito percussionistas, um por cada tambor, executaram noutra ocasião simetrias corporais, em uníssono ou em desmultiplicações por ritmos sobrepostos, numa geometria arrebatadora de ataque gestual às peles. E aos nossos sentidos.
Mas não só os tambores fazem parte do arsenal manuseado pelos Kodõ. Pequenos címbalos de mão estilhaçaram o ar, chisparam, acenderam fogos-fátuos nos claustros dos Jerónimos. Sinos invisíveis que vieram acordar em nós a saudade de pássaros. Cintilações enredo em harmónicos de silêncio. A paz, também. Um flautista esculpiu o ar em bambú, esvaindo-se na noite antes de se perder entre o público, maravilhado. Uma figura feminina, a única do grupo, de cabeça em forma de lua, dançou a dança do luar, dos segredos ditos por amantes com a cumplicidade das águas espelhadas de um lago. Mulher em quarto minguante. Quarto-crescente, no céu.
Por fim, a festa. O encontro com a alegria. Com todos os celebrantes em júbilo colectivo, aos saltos diante da assistência, com os tambores a gritar alto o essencial: Acordem! “Satori”, como se chama no Budismo zen a este momento de iluminação.