Música ligeira. Artistas da rádio, do tempo em que se ouvia música pela telefonia e se lia na “Flama”, na “Plateia” ou no “Século Ilustrado” as últimas sobre o “affaire” amoroso de António Calvário com Madalena Iglésias…
Nacional-cançonetismo e piroseiras do mais requintado mau-gosto emparceiram com algumas lendas vivas do fado. Nostalgia. Ingredientes que finalmente se reúnem na totalidade de um lote de 23 CD com o genérico “O Melhor de…” que a Valentim de Carvalho passou a ter disponível no mercado nacional.
O fado apresenta a melhor música e algumas das suas glórias, de um passado lisboeta já distante no tempo: Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, António dos Santos, Hermínia Silva. O fado de Coimbra faz-se representar por Luiz Goes. O resto é um pouco a alegre confusão, segundo o critério unificador que consiste em reunir os nomes mais sonantes de um período temporal compreendido entre as décadas de 40 e 70: Simone, Max, Maria Teresa de Noronha, Lucília do Carmo, Tristão da Silva, Fernando Farinha, Eugénia Lima, Maria Clara, Alberto Ribeiro, Tony de Matos… o melhor de… os melhores, ao lado do pior… dos piores. Mas aqui vale, sobretudo, a imagem, na maior parte dos casos retocada pela imaginação, que para alguns significará conservar para a posteridade a saudade dos tempos que já lá vão e, para outros, um saudável exercício de diversão “kitsch”.
Muitos dos artistas da série “O Melhor de…” já morreram. Outros estão vivos, mas preferem deixar de si apenas o que deles recordamos dos anos dourados, casos de António dos Santos ou de Hermínia Silva. Os familiares de alguns deles prontificaram-se a conversar com o PÚBLICO sobre os mitos, maiores ou menores, que fizeram sonhar e suspirar os nossos pais. Histórias que hoje dão que sorrir e pensar. A vida, então, corria mais forte e devagar.
Matt Howden e Aranos. Dois violinistas loucos. Demónios. Pagãos. Artífices de uma música que brota das profundezas, com o rosto corado pelas maldições lançadas pelos antigos gigantes. Matt Howden é um dos astros negros dos Dieben e, com Tony Wakeford, dos Sol Invictus (além de fazer parte dos Raindogs, banda com base em Portugal). Aranos, enigmática personagem de ascendência cigana, natural da Boémia, é uma das entidades em acção nos Nurse With Wound, de Seteven Stapleton, e nos Current 93, de David Tibet. Os dois tocam juntos, hoje e amanhã, em Lisboa, no Teatro Ibérico de Xabregas, duas noites que se prevêem fora do comum.
Em cada uma destas apresentações os músicos reservaram os dez, quinze minutos finais para interpretarem temas compostos para os concertos de Lisboa. Na 6ª feira, após o concerto, terá lugar uma aula de tango pelo grupo Milonga das Estrelas, para o qual Aranos escreveu propositadamente um tango (convém esclarecer que o tango é uma das suas paixões, bem como a guitarra de Carlos Paredes). A Matt Howden e Aranos juntar-se-ão em palco Paulo Romão, dos Raindogs, e, em três ou quatro temas, B’Eirgh, vocalista da banda britânica In Gowan Ring, pertencente à editora World Serpent.
É extensa a obra de Howden, a solo ou nos projectos Sol Invictus, Sieben e Stiki. De comum, a proximidade do Mal, as cores soturnas, as luzes fátuas, os rituais ocultos de louvor a deuses cruéis e antigos. “Intimate & Obstinate”, “Hellfires” e “Redroom” são os três trabalhos com a ssinatura de Matt Howden. Na forja está uma longa peça conceptual intitulada “Voyager”, inspirada na expedição espacial que leva a sonda para fora do Sistema Solar, ao encontro do desconhecido.
Em “Hellfires”, os “Fogos do Inferno”, Hoden fez incidir a sua atenção nas concepções filosóficas e religiosas do Inferno em algumas das civilizações do passado, como o Hades etrusco ou o Amenti egípcio. Temas como a transmigração das lamas ou a condenação eterna são abordados segundo uma perspectiva que o levou, por exemplo, a questionar-se sobre as “regras” e os “motivos” que poderiam levar Shu, deus da luz, a determinar a “aniquilação completa” de uma alma pecadora. Charun, “meio humano, meio besta, com o seu olhar flamejante e o seu aspecto selvagem”, considerado uma “concorrente do próprio Satanás”, é outra das simpáticas personagens que Howden convocou para “Hellfires”.
“Redroom” é a obra em vermelho, a cor que cobre as paredes do seu estúdio. A cor do Inferno, do sangue e do sexo. “Voyager” não deverá ter esta cor, mas é de prever que seja escuro. A escuridão do espaço sideral. Matt Howden faz questão de explicar que este seu trabalho não significa qualquer conversão ao espírito “new age”, deixando, aliás, o aviso para esperarmos dele “toda a espécie de coisas estranhas e assustadoras”.
Mas nem só de trevas vive a música de Matt Howden. As formas com que reveste as suas visões de pesadelo têm amiúde a solenidade da música clássica, reportando-as ao mesmo tipo de sinfonias infernais de projectos como SPK (de “Zamia Lehmani”), Lustmord ou Zone. No folclore pop colou-se-lhes o rótulo de “gótico”.
Feiticeiras, a decadência da Europa, a intrusão do mundo astral no mundo físico, o cosmo em ruínas, a oposição luz/trevas e um lote bem fornecido de criaturas mitológicas e títulos em latim integram o léxico fundamental da sua obra, que pode ser apreciada num sem número de realizações das quais as mais recentes são “The Line and the Hook”, dos Sieben, e “Thrones”, dos Sol Invictus, este editado já em Fevereiro.
Fica assim entendido que tem apetência pelo lado escuro da mente e pelos rituais que a fazem sintonizar-se com o buraco negro do Inconsciente. A normalidade repugna-lhe. A tempestade vai bem com a sua personalidade. Recorda com nostalgia um concerto dos Sieben no “Wave Ghotic Festival” em Leipzig, quando, durante o “encore”, a noite explodiu em trovões e relâmpagos: “Great stuff!”
Será assim em Lisboa? A meteorologia não prevê uma melhoria do tempo, estando reunidas as condições para que o cerimonial decorra da melhor forma. Com fantasmas à solta. Quem tem medo do escuro?
Matt Howden & Aranos
Lisboa | Teatro Ibérico de Xabregas
6ª e sáb., às 21h30. Bilhetes a 12,50 euros