PÚBLICO SÁBADO, 14 ABRIL 1990 >> Cultura
De 11 a 16, Bourges é a capital francesa do espetáculo
Riso, ritmo e ecletismo
Bourges está uma confusão. Desde quarta-feira que as ruas da cidade foram invadidas pela fauna típica destas ocasiões. “Punks”, “hippies” e exemplares menos catalogáveis enchem tudo o que é sítio de cor, barulho e sabe-se lá que mais. Se não fosse assim não era festival.
Na edição deste ano do “Printemps de Bourges” – a decorrer do dia 11 até dia 16 –, os palcos foram estrategicamente espalhados por vários pontos da zona antiga da cidade, desde monumentos como o “Castelo de Água” ou a própria catedral, até recintos de construção moderna como o novo Palácio dos Congressos. Existe ainda uma nova zona franca para o pessoal pé-descalço, estilo Feira da Ladra ou Praça de Espanha, cheia de tendinhas de comes e bebes e de famílias inteiras andrajosas, com guitarras e criancinhas aos montes espalhadas pelo chão, como se Woodstock não tivesse acontecido já há mais de vinte anos. Numa tenda maior, como as de circo, fica a chamada “zona aberta”, onde pode tocar quem quiser.
Música a pique
Das atividades paralelas à programação normal, constava uma proposta inusitada, no “Castelo de Água”, a meio da tarde. Na ocasião, o velho edifício foi utilizado para um espetáculo em princípio multimédia, mas que afinal se ficou com unimédia, girando à volta do afundamento do Titanic. As velhas paredes de tijolo, forradas com fotografias “postal ilustrado” de objetos recuperados do fatídico naufrágio, mais uma estatueta e um sino de nevoeiro pertencentes ao próprio navio, eram os únicos adereços existentes para além da música. Esta, claro, foi composta por Gavin Bryars na obra “The Sinking of the Titanic” e, na ocasião, tocada pela “ensemble” de Bryars, nas caves do castelo.
O público vagueava lá em cima, às voltas, por entre as colunas e a humidade da construção circular, recebendo o som através de altifalantes. A ideia era, à partida, excelente, mas na prática não resultou. O som era mau, e para além do ambiente evocativo do lugar, nada mais havia para fazer senão olhar para a cara do vizinho. Ninguém protestou, pudera, a entrada era grátis.
“Rap”, tira, põe e deixa
A escolha seguinte era óbvia: “Tackhead” e “Public Enemy” no Palácio dos Congressos. Os primeiros celebraram durante cerca de vinte minutos, um ritual de ruído, um “rap” demoníaco feito de pilhagens sonoras e “samples” desenfreados e neuróticos, com o “Deejay” de serviço operando prodígios de “scratching” na mesa do gira-discos, e dois dançarinos espetaculares, acrobáticos e perfeitamente sincronizados.
No intervalo (que durou quase uma hora – ainda se queixam os portugueses) subiram ao palco, riram-se, mostraram-se, fotografaram a assistência e deram autógrafos. Os rapazes ainda são novos e vê-se que apreciam a fama. Sempre foram entretendo os presentes durante a espera.
Finalmente, os “Public Enemy” dignaram-se subir ao palco para mais uma dose de “Rap” bem aviada. O esquema era semelhante ao dos Tackhead: gira-discos, dois vocalistas e algumas figuras de cena. O público sabia ao que vinha e gostou.
Brincadeiras sérias
O grupo Sttellla é uma dupla indescritível. De um lado um indivíduo com cara de Wim Mertens, vestindo-se sucessivamente de leopardo, “marjorette” ou simplesmente em cuecas, tocava guitarra e sintetizador, contando piadas realmente cómicas e com apartes perfeitamente hilariantes.
Do outro, a sua “partenaire”, vestida como dona-de-casa, peruca aos caracóis com lacinho ao alto, malinha de mão e sacos de plástico, cantava e dançava como uma doméstica em dia de “Um, Dois, Três…”.
A música é um “cocktail” impensável onde se misturam, sem preocupações de decência ou coerência, os B-52’s, minimalismo Suicide, Gianni Morandi e Madalena Iglésias. Canções foleiras, tangos, experimentalismo a fingir e letras desopilantemente imbecis (“Attention Odile aux Crocodiles dans le Nile”) deliciaram a assistência e, melhor ainda, fizeram-na rir.
No Pavilhão, podia verificar-se até que ponto a música do pós-moderno Hector Zazou (autor de álbuns fabulosos como “Reivax au Bongo”, “Géographies e “Geologies”) resulta em palco. A nova banda de Zazou dá pelo nome de “Les Nouvelles Polyphonies Corses” e é constituída por quatro instrumentistas, entre os quais o próprio Hector e um quarteto vocal misto.
A combinação de eletrónica, sopros e percussões com as espantosas polifonias vocais, inspiradas no canto corso, criam uma atmosfera grandiosa, uma música inclassificável entre o romantismo, a tecnologia e a tradição. De referir que uma das vocalistas é Patrizia Poli, a tal rapariga com voz igual à de Anamar.
Quinta-feira confirmou, pois, o ecletismo e pluralidade de propostas desta edição de “Printemps”.