Arquivo da Categoria: Música Antiga

Pedro Caldeira Cabral – “Pedro Caldeira Cabral” + “Duas Faces”

pop rock >> quarta-feira, 08.09.1993
REEDIÇÕES


PEDRO CALDEIRA CABRAL
Pedro Caldeira Cabral (6)
Duas Faces (6)
CD EMI – VC



Considerado, com Carlos Paredes, um dos expoentes da guitarra portuguesa, de Pedro Caldeira Cabral sempre se comentou que o seu estilo, por comparação com o do autor de “Verdes Anos”, é demasiado frio e cerebral. O que se torna tanto mais incómodo quanto existem de facto semelhanças estilísticas entre ambos. Mas enquanto Paredes se “perde”, no sentido em que se deixa arrastar pela inspiração do momento, numa postura interpretativa em que o corpo funciona como uma extensão biológica da guitarra, Pedro Caldeira Cabral coloca-se no pólo oposto, o da distanciação. O que, se por um lado retira à sua música alguma expressividade emocional, lhe permite, por outro, percorrer áreas e registos musicais inacessíveis a Paredes. É assim que em “Pedro Caldeira Cabral”, na companhia de elementos do Opus Ensemble e dos “jazzmen” Carlos Bica e Carlos Martins, Caldeira Cabral leva a guitarra aos salões de música de cãmara (a par de incursões na Andaluzia e no minimalismo africano de “Uimbe”) e em “Duas Faces”, com João Nunes Represas e Rui Luís Pereira, “Dudas”, ex-Resistência e Ficções, se aproxima das cadências étnicas – portuguesas (em que aflora por vezes a vizinhança com Júlio Pereira), árabes, brasileiras – e do fado. Num e noutro caso, a diversidade e o tecnicismo demosntrados não arrastam consigo a paixão, soando certos temas a exercícios formais que os próprios títulos sugerem: “Jogo dos sons”, “Estudo em harpejos”, “Ostinato”. Um caso a exigir uma certa dose de loucura.

Vários – “Festa Da Música Em Bourges, Entre 30 De Abril E 5 De Maio – Sagração Da Primavera”

Secção Cultura Domingo, 31.03.1991


Festa Da Música Em Bourges, Entre 30 De Abril E 5 De Maio
Sagração Da Primavera



Festa da música em Bourges, pequena cidade medieval francesa. É o “Printemps de Bourges”, ponto de encontro e convívio da França com o resto do mundo, na descoberta e partilha de um espaço cultural europeu comum.

Este ano no “Printemps de Bourges”, entre 30 de Abril e 5 de Maio próximos, como de costume, o programa é aliciante e diversificado, num leque que vai do classicismo pós-moderno de Wim Mertens e a música antiga dos Hespérion XX, ao jazz de Manu Dibango (vertente “afro”) e Carla Bley com Steve Swallow, sem esquecer, obviamente, o rock representado pelos House of Love e Elliott Murphy, ou o universo múltiplo das músicas étnicas.
Com o apoio e patrocínio de entidades oficiais (o Ministério da Cultura e Comunicações, a Secretaria de Estado para a Juventude e Desportos ou a “Maison de la Culture de Bourges) e instituições particulares (MCM – Euromusique, L’ARCAM, Coca-Cola, Air France, etc.), o “Printemps de Bourges” conta entre os seus objectivos “encorajar os jovens artistas e possibilitar ao maior número de pessoas possível a descoberta de novos músicos e a audição das suas vedetas preferidas”.

Espectáculo Na Rua

À semelhança do que aconteceu no ano passado, o centro das operações localiza-se na parte antiga da cidade, num périplo que inclui as suas principais zonas históricas, impecavelmente servido em termos de infra-estruturas habitacionais e comerciais. Quando despertar ao som de músicas estranhas, invadida por milhares de forasteiros atraídos pela curiosidade, pela festa ou pela magia única doo acontecimento, a habitualmente pacata cidade de Bourges transfigurar-se-á, adquirindo a aura luminosa e o prestígio das grandes galas culturais.
O Palácio dos Congressos, o “Grand Théatre” e o Pavilhão, salas menores como as “Gilles Sandier”, “Duc Jean” e “Germinal”, e a própria catedral, preparam-se para abrir as portas à música, ao espectáculo e às inúmeras surpresas capazes de transformar o festival em qualquer coisa de inesquecível. Mas nem só nos recintos fechados haverá que ver e ouvir. Como é da praxe, também as ruas da cidade serão palco para o que der e vier, através dos designados “Hors Jeu” – actividades paralelas que este ano vão desde o “cosy disco centre d’art”, estranho acampamento completo, espécie de festival dentro do festival, que junta os conceitos de circo, dança e centro cultural alternativo, ao desfile dos chamados “trens eléctricos” brasileiros – orgia carnavalesca sobre rodas.

“Troupe” Surrealista

Despoletar e encantar a imaginação infantis é a tarefa a cargo da “troupe” surrealista “Maximomes”. Mas que ninguém se espante se deparar com um camião orquestra, uma agência noticiosa (“L’Agence Tartare ‘La Chaine’”), encarregada de confundir e difundir notícias e acontecimentos fantasiosos (!) ou com a possibilidade de aprender, “in loco”, a disparar um canhão napoleónico. Os “Generik Vapeur et la grande petarde nocturne motorisée” prometem tornar as ruas num pesadelo povoado de criaturas estranhas e cerimónias apocalípticas. Por vezes acontecerá tudo ao mesmo tempo.

Nomes Importantes

Para quem preferir o conforto dos recintos fechados, o mais difícil será escolher. Todos os dias, entre as duas da tarde (no “Germinal – découvertes” – à descoberta dos novos valores do rock) e as tantas da manhã, a música não para e a excitação muito menos. Entre os concertos agendados com nomes de cartaz, destaque para Eliott Murphy (rock americano urbano) e Manu Dibango (jazz + funky = cataclismo rítmico), dia 30; Bel Canto (pop norueguês da “nova idade”) e Carla Bley com Steve Swallow (duo piano/baixo por dois expoentes no jazz actual), dia 1; Guesh Patti (animal de palco em “music-hall” revisitado), Wim Mertens (minimalista, classicista, pianista, monárquico e doido genial) e os House of Love (guitarras e canções da nova geração Pop britânica), dia 3; Juliette Greco (grande dama da “chanson française”), dia 4; Jimmy Sommerville (ex-Communards, porta-voz das emoções “gay”), dia 5. Realce muito especial para a actuação do grupo de música antiga Hespérion XX, dirigido por Jordi Savall e onde pontifica a voz sublime de Monserrat Figueras, dia 1, na catedral.
A lista continua: UB 40 (“reggae” em corte inglês), Geoffrey Oriema (dos nomes mais importantes da actual música africana, Brian Eno e Peter Gabriel não lhe regateiam elogios), os franceses Les Rita Mitsouko e Les Negresses Vertes, New Model Army (os novos “Clash”, para o “Times”), Flying Pickets (vocalizações “a cappella”), Kanda Bongo Man (rumbas zairenses transvertidas em música de dança). Depois, partir à descoberta dos nomes novos e novas emoções: Elmer Food Beat, Victims Family, Sons Of The Desert, Noise Gate, Bat Attack, Patrick Bruel, Reynaldo Anselmi, Bratsch, Paris Musette… Em Bourges, a música faz a Primavera.

Vários – “De 11 A 16, Bourges É A Capital Francesa Do Espetáculo – Riso, Ritmo E Ecletismo” (festivais)

PÚBLICO SÁBADO, 14 ABRIL 1990 >> Cultura


De 11 a 16, Bourges é a capital francesa do espetáculo

Riso, ritmo e ecletismo


Bourges está uma confusão. Desde quarta-feira que as ruas da cidade foram invadidas pela fauna típica destas ocasiões. “Punks”, “hippies” e exemplares menos catalogáveis enchem tudo o que é sítio de cor, barulho e sabe-se lá que mais. Se não fosse assim não era festival.



Na edição deste ano do “Printemps de Bourges” – a decorrer do dia 11 até dia 16 –, os palcos foram estrategicamente espalhados por vários pontos da zona antiga da cidade, desde monumentos como o “Castelo de Água” ou a própria catedral, até recintos de construção moderna como o novo Palácio dos Congressos. Existe ainda uma nova zona franca para o pessoal pé-descalço, estilo Feira da Ladra ou Praça de Espanha, cheia de tendinhas de comes e bebes e de famílias inteiras andrajosas, com guitarras e criancinhas aos montes espalhadas pelo chão, como se Woodstock não tivesse acontecido já há mais de vinte anos. Numa tenda maior, como as de circo, fica a chamada “zona aberta”, onde pode tocar quem quiser.

Música a pique

Das atividades paralelas à programação normal, constava uma proposta inusitada, no “Castelo de Água”, a meio da tarde. Na ocasião, o velho edifício foi utilizado para um espetáculo em princípio multimédia, mas que afinal se ficou com unimédia, girando à volta do afundamento do Titanic. As velhas paredes de tijolo, forradas com fotografias “postal ilustrado” de objetos recuperados do fatídico naufrágio, mais uma estatueta e um sino de nevoeiro pertencentes ao próprio navio, eram os únicos adereços existentes para além da música. Esta, claro, foi composta por Gavin Bryars na obra “The Sinking of the Titanic” e, na ocasião, tocada pela “ensemble” de Bryars, nas caves do castelo.
O público vagueava lá em cima, às voltas, por entre as colunas e a humidade da construção circular, recebendo o som através de altifalantes. A ideia era, à partida, excelente, mas na prática não resultou. O som era mau, e para além do ambiente evocativo do lugar, nada mais havia para fazer senão olhar para a cara do vizinho. Ninguém protestou, pudera, a entrada era grátis.

“Rap”, tira, põe e deixa

A escolha seguinte era óbvia: “Tackhead” e “Public Enemy” no Palácio dos Congressos. Os primeiros celebraram durante cerca de vinte minutos, um ritual de ruído, um “rap” demoníaco feito de pilhagens sonoras e “samples” desenfreados e neuróticos, com o “Deejay” de serviço operando prodígios de “scratching” na mesa do gira-discos, e dois dançarinos espetaculares, acrobáticos e perfeitamente sincronizados.
No intervalo (que durou quase uma hora – ainda se queixam os portugueses) subiram ao palco, riram-se, mostraram-se, fotografaram a assistência e deram autógrafos. Os rapazes ainda são novos e vê-se que apreciam a fama. Sempre foram entretendo os presentes durante a espera.
Finalmente, os “Public Enemy” dignaram-se subir ao palco para mais uma dose de “Rap” bem aviada. O esquema era semelhante ao dos Tackhead: gira-discos, dois vocalistas e algumas figuras de cena. O público sabia ao que vinha e gostou.

Brincadeiras sérias

O grupo Sttellla é uma dupla indescritível. De um lado um indivíduo com cara de Wim Mertens, vestindo-se sucessivamente de leopardo, “marjorette” ou simplesmente em cuecas, tocava guitarra e sintetizador, contando piadas realmente cómicas e com apartes perfeitamente hilariantes.
Do outro, a sua “partenaire”, vestida como dona-de-casa, peruca aos caracóis com lacinho ao alto, malinha de mão e sacos de plástico, cantava e dançava como uma doméstica em dia de “Um, Dois, Três…”.
A música é um “cocktail” impensável onde se misturam, sem preocupações de decência ou coerência, os B-52’s, minimalismo Suicide, Gianni Morandi e Madalena Iglésias. Canções foleiras, tangos, experimentalismo a fingir e letras desopilantemente imbecis (“Attention Odile aux Crocodiles dans le Nile”) deliciaram a assistência e, melhor ainda, fizeram-na rir.
No Pavilhão, podia verificar-se até que ponto a música do pós-moderno Hector Zazou (autor de álbuns fabulosos como “Reivax au Bongo”, “Géographies e “Geologies”) resulta em palco. A nova banda de Zazou dá pelo nome de “Les Nouvelles Polyphonies Corses” e é constituída por quatro instrumentistas, entre os quais o próprio Hector e um quarteto vocal misto.
A combinação de eletrónica, sopros e percussões com as espantosas polifonias vocais, inspiradas no canto corso, criam uma atmosfera grandiosa, uma música inclassificável entre o romantismo, a tecnologia e a tradição. De referir que uma das vocalistas é Patrizia Poli, a tal rapariga com voz igual à de Anamar.
Quinta-feira confirmou, pois, o ecletismo e pluralidade de propostas desta edição de “Printemps”.