Arquivo da Categoria: Debate

Vários – “Polémica Entre Editoras E Retalhistas – A Difícil Convivência”

pop rock >> quarta-feira, 07.04.1993


Polémica Entre Editoras E Retalhistas A DIFÍCIL CONVIVÊNCIA

Um dos pontos mais quentes e mais badalados nos últimos tempos tem sido o das (difíceis) relações entre as lojas de retalhistas, as vulgares discotecas, e as editoras multinacionais com sede no nosso país. Todos, ou quase todos, se queixam de que o mercado está em recessão e de que a galinha deixou de ser dos ovos de ouro. De ambos os lados esgrimem-se razões. Há lobos e cordeiros. Ogres e bodes expiatórios. O bolo, parece, não chega para todos.



Por entre o clima de suspeição, há quem se mantenha à margem, fazendo finca-pé da sua independência. Discotecas como Contraverso, VGM, One-Off e Bimotor, das mais prestigiadas da capital, utilizam estratégias que passam ao lado das multinacionais. São especializadas em músicas consideradas “difíceis”, mas têm uma clientela própria. Quem lá vai sabe exactamente o que procura. Música alternativa, na Contraverso, música clássica e Folk, na VGM, raridades dos anos 60 e 70, na One-Off, “heavy metal” e música de dança, na Bimotor, as principais apostas de cada uma delas.
Encomendas às editoras, só em desespero de causa ou mesmo, no caso da One-Off, inexistentes. Orlando Leite, da VGM, pouco trabalha com as editoras – “normalmente não têm as coisas de que necessito”. É fácil perceber porquê. A loja do Príncipe Real distribui e trabalha com os seus próprios catálogos: Accent, Ricercare, New Albion, Greentrax, Claddagh, Gael-Linn…
José Guedes, da Contraverso, diz com um sorriso irónico nos lábios que “compra tudo o que lhe interessa às multinacionais”. Importado directamente do estrangeiro, “apenas o que não há no mercado”. E acrescenta, com um sorriso: “É mais conveniente.” Relações directas com as editoras independentes estrangeiras não tem “nenhumas”. “Não é uma questão de preço”, garante, “não tenho é paciência para as aturar…”. José Guedes tem, contudo, uma opinião concreta sobre os preços praticados no mercado português: “Devem evitar-se os descontos escondidos, que se praticam em quase todas as lojas de Lisboa.” Que descontos escondiso? “Os interessados sabem…”
Nas lojas da cadeia Bimotor os diversos catálogos são, na maioria, provenientes lá de fora, já que as suas especialidades, a ”música de dança” e o “heavy”, que importam em grande quantidade, não estão disponíveis nas multinacionais. Para tal, a discoteca tem pessoal especializado, “pessoas que estão dentro de cada género de música”. “Temos a nossa própria noção de mercado”, diz Rui Rodrigues, da filial das Amoreiras, o que permite à Bimotor reger-se por regras diferentes das outras lojas.

À Beira Da Catástrofe

As editoras multinacionais apontam o dedo a dois intervenientes aparentemente distintos. Por um lado, aos retalhistas que passam ao lado dos seus catálogos, indo buscar lá fora aquilo que à primeira vista pareceria ser mais fácil e cómodo de obter através das editoras. Por outro, às chamadas “grandes superfícies”, os hipermercados, que põem à venda os discos dos artistas objecto de maior consumo, em quantidades maciças e com margens de lucro reduzidas.
As multinacionais vêem-se, deste modo, como que encurraladas entre dois fogos. Se as lojas não lhes compram, são obrigados a vender aos hipermercados, com a consequente diminuição na percentagem de lucros, mas como forma prioritária de escoamento do produto.
Para Francisco Vasconcelos, administrador da cadeia de lojas Valentim de Carvalho, os hipermercados são os principais culpados da fase descendente que a indústria atravessa: “Há dois anos, iniciámos uma baixa de preços em certos títulos escolhidos, em princípio dos mais vendidos, ou das novidades com maior expectativa, para respondermos à política comercial dos hipermercados. Existia um movimento bastante acelerado de fuga de público das lojas normais para os hipermercados. Foi para tentar estancar essa sangria que começámos esta política comercial. Estamos a trabalhar com margens de lucro normais, que rondam os vinte e tal por cento. Não conseguimos atingir os 28 por cento, que é a margem corrente das grandes cadeias internacionais – Virgin, HMVM, FNAC. Temos que sofrer um bocadinho e apertar o cinto.”
Nos hipermercados, “as margens de lucro descem aos cinco, seis por cento”, continua Francisco Vasconcelos, “números impossíveis de atingir por qualquer loja vulgar, até porque, logo à partida, se esta está situada num bom local, chega a pagar de renda cerca de oito ou nove por cento do valor da sua facturação a quem arrenda esse tipo de lugares. Pode dizer-se que há uma especulação imobiliária por trás de tudo isto. Se uma pessoa quiser abrir uma loja no Shopping de Cascais ou nas Amoreiras, é quanto vai ter de pagar. Como não podemos atrair o público para uma estrada deserta nem somos um supermercado que vende batatas juntamente com cassetes vídeo e açúcar, só discos, temos de ir para esse tipo de locais. Com sete ou oito por cento logo para o dono do espaço, é evidente que menos do que estes vinte e tais por cento não chega para pagar os ordenados das pessoas, as quebras de ‘stock’, tudo isso…”.
Ainda sobre a concorrência dos hipermercados, Francisco Vasconcelos lamenta o “desaparecimento de muitos clientes [incluindo lojas] tradicionais”: “Quando comecei a trabalhar nisto, havia qualquer coisa como 800 clientes. Hoje, em Portugal, não deve haver mais de cento e tal.” Descida violenta, “em parte resultado da crise económica, em parte porque estão a ser esmagados pelos hipermercados. Ou as lojas se tornam mais especializadas ou os hipermercados, cuja acção tem sido verdadeiramente catastrófica, toma conta disto tudo”.
Em relação às lojas da concorrência, a cadeia Valentim de Carvalho optou por as combater com as mesmas armas montando um departamento de música independente à base de importações directas, procurando, em simultâneo, uma melhoria de serviços e de atendimento ao público, partindo do princípio de que o cliente prefere pagar mais e ser mais bem atendido do que abastecer-se de discos a granel e entalados no mesmo pacote das couves e do detergente.
Segundo Francisco Vasconcelos, “as lojas de discos que lidam com produtos de entretenimento devem ser locais atraentes, onde as pessoas se deviam divertir e aprender. Vamos ter que tornar as lojas mais interessantes. Neste aspecto, a loja do Rossio teve um grande impacte no mercado”.

Rosário De Pecados

Se as lojas Valentim de Carvalho pensam já na resposta a dar à concorrência dos “híper”, outras há que elegeram um tipo de “inimigo” diferente, como é o caso da One-Off, que recusa a trabalhar com as distribuidoras / editoras portuguesas. Rui Spúlveda, responsável pela importação dos compactos desta discoteca instalada nas Amoreiras, vê na editora EMI (autónoma das lojas) – Valentim de Carvalho, “que domina o mercado nacional”, o culpado de vários males.
Antes, porém, Rui Sepúlveda começa por atacar as editoras em geral: “Andam pelos jornais e pela televisão a lamentar-se de que as vendas do passado caíram não sei quantos por cento e que este ano será ainda pior, quando o que se passa é que foram apenas elas que deixaram de vender”, já que “todas as boas lojas de Lisboa, que trabalham com importações directas, venderam melhor”. Vai mais longe: “É muito difícil arranjar cá aquilo que se pretende. As editoras, a maioria das vezes, não têm o que queremos e, quando têm, fazem a chamada ‘panelinha’ – primeiro é para as lojas deles [e aqui Rui Sepúlveda passa a referir-se em particular à EMI – Valentim de Carvalho], só o que sobra é que vai para as outras lojas. Há um boicote autêntico.”
Embalado, conta um caso acontecido há dois anos, “no Natal de 91, quando da saída do disco de Rui Veloso ‘Auto da Pimenta’”, que deu origem a uma autêntica “guerra de preços”: “A Valentim de Carvalho decidiu pôr este disco à venda, nas suas lojas, com 15, 20 por cento de desconto, o que, sendo um disco de grandes vendas que poderia ajudar várias lojas a recuperar de meses menos bons, obrigou toda a gente a baixar as margens de lucro. Nessa altura chegou a aventar-se a hipótese de se formar uma associação de lojas que boicotassem a Valentim de Carvalho.”
Por estas e por outras, a One-Off voltou as costas às multinacionais, que acusa de, por vezes, incorrerem em estratégias menos límpidas. Rui Sepúveda conta, a propósito, certos rumores que, segundo ele, correm em diversas discotecas sobre o lançamento, no ano passado, de “Rock In Rio Douro”, dos GNR: “Um mês antes de o disco sair, iam todos os dias dezenas de miúdos às lojas, pagos ou não pela editora, pedir o disco, dizendo que já tinha saído, e perguntar por que é que não estava à venda.”
Na opinião de Rui Sepúlveda, tratava-se de uma forma de pressão para forçar o retalhista a compras antecipadas e em grande quantidade. “Se o lojista não se precavesse”, argumenta, “comparava logo uns 500 discos, que depois ficavam em casa.” É que, ainda segundo o homem forte da One-Off, “quando o disco saiu de facto, as compras não chegaram sequer a dez por cento do número daqueles pseudopedidos”.

“Um Perfeito Disparate”

David Ferreira, administrador da editora EMI-VC, contactado pelo PÚBLICO, prontificou-se desde logo a comentar as “acusações” que sobre a sua casa reacaíam.
Do “caso GNR” às hipotéticas pressões às discotecas, David Ferreira garante que “é totalmente mentira”. E garante que só não processa o autor de tais afirmações por “falta de tempo”: “Além de ser mentira, é um perfeito disparate.” Para reforçar esta afirmação avança valores oficiais: “O disco saiu em Junho do ano passado e vendeu, só no mês de saída, 28.547 álbuns. As vendas totais até esta altura estão em 76.131, ou seja, o valor de saída praticamente triplicou. Isto fala por si. Estes dados são facilmente comprováveis na Sociedade Portuguesa de Autores. Além de que seríamos parvos se estivéssemos a perder tempo num estratagema tão complicado com artistas que claramente não nos levantam grandes problemas para atingir grande facturação. É absurdo.”
Quanto ao hipotético favoritismo dado pela editora às lojas Valentim de Carvalho, David Ferreira desmente-o igualmente de forma categórica: “Também é mentira. Tratamos de igual maneira os clientes que visitamos. A One-Off, tanto quanto me lembro, teve uma altura em que estava com os pagamentos em atraso. É evidente que uma loja nestas condições deixa de ser visitada. Mas isso não é uma questão de favoritismo – as editoras vendem, não oferecem. Em relação a qualquer disco, o que se passa é que nós, pelo contrário, temos uma política de saída simultânea de novidades e, quando os pedidos excedem as quantidades em ‘stock’, fazemos um rateio para que as existências, assim como as faltas, sejam distribuídas com justiça.” Sobre o pretenso boicote na forma de descontos despropositados nas lojas Valentim de Carvalho, do disco “Auto da Pimenta”, de Rui Veloso, David Ferreira classifica-o como “outro disparate!”.
“A lei portuguesa”, explica, “não permite às editoras discográficas fixarem preços de venda ao público. Nós temos um preço de revenda, que é o que consta na tabela, vendemos ao mesmo preço de revenda a todos os nossos clientes. O que acontece é que nessa altura a loja Valentim de Carvalho praticava, como continua a praticar, uma política de preços de uma série de referências que é a mesma dos hipermercados e que consiste em haver sempre uma lista de títulos em que se abdica das margens de lucro habituais. Não se trata de um desconto feito pela EMI – Valentim de Carvalho à Valentim de Carvalho loja, mas de um desconto feito pela Valentim de Carvalho aos clientes, o chamado preço VC aplicado a discos de artistas de todas as editoras, do Sting ou da Whitney Houston, por exemplo. Aí eu não tenho qualquer interferência. A Valentim tem os preços que tem, os hipermercados têm o preço que têm, a One-Off tem os preços que tem. Temos tabelas transparentes, em vigor para todos. A partir daí, não há nada que possa viciar a concorrência.”

CAIXA
EM BUSCA DO DISCO PERDIDO

Enquanto lojas e editoras se digladiam, o consumidor nem sempre encontra nas bancas o disco que procura. Fomos a quatro discotecas da capital em busca dos títulos que tiveram honras de destaque nas secções de música dos jornais “Blitz”, “Diário de Notícias” (suplemento “Compacto”) e PÚBLICO (suplemento Pop Rock), nas tr~es semanas compreendidas entre 2 e 17 de Março.



A lista de obras procuradas era a seguinte: “O Canto da Cidade” (Daniela Mercury), “So Tough” (St. Etienne), “Sweet, Oblivion” (Screaming Trees), “Talking Loud II” (colectÂnea), “Duran Duran” (Duran Duran), “Field Guide” (Timbuk 3), “Live in Theatre 1988” (David Sylvian), “Story of my Life” (Pere Ubu), “Songs of Faith and Devotion” (Depeche Mode), “Star” (Belly), “Frank Black” (Frank Black), “Senhas” (Adriana Calcanhoto), “Vorony” (Ukrainians), “Vox de Nube” (Noirin Ní Riain) e a reedição da série Earthworks.
Disponíveis nas quatro discotecas só estavam os Duran Duran, Depeche Mode e Belly. A estreia a solo de Frank Black apenas não figurava numa discoteca. Os St. Etienne apareciam em duas lojas. Com presenças solitárias em apenas uma loja estavam os Screaming Trees, a colectânea “Talking Loud II”, Timbuk 3, David Sylvian e Pere Ubu. De uma área mais específica, Ukrainians, Noirin Ní Riain e série Earthworks não figuravam em nenhuma discoteca.
Dois casos particulares, os discos das artistas brasileiras Adriana Calcanhoto e Daniella Mercury. No primeiro, o álbum ainda não saiu. Uma das discotecas já o teve à venda numa edição esgotada obtida através de uma distribuidora. O segund apenas existe nos formatos de vinilo e cassete, estando o compacto, de momento, esgotado na editora. Nos casos dos títulos em falta, ou eram desconhecidos ou nunca foram pedidos. Os Timbuk 3 tinham-se esgotado numa discoteca.
As conclusões a extrair são as de que apenas os títulos mais sonantes estavam à disposição do comprador. O factor crítica, para todas as discotecas consultadas, não é relevante ou é-o pouco, obedecendo as encomendas ou importações antes a critérios próprios de cada loja, segundo uma espécie de intuição sobre o que vende e o que não vende proporcionada pela experiência dos respectivos funcionários e/ou proprietários.
No caso de discos esgotados, o “stock” é renovado, a maioria das vezes, num prazo reduzido ou não chega a ser reposto, porque as previsões apontam para uma não-continuação da procura. O argumento da “falta de interesse” volta a ser invocado para os discos que nunca chegaram aos escaparates. É a retracção, compreensível, em tempo de vacas magras e forte concorrência. O comprador de discos, quando busca algo mais particular e fora do grande consumo, tem de procurar bem antes de encontrar o pretendido.
Há quem conheça o território e quem o desconheça. Os primeiros fecjham-se em copas, não vá alguém antecipar-se e comprar o compacto desejado antes de si (as quantidades são pequenas e a rapidez de aquisição é aqui um factor importante). Os segundos, se não quiserem andar de loja em loja, desistem ou resignam-se ao que há. Alguns encolherão os ombros e pensarão que, procura por procura, têm ali mais à mão o hipermercado.

READY MADE E PÓS



Nova formação dos Pop Dell’Arte: João Peste, Luís San Payo, Pedro Alvim, Paulo Monteiro, e João Luís II
O LANÇAMENTO DO ÚLTIMO TRABALHO DOS Pop Dell’Arte, “Ready Made”, terceira edição da Variodisc, esperado há cerca de um ano, vai finalmente concretizar-se na próxima segunda-feira, 12 de Abril, mas a banda promete já outro álbum. “Ready Made” vai ser editado em formato vinil, com seis temas, e em CD, no qual figuram ainda duplas versões de “2002” e “Mc Holly”. Ambos têm uma edição limitada de “ready mades”, adaptados ao formato, assinados pelos membros dos Pop Dell’Arte, quando da gravação do disco.
A nova formação dos Pop Dell’Arte – que inclui, desde o final do ano passado, além do trio sobrevivente (composto pelo vocalista João Peste, o baterista Luís San Payo e o baixista Pedro Alvim), outros dois novos membros, Paulo Monteiro, ex-Croix Saint, na guitarra, e João Luís II, na guitarra e manipulação de fitas – apresenta integralmente ou temas do novo álbum (com excepção de “808 loop”, dia 17 de Abril, na Voz do Operário, em Lisboa, além de uma série de temas novos do período pós “Ready Made”. Têm como convidado especial General D e a primeira parte do concerto será assegurada pelos Lulu Blind.
“se, mais uma vez adiamentos imprevistos impedirem a saída do disco, será por exclusiva responsabilidade da Varidisc, já que este álbum está concluído há muito tempo e nós não abdicamos da data do concerto de apresentação em Lisboa, que está prometido desde o final do ano passado”, referiu o mentor da banda, João Peste. O atraso na edição de “Reasdy Made” não impediu a banda de preparar novos temas que, segundo João Peste, “já justificam um outro álbum”. “My super Analana”, “H27”, “A sex machine (with hands to kill)”Be hop” e “Racismo é estúpido” são alguns desses temas, num conjunto de 13 que a nova formação dos Pop Dell’Arte se tem ocupado nos últimos seis meses. Esperamos que este futuro álbum viva dias melhores, com uma edição atempada.
Cristina Carvalho?/Conceição?

Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais – “Três Cantoras Debatem Música Portuguesa No Feminino – Cantos Da Alma Sentida”

pop rock >> quarta-feira, 03.02.1993


Três Cantoras Debatem Música Portuguesa No Feminino
CANTOS DA ALMA SENTIDA



Reunimos o trio de ouro das vozes portuguesas. Para Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais, o prazer de se saberem cúmplices juntou-as quase imediatamente nos cantos que encheram os corredores do PÚBLICO. Em jeito de antecipação de um projecto antigo de Filipa Pais e Teresa Salgueiro, baseado nos temas populares recolhidos por Michel Giacometti. Maria João, por seu lado, vai continuar a cantar pelo mundo fora com músicos de excepção: Aki Takase, Lauren Newton, Marilyn Mazur e Bobo Stensson. Alheias ao tempo e ao lugar, quando finalmente, se sentaram para falar das coisas que bordam a sua música, as horas anteriores já tinham acendido a chama. Entre a descoberta de dificuldades e entregas comuns, afirmaram-se intérpretes rodeadas de excelentes profissionais e defenderam a dignidade da música que lhes sai da alma e das vísceras. Entre a diversidade das suas imagens e personalidades, a felicidade de estar em palco arrebata-as para lá da indústria e dos seus contos imorais. Vozes de corpo inteiro partilhadas com quem as ouve, esquecidas da pequenez de um país provinciano.
No final deste encontro de raparigas, entre a promessa de um jantar e a troca de gravações de temas queridos, Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais tinham afirmado com emoção a intenção de abrir caminhos. É isso que anima os seus cantos. Soltos, instintivos, cristalinos e interiores. Porque de cantoras e mulheres de alma à superfície.

Maria João, Teresa Salgueiro e Filipa Pais contaram ao PÚBLICO segredos, riscos e estratagemas. E algumas fraquezas. Falaram de si e dos homens. Do que é ser mulher e cantora em Portugal, um país provinciano, reconheceram, onde “fica tudo uma coisa caseira”. E onde nem tudo é o que parece.
PÚBLICO – Em Portugal, na música popular, há poucas compositoras. O homem compõe e a mulher interpreta?
FILIPA PAIS – A mim, neste momento, apetece-me mais interpretar que mostrar as minhas coisas. Não me sinto ainda pronta para mostrá-las… Os homens se calhar são mais libertos…
MARIA JOÃO – É mais uma questão de pessoas, de sensibilidades. Há mulheres muito brutas e homens muito sensíveis. Eu componho quando estou a cantar. Quando improviso estou no fundo a compor. Agora, pegar num tema desde o princípio da composição, acho um disparate. Como estou rodeada de músicos excepcionais, tudo o que eu possa compor será sempre inferior ao que eles podem fazer e fazem excelentemente. Muitas vezes os temas nem sequer são para mim mas eu agarro neles e “roubo-os”…




TERESA SALGUEIRO – É isso. E talvez venhamos todas a compor nos tempos mais próximos. Era uma coisa que eu gostava de fazer. Não sei é quando…
M. J. – Os meus ídolos são três mulheres que nunca foram compositoras – a Maria Callas, a Maria Teresa de Noronha e a Elis Regina, que são apenas intérpretes.
P. – As instrumentistas também se contam pelos dedos… Uma questão de educação? De comodismo?
F. P. – Penso que é uma questão de educação. Eu vejo agora, que estou no Conservatório, que há imensas raparigas com boas vozes, com vontade, mas que não arriscam, estão sempre à espera de qualquer coisa…
M. J. – A voz é um instrumento como outro qualquer. Eu não toco piano, pois não, mas toco cordas vocais.
F. P. – Leva-se para todo o lado…
T. S. – O pior é que enquanto num piano afinado se toca um “mi” e sai um “mi”, nós, se estivermos cansadas, queremos cantar o “mi” e às vezes sai um “ré” sustenido…
P. – Em Portugal as grandes vozes pertencem a mulheres?
T. S. – Existe uma tradição de música portuguesa cantada por mulheres. Muitos mais do que por homens. Embora haja o caso do Alentejo, dos fadistas de Coimbra…
M. J. – Acho que sim, vozes femininas é que é! [Risos.] Em Portugal há mais boas vozes femininas do que masculinas. Não no conceito que normalmente ouço dizer – “o fulano tem um vozeirão, uma extensão enorme e não sei quê”. Por exemplo, o Carlos do Carmo, que é um excelente cantor, tem uma extensão pequenina, mas diz tudo, está lá tudo…
P. – Haverá da parte da mulher uma identificação mais fácil entre a voz e o corpo? Será a voz o instrumento ideal feminino?
T. S. – Isso acontece em qualquer cantor, penso eu. O que conta é a interpretação que se consegue dar às palavras, aos sons, seja ao que for. A alma com que se entrega ao que está a fazer.
M. J. – Olha, o Marco Paulo tem uma excelente voz…
F. P. – Dentro do estilo é o maior!
M. J. – Um cantor tem que ser como um atleta, tem que estar preparado. É o corpo todo que nós usamos como se fosse um instrumento.

Aquecimentos

P. – Vocês desde que chegaram ao jornal não pararam de cantar, como se fosse a coisa mais natural do mundo. É difícil imaginar cantores homens a fazerem o mesmo…
F. P. – Talvez nos envolvamos mais…




M. J. – Uma vez perguntei a Lauren Newton (com quem ando a trabalhar) como é que ela aquecia a voz. Ela procede de maneira diferente da habitual. Já a Jay Calyton faz o aquecimento de uma forma tradicional. Depois quis saber como é que faz o Bobby McFerrin. A Lauren respondeu-me: Ele não aquece, está sempre a cantar, o dia todo!” E é o gajo que faz aquelas acrobacias todas… Está sempre quente!
T. S. – Embora o masculino e o feminino tenham diferentes sensibilidades.
P. – As mulheres entregam-se mais? Há maior interiorização no canto?
M. J. – Se calhar nós temos mais cuidado com o instrumento… Ou será porque somos umas tagarelas? [Risos]. Porque gostamos de abrir a boca e dizer coisas?

Pernas Ao Léu E Os Manéis De Bigode

P. – Em palco vocês são cantoras mas também mulheres. Será possível existir uma Madonna à portuguesa?
M. J. – Eu acho a Madonna altamente, uma excelente profissional, curto imenso o que ela anda a fazer.
F. P. – Ninguém a critica, ela dá a volta…
P. – Não responderam à questão…
T. S. – A Madonna é mesmo Estados Unidos.
M. J. – É, os Estados Unidos funcionam muito nessa base, do produto, da encenação, do que se vê e do que se diz.
P. – Mas ela liga de forma explícita a sexualidade e a voz. É possível fazer o mesmo em Portugal?
M. J. – Mas cá há cantoras que também fazem isso. Normalmente cantoras mais ligadas à área do nacional-cançonetismo que andam sempre impecavelmente de perna ao léu, maminhas bem feitinhas, todas a mostrarem-se… É a tal componente sexual. A Cândida Branca-Flor, a Alexandra… Se repararmos bem, elas têm um cuidado extremo com o que vestem, como se apresentam, mini-saias não sei quê. Muito mais do que nós.
T. S. – Eu nunca seria capaz de cantar de mini-saia.
P. – De vocês as três, a Maria João parece ser quem mais assume essa componente…
F. P. – Perfeitamente! Tu és m ais liberta.
M. J. – Eu? Eu? [Risos]. Às vezes não é nada bonito de se ver – faço caretas…
F. P. – Mas isso é que é bonito.
M. J. – Muitas vezes a gente vê na televisão o malfadado “playback”, e as pessoas depois notam. O leigo, que está em casa, diz: “Ah, aquela está tão bonita, tão agradável de se ver!” Depois vem um concerto ao vivo e é terrível, a pessoa torce-se, tem as veias salientes…
T. S. – Quando canto determinadas coisas sinto-me diferente, mais “sexy”, mais triste, mais contida, mais atrevida, conforme a música.
P. – … A Teresa tem uma imagem discreta, mais sóbria…
T. S. – Mais quietinha!… Mas tem a ver com o tipo de música e com a personalidade.
M. J. – Mas aquilo que eu faço não é de propósito. Estou lá e é assim que sai. Sinto uma felicidade tão grande por estar em palco…
P. – Quando estão em palco, têm consciência dos olhares que recaem sobre vocês? Dos olhares masculinos, por exemplo?
M. J. – Masculinos e femininos, atenção! Mas eu nunca olho para o público. Imagina que estás a cantar uma coisa incrível e olhas para um Manuel à tua frente que se está a assoar… [Risos]
F. P. – Eu prefiro nem olhar para um Manuel de bigode! [Risos.]
T. S. – Não estou a pensar se aquele está a olhar para mim, a reparar na minha cintura… Mas penso se são homens ou mulheres que me estão a ver.
F. P. – É uma massa enorme e assustadora…
M. J. – … Que nos dá uma pressão e uma felicidade imensas!
F. P. – Eu estou ali no meio daqueles quatro irmãos Salomé, dos Lua Extravagante, de bigode (risos). São uns companheiros fantásticos e meus amigos. Mas é evidente que sinto qualquer coisa quando entro em palco.
M. J. – No vosso espectáculo da Aula Magna levaram bastantes assobios (risos).
F. P. – Eu ouvi.

Contos Imorais

P. – Quem as ouvir falar, assim amigas diria que não existe qualquer rivalidade entre quem trabalha neste ramo. É mesmo assim, não há competição?
T. S. – Cada vez mais as pessoas se querem juntar para aprender umas com as outras.
M. J. – É saudável. Não há competição, é na boa. Fulana está a cantar e pensa “Não sou ninguém se não cantar como ela canta.” Mas rivalidade, rivalidade, acho que não existe.
P. – Dentro da indústria, quais são os vícios e virtudes?
F. P. – Virtudes, a existência de bons compositores e grandes ideias. E estão a criar-se condições para que as pessoas possam trabalhar cada vez melhor.
M. J. – Vícios, de venda e de mercado. Acho que a indústria está viciada em certos padrões de comprar, vender e promover, o que acaba por condicionar os músicos e os cantores. Embora no meu caso as coisas sempre tenham sido mais fáceis, justamente por ser mulher.
F. P. – Às vezes é complicado, porque… não sei se quero dizer isto…
M. J, T. S. e PÚBLICO – Diz lá!
F. P. – Às vezes há coisas que acontecem mais facilmente se…
P. – Como? Propostas, digamos, de índole não propriamente artística?
F. P. – Por exemplo. Há coisas que parecem tomar um caminho porreiro até certa altura, a amizade e não sei que mais, até que chega um momento em que afinal é mais qualquer coisa. Se tu dizes que não, deixam-te cair.
M. J. – Nesses casos também não interessa. Se alguém te quer usar para fazer não sei quê, esse alguém também não te vai servir para mais nada.
P. – Não chegando a casos tão extremos, poderá dar-se o caso de a indústria pensar em primeiro lugar numa imagem apelativa que possa vender – e menos na música?
F. P. – Evidentemente que pensam logo nisso.
T. S. – A mim não me passa pela cabeça.
M. J. – Ai é, pensam não sei quê? Fixe! Vou aproveitar-me disso. Se alguém acha que me pode vender porque sou mulher, por uma imagem, não me vai pôr as mãos em cima de certeza absoluta, se eu não quiser. Então vou aproveitar-me dessa ingenuidade para poder fazer as minhas coisas. Se uma pessoa olha para nós e diz: “Vou comer esta querida” (risos), eu só tenho é que lhe dar a volta. Se, por exemplo, um produtor me disser: “Vou promover esta mas quero algo em troca”, eu, na troca, não lhe vou dar coisa nenhuma. Se calhar não devia estar a dizer isto.
F. P. – Acho que é uma questão de tacto. Se apostarem em mim, não vou dar nada em troca que não seja o meu trabalho. As coisas depois avançam ou não.

Primeiro Passa-se A Roupa A Ferro

P. – Em Portugal assiste-se presentemente ao fenómeno da reciclagem musical – pessoas que já andam nisto há muito e se juntam para formar novos agrupamentos. É possível acontecer um equivalente feminino?
M. J. – Era bom as pessoas juntarem-se. Lá vou eu ter que falar nos Resistência, dos quais não gosto nada. Penso que é uma forma inteligente de sobrevivência, de sobrevivência a um alto nível, pois aquilo vende imenso. Mas há outras hipóteses das pessoas se juntarem. Por exemplo, aquilo que nós fizemos [espectáculo de Maria João com Lena d’Água, Xana, Teresa Salgueiro e Anabela Duarte realizado em Novembro de 1991, no Teatro São Luiz, integrado nos Festivais de Lisboa]. Foi diferente – um encontro por prazer.
F. P. – Há um projecto meu com a Teresa, mas não quero falar antes de as coisas acontecerem.
P. – Conseguem conciliar a vossa carreira, cheia de “timings” e digressões, com a vida familiar?
M. J. – Tenho uma criancinha, um rapaz quase com três anos, e é muito difícil para mim estar longe dele. E ele começa também a sentir a minha falta. Passada uma semana fora fico doente de tristeza, começo a embirrar com toda a gente, sou mal educada, chego mais atrasada que o costume…
T. S. – Atrasada? Tu também?…
M. J. – Uuii!…
T. S. – Ah, que alívio…
F. P. – Eu estou a melhorar.




M. J. – Mas a gente não chega atrasada por falta de respeito. Eles [os músicos] quando chegam tarde é porque ficaram sentados na cama a ver televisão (risos). Sei que é assim porque tive essa experiência na minha última “tournée”. Eles, coitados, já estão mais que escaldados com os meus atrasos, de maneira que eu chegava a horas, num esforço sobrehumano, e acabava por ficar à espera que eles viessem. E eles, naquela: “Ela deve estar atrasada.”
P. – O atraso sistemático é o arquétipo feminino desconhecido?…
M. J. – Nós temos mais coisas para fazer do que os homens. Os homens fazem a barba, tomam banho já está. Nós tomamos o banhinho, secamos o cabelo, que é comprido, pintamos os olhos, estamos quase a sair e pensamos: “Será que estamos bem, será que vou vestir isto ou não vou”…
F. P. – A mim o que me acontece é que arranjo sempre qualquer coisa – não gosto de sair de casa e deixar a cama por fazer. O homem está-se nas tintas.
M. J. – Eles chegam aos concertos, fazem o ensaio de som, depois vão para o quarto, vestem-se em cinco minutos e estão prontos. Enquanto nós, eu pelo menos, deixamos a roupa na cama, dobrada e passada a ferro com um ferrinho minúsculo, o que dá umas dores nas costas atrozes, numa posição não de todo ideal para quem vai cantar a seguir. Depois, lavar a cabeça, as pinturas… É um “stress” enorme (risos).
F. P. – Eu começo sempre a preparar-me umas duas horas antes…
T. S. – Também eu.
M. J. – Nem tenho tempo para comer.
F. P. – Normalmente eles vão jantar enquanto eu me vou pintar. Até porque cantar com a barriga cheia… Eles também não gostam.
M. J. – As pessoas pensam que os cantores, os músicos, levam uma vida altamente, vão curtir, vão ver o país – “rica vida, rica vida!”
F. P. – Mas é deitar cedo e cedo erguer!

As Luzes

P. – Afinal sempre dão uma importância decisiva à imagem…
T. S. – Evidentemente. Arranjo-me e pinto-me para me sentir bem.
F. P. – Nos tempos que correm, a imagem é cada vez mais importante. Por altura do 25 de Abril, em 74, lembro-me que as pessoas cantavam como se fosse uma luta. Hoje isso está um bocado morto. As pessoas agora querem é luzes, grande espectáculo.
M. J. – Num concerto estamos em frente das pessoas e temos que nos sentir bem connosco próprios.
T. S. – É uma espécie de máscara que resulta para eu estar à vontade em frente a uma multidão que está a olhar para mim, e que não possa dizer mal dos sapatos ou achar o penteado esquisito…
P. – Nesse aspecto, as cantoras portuguesas também não primam pela ousadia…
F. P. – Não concordo. A Xana, por exemplo, não tem uma imagem clássica.
M. J. – A Anabela Duarte é bastante extravagante.
P. – O negócio, e não só, da música em Portugal poderia comportar excessos do tipo dos cometidos por Sinead O’Connor?
F. P. – Se for uma coisa que faça sentido…
M. J. – O que é isso de excesso?
P. – No sentido de provocação. Lá fora há uma mediatização e assimilação por parte da indústria. Mas num país de brandos costumes como é o nosso?…
M. J. – Se aparecesse cá uma mulher assim, na província chacinavam-na! Quanto à indústria, é Lisboa e Porto e pouco mais.
P. – Somos um país de provincianos?
F. P., M. J. e T. S. – (em coro) – Acho que sim!
M. J. – Somos um país pequeno, conhecemo-nos todos uns aos outros. Conhecemos os críticos, eles conhecem mais não sei quem, fica tudo uma coisa caseira.

Vários (Sérgio Godinho, Pedro Ayres Magalháes, João Paulo Feliciano, António Manuel Ribeiro, José Mário Branco) – “DEBATE: Música Portuguesa – O PRIMEIRO DEBATE DOS ANOS 90”

pop rock >> quarta-feira, 13.01.1993


DEBATE
Música Portuguesa
O PRIMEIRO DEBATE DOS ANOS 90


1992 FOI O ANO EM QUE PELA PRIMEIRA VEZ, DESDE Amália, nomes da música portuguesa se impuseram além-fronteiras, o que aconteceu com Madredeus, LX-90 e até Rão Kyao. O ano em que um grupo português, os Resistência, com o seu álbum de estreia “Palavras ao Vento”, assomou ao topo dos cem discos mais vendidos na Europa. Em que surgiram a concorrer para os primeiros postos do top português uma série de discos nacionais que ultrapassaram decididamente o plano da produção caseira. A qualidade de som do segundo álbum dos já citados Resistência e designado “Mano a Mano”, como o homónimo de estreia dos Zero, ou “Rock In Rio Douro” dos GNR não deixaram nada a desejar em relação ao melhor da produção estrangeira. Em paralelo apareceram editoras independentes, como a MoneyLand Records, a MTM e a Numérica. E há muito tempo que não se apostava tanto na música portuguesa, justamente num ano em que a indústria da música declarou recessão em termos internacionais.
Afinal, o que é que se passa na música portuguesa? Quais os desafios e as motivações? Que sons, atitudes e estéticas a atravessam à entrada de um novo ano? É preciso voltar a lançar a discussão e ninguém como os próprios músicos está em posição de dar respostas. Mas a presente situação tem também isto de inédito: nota-se, se não um conflito, pelo menos uma certa clivagem de gerações. Daí a escolha dos protagonistas do debate: José Mário Branco e Sérgio Godinho, que iniciaram as suas carreiras no final dos anos 60 e estiveram na linha da frente da música de intervenção pré-25 de Abril; Pedro Ayres de Magalhães e Carlos Maria Trindade, por seu turno, foram dos principais impulsionadores da chamada música moderna portuguesa, no início dos anos 80; António Manuel Ribeiro, o UHF que é porventura o último dos puristas do rock português, e Adolfo Luxúria Canibal, o Mão Morta que em meados da década passada introduziu uma postura de ruptura com o sistema das multinacionais. Finalmente, João Paulo Feliciano dos Tina & The Top Tem, que segue essa pista de independência, mas faz parte de uma nova geração que não canta na nossa língua, nem procura reflectir valores portugueses. Factor adicional da escolha: tirando Sérgio Godinho, todos os intervenientes estão ou estiveram ligados a editoras e à produção discográfica local.
ESTE DEBATE FOI CONCEBIDO E ORIENTADO POR JORGE DIAS, FERNANDO MAGALHÃES E LUÍS MAIO. AS FOTOS QUE O TESTEMUNHAM PARA A POSTERIDADE SÃO DE ALFREDO CUNHA.



PÚBLICO – Chegados aos anos 90, há ou não um regresso da “mensagem” na música portuguesa, mais ou menos politizada, a fazer a ponte com os anos 70, depois de um certo vazio de palavras fortes na década passada?
ADOLFO LUXÚRIA CANIBAL – Começo logo por negar isso. Se havia uma facção politizada que veio da pré-revolução, ou do pré-golpe de Estado, e que continuou nos anos seguintes com uma voz activa e com mais tempo de antena em termos de grande público, o que é certo é que também já nessa época existia um outro tipo de música menos politizada, no sentido de ser menos militante e menos intervencionista de um ponto de vista social e político primário. Por outro lado, nos anos 80, se esse tipo de música perdeu a voz em termos de “mass media” e do grande público, não a perdeu totalmente, continuou a existir e o grupo que veio substituí-la, o rock português ou a música moderna portuguesa, também não era tão despolitizada como isso. A prova foi, por exemplo, que um dos grandes grupos dessa época eram os Heróis do Mar, que estavam longe de ser despolitizados. Tinham uma intervenção política específica, com outra linguagem, noutro campo porventura. Mesmo que a intenção fosse o divertimento.
Não é o aparecimento dos Resistência que nos vem dizer que há outra vez uma politização da música portuguesa nos anos 90. Primeiro, porque os Resistência estão a utilizar palavras da música dos anos 80, que era a menos politizada, portanto há logo aí uma contradição. Depois, os Resistência fazem outra coisa que é colocar a palavra em primeiro plano, com todas as consequências, possivelmente negativas, que é deixar morrer, de certo modo, a politização que houve nos anos 80, que ocorreu não só ao nível das palavras, mas também da acção musical, através de uma recusa de certos parâmetros musicais que os Resistência vão recuperar aos anos 70. No fundo, ao colocar a palavra na mó de cima, está a provocar o regresso estético dos anos 70, ou seja, ao que está para trás.



PEDRO AYRES MAGALHÃES – Que não se confundam as coisas. Os Resistência não são um projecto no sentido de “grupo”. Nós estamos é envolvidos numa manobra. Uma manobra de resistência à dominação da vida social e cultural portuguesa pela influência anglo-saxónica. Depois, os Resistência foi uma iniciativa contra um estado de moleza que grassava há uns dois, três anos. Nesse sentido é “reaccionário” a um determinado “statu quo”, não no sentido tradicional do termo. Quanto a ser um projecto de conservadores, é um conservadorismo no sentido de conservar ideias de uma certa maneira de estar no mundo que a nossa geração consagrou e andou a cantar durante anos. As canções foram escolhidas a dedo. Quem quiser ler, os sintagmas estão lá todos.



JOSÉ MÁRIO BRANCO – A questão das versões prende-se com o esvaziamento das ideias sociais. Chamem-lhe “crise das ideologias”, o que quiserem. Se não houver, por parte do músico, num disco ou num espectáculo, uma urgência, uma premência de dizer qualquer coisa, esse vazio aparece automaticamente. Então ele vai recorrer ao que já foi feito. A tendência para o revivalismo é um reflexo que leva a ouvir o antigo e de, através dele, se remotivar. Grave sim é quando isso passa a ter como significado qualquer coisa como “eu não sei o que dizer aos outros”.


Um Conflito De Gerações?




P. – Será um pouco por esse vazio de mensagem que hoje surge uma nova geração que não canta na nossa língua? Será condenável os músicos portugueses comunicarem com plateias portuguesas em inglês?
P.A.M. – Quanto mais forte for a nossa identidade cultural mais fortes serão as outras que nos chegam. Nunca mais tomaremos gato por lebre e nunca mais se tornará difícil a um tipo que só quer gravar um disco e passar num programa de rádio chegar lá e ouvir “se é português, não quero!”. Eu ouvi isso.
JOÃO PAULO FELICIANO – Eu estou-me nas tintas para isso… Sendo português, quando faço música, faço-o em inglês…



P.A.M. – Qual é o problema? É o que quase toda a gente faz…
J.P.F. – Ainda bem que não tem problema nenhum. Não sinto a mínima necessidade de cantar em português.
A.L.C. – É preciso voltar a essa questão essencial que é a da língua. Voltar ao inglês para assumirem o rock, para mim, é o grande perigo, o grande erro e tem a ver com os Resistência. Ao mesmo tempo que os Resistência conseguem levar as palavras às pessoas, criam uma reacção de negação dessa palavra, de negação desse tipo de música…
P.A.M. – Mas junto de quem?
A.L.C. – Junto das novas gerações. Tu vês as novas bandas rock e não há nenhuma a cantar em português.
P.A.M. – Ai é?
A.L.C. – Pois, tu está fora…
CARLOS MARIA TRINDADE – Não é um conflito de gerações mas de estilos.



P.A.M. Essa responsabilização é abusiva…
A.L.C. – É evidente que não posso responsabilizar os Resistência a cem por cento. Mas que têm a sua quota-parte, sobretudo por causa do seu peso mediático, lá isso têm.
Quanto à questão de, em Portugal, poder haver música para as minorias, é uma questão de indústria. O mercado português é pequeno, as editoras já se vêem “aos arranhões” para vender o “middle of the road”, quanto mais pensar em termos de música alternativa. Acaba-se sempre por cair nas pequenas editoras, com pouco dinheiro, com gravações mais ou menos artesanais, mais ou menos caseiras, mais ou menos mal gravadas, relativamente aos modelos comparativos que passam massificadamente na rádio.
SÉRGIO GODINHO – Olha que os Nirvana não têm o som mais “clean “ do mundo…
A.L.C. – Mas está muito bem produzido, eu não estou a falar de “clean”.
J.P.F. – Nunca esse foi um problema para mim, faço música em casa e gravo sem gastar dinheiro nenhum…
S.G. – Mas tem bem aquele som que vem do pequeno estúdio…
J.P.F. – Isso não é um problema.
J.M.B. – Como a humanidade não é estúpida, as multinacionais do som estão a começar a ter que dar resposta a essa insuportabilidade do vazio que a massificação criou. Quando se fala em vazio cultural, não é só o “eu não li nem ouvi os antigos, não sou culto, não tenho referências”. E quantas vezes nós assistimos a malta mais nova do que nós que descobre a passagem do lá maior para o ré menor e depois para o dó e depois o sol e o mi sétima e depois o lá, e acha que descobriu a pólvora. E é legítimo, porque ele descobriu aquilo naquela altura.
Era importante esses grupos que passaram pelo Rock Rendez-Vous ouvirem Mahler. Não quer dizer que eu seja elitista e diga “os meninos precisavam de saber isto”, ou paternalista, se quiserem. Não é isso. É que faz-vos falta filhos. A cultura universal só o é numa coisa: nos destinatários. A origem da cultura nunca é universal, porque é aqui dentro. É o meu sofrimento de criador. É o meu confronto com o vazio e isso não é nada universal. Quando estou a criar, estou absolutamente sozinho, pendurado no vazio com o abismo à minha frente. É como quando entramos em palco e olhamos para o buraco escuro do outro lado.
Há uma coisa que pode ser limitativa na conversa. O caso do grupo Resistência, sobre o qual tenho opinião formada; mas o facto de eu achar que o disco deles é mau – assim como já disse ao Pedro que acho muito boa a experiência dos Madredeus – não quero que isto seja interpretado como eu a dizer “mais valia não ter havido Resistência”. Não é. Acho muito bem. É errado pôr os Resistência no centro da conversa: “Isto está agora a dar, vamos ver se é bom.” O que está a dar não é os Resistência, é a análise do movimento todo. Alguém aqui falou em outras coisas que aconteceram na música portuguesa? Coisas importantes. O disco do Vitorino não é importante? O disco da Amélia Muge não é importante? Porque é que de repente se fala nos Resistência? Porque foi o mais vendido, porque foi mais falado, porque foi agora a jogada das guitarras acústicas. Jogada de quê pá? É gira, malta porreira, boa ideia, mas já foi feita milhões de vezes por milhões de pessoas. Isso não é jogada nenhuma. A cultura não se faz com jogadas, nem com negócios. A cultura é o que fica depois disso tudo: é o sarro do capitalismo.
J.P.F. – Não tenho mais nada a dizer depois do que ele disse. Isso só confirma que não conflito de gerações nenhum.

Multinacionais E Independentes

P. – A música de hoje em dia é inseparável da imagem. Mas os artistas portugueses estão de um modo geral habituados a pensar ainda e apenas em termos de som. Como é que encaram esse que é um dos grandes desafios para a música portuguesa dos anos 90?
C.M.T. – A música hoje em dia não existe em si. É uma entidade abstracta, que me dá gozo pessoalmente e na qual acredito, mas que não existe sozinha, como existia nos anos 60, emq eu as pessoas ouviam de olhos fechados o som. Hoje em dia vêem de olhos abertos a imagem. O som é um subproduto.
J.P.F. – Mas eu vou ouvir o John Cage e não preciso de telediscos para nada.
C.M.T. Mas estás-me a falar de um exemplo que é pouco representativo para a indústria nacional.
J.P.F. – Mas nós não estamos a falar de indústria, estamos a falar de música. A indústria é outra coisa.
C.M.T. – Nós estamos a falar de coisas de peso. As coisa que não têm peso hoje e vão ter amanhã só se vêem depois, neste momento nem sequer se sabe que existem e se calhar elas já aí estão. Por isso vamos deixá-las. A nível de vértice “media”-imagem-som, digo que se não evoluírmos a par e passo, nunca conseguiremos exportar música portuguesa, por muito boa que a façamos. E eu tenho a ideia que neste momento Portugal é, na Europa, um dos países que mais mexem a nível criativo, porque a Europa está numa crise de valores e Portugal ainda não se esgotou, pois esteve protegido por um isolamento protecionista, mas que pode funcionar a nosso favor. Portanto nos próximos naos devemos batalhar…
P. – O problema da afectação da música pela promoção vídeo traz implícito o da dualidade criatividade / indústria. Como é que este eterno problema se coloca hoje para a músic aportuguesa Às portas do século XXI, quando as independentes de rock começam a dar os primeiros passos?
C.M.T. – Eu, que estou na esquina do criatividade com a indústria, sei que não é possível. Não é possível a harmonização entre a arte e o comércio. Não existe isso. Há um conflito constante.
J.P.F. – Não é possível a harmonização. O que é fundamental é que as coisas se distingam umas das outras. Enquanto se confundir a criação com a indústria, o estado das coisas vai continuar o mesmo. São duas coisas ligadas entre si, porque as coisas estão inter-relacionadas. A música existe inter-relacionada com a indústria, assim como a indústria está inter-relacionada com a fotografia com a publicidade e a publicidade com o Omo e o Omo com a roupa, e a roupa com a máquina de lavar e a máquina de lavar com a indústria da tecnologia.
Agora que não haja confusões: música é música, ou arte ou criação, e a indústria é outra coisa que pega nesse produto e através de um sistema, que está mais ou menos bem organizado, o comercializa, o vende, o faz chegar a outras pessoas. Mas quando o criador está a pensar nos números das vendas, aí podem-se pôr problemas complicados no acto criativo.
C.M.T. – Isso só acontece a partir de um certo estado de veterania, não compreendo eu um adolescente pense nisso.
S.G. – Um adolescente pensa mesmo isso.
J.P.F. – Se calhar até é fundamental que pense nisso, porque o que é importante é que se pense e se tenha consciência desse dado. Ali estão as pessoas que compram, aqui está a máquina que vende e aqui estou eu, e estou sozinho. E agora vamos lá ver o que é que quero fazer.
C.M.T. – Mas aí chegamos ao tal conceito de editora independente, que é a pequena editora que percebe o acto criativo e o desenvolve, trata-o e fá-lo chegar ao público mais adequado ao tipo de música que existe e ao tipo de energia que essa música vai transmitir às pessoas. É isso que não existe em Portugal.
J.P.F. – Mas isso tem a ver com o estarmos num estado…
C.M.T. – … De pré-história…
J.P.F. – … De pré-história, claro. Mas já existem algumas. Neste momento, existem cinco, dez editoras independentes…
C.M.T. – Já existiram mais.
J.P.F. – A determinada altura, nos Estados Unidos ou na Alemanha, que são dois países que têm um movimento de edição independente bastante forte, também só existiam cinco ou dez, agora existem muitas mais. Algumas até já estão a fechar. Portanto nós se calhar vamos lá chegar…
J.M.B. – Ser editora marginal em Inglaterra é possivelmente ser maior que a Polygram portuguesa ou a Valentim de Carvalho. É preciso uma dose mínima de oxigénio económico para poder ser marginal. Num mercado pequenino onde se vendem poucos discos, onde a esperança de venda não atinge o “break-even” que rentabilize os custos fixos á partida, tu não consegues sequer ser marginal. A única hipótese – e foi este o raciocínio que me levou a tomar determinadas iniciativas, na cooperativa de que faço parte, a UPAV – é a alargar esse espaço. Para aparecerem só coisas de que eu gosto? Não, para aparecer de tudo.
C.M.T. – Só temos que fazer uma coisa: obrigar os A&R e os responsáveis dos outros países a virarem o pescoço para aqui, cois a que eles não estão habituados. O olhar deles para possivelmente em Espanha. Eles não sabem o que se passa aqui.
J.P.F. – Nem querem saber.
C.M.T. – Se queres saber, neste momento, em Londres, fala-se da dinâmica do meio musical português. No meio, não no público. É um princípio.
J.P.F. – Mas depois chegam cá e apanham com coisas que depois dizem: “Nós temos lá disso, mas muito melhor”, e vão-se embora outra vez.

O Que Faz Falta

P. – É curioso que as independentes se comecem a mexer, em Portugal, numa altura em que nomeadamente em Inglaterra estão todas a fechar portas…
C.M.T. – Para abrir independentes, ainda não estão criadas algumas alíneas: atrair investidores de outros meios – foio que o futebol fez. Qualquer orçamento cada vez é mais alto: se eu gravava discos há dois anos com dois mil contos, agora gravo com quatro ou cinco e ainda preciso de mais três mil para o vídeo, preciso de mais não sei quanto para uma capa e o “poster” e mais não sei o quê para a política de “marketing”. Nesse aspecto, quanto ao meu esforço na Polygram, eu costumo dizer que sou um “free lancer” numa multinacional e tenho profundas dissidências com a companhia em que me insiro, mas tenho uma visão pessoal que tenho de adaptar à política da empresa e aos meus patrões estrangeiros que são os que me chateiam mais – portanto eu tenho que ser frio por um lado e tenho de ter entusiasmo por outro. Isto é uma ginástica impressionante.
Se eu estivesse numa independente, poderia ter mais liberdade e escolher estilos. Mas, para funcionar, trataria de estabelecer um “target” anual, porque senão seria a falência – é facílimo ir à falência num ano. Aliás, o Pedro Ayres tem uma boa experiência disso na Fundação Atlântica. Podes dizer qual foi o grande problema: é que nos primeiros doze meses a Fundação não produziu um “hit” de vendas.
P.A.M. – A independente esbarrou nesta questão. “Temos aqui esta música ou este grupo que nunca tinha gravado antes. Toma!” Então dás ao vendedor da grande distribuidora e o gajo vende à comissão e tem um ordenado fixo. A loja só quer comprar êxitos, porque não quer ficar com monos. E então eles dizem: “Por cada mono que eu deixo numa loja, eu levo dez novos lançamentos bem sucedidos, para recuperar o meu prestígio.”
Há tempos tive ocasião de estar com os maiores distribuidores e vendedores de discos, e perguntei, por curiosidade: “Vocês estão organizados, têm números comuns? Têm dados para mim, que sou músico?” Não. Eu não vou falar com aquele outro vendedor porque o gajo lixa-me, e se aqui se fala, gera-se uma conspiração.” Eles não falam uns com os outros, portanto não há dados sobre a venda dos discos, e tu, sentado numa independente vais escolher o azul ou o amarelo com que critério? Ou então vendes sempre pelo correio. Que é o que sobeja aos portugas…
ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO – Eu não acredito na indústria, ela não existe. Nomeadamente a década de 80, que eu atravessei, foi extremamente importante para nós músicos. Melhoraram os estúdios, melhoraram as empresas de som, melhorámos nós em cima do palco, mas quase mais nada mudou à nossa volta. E com um grave problema: o disco não faz parte dos costumes do português. O miúdo de 15/16 anos, que recebe dinheiro do pai, durante um mês seleciona o que pode comprar e se calhar pode comprar só um disco. Será que o tipo vai comprar o disco dos UHF, se saiu o dos U2 que ele estava à espera há três anos? O mercado do disco português será o quê? O Carlos Maria sabe isso muito melhor que eu. Cinco mil? Seis mil? Sete mil unidades vendidas por disco? Talvez nem dez mil, que já é prata…
C.M.T. – Sim, uma prata hoje já é uma boa meta. Boa entre aspas.
S.G. – Nos Estados Unidos nem imprimem.
A.M.R. – Isso estrangula a indústria. Porque um artista que vende dois, três mil discos não é independente financeiramente para prosseguir a sua obra – isso é que é o grave problema da nossa indústria. Nós estamos a ver uma série de casas multinacionais que estão cá como meros escritórios de representação, porque vão todos prestar contas a Madrid.
P.A.M. – Tudo o que fica são casos isolados. É uma história de gajos teimosos.



Tocar Onde?

P. – Um dos grandes problemas com que se debatem esses “gajos teimosos” que fazem música em Portugal é o circuito de salas de concertos, sobretudo ao nível da província. Qual é o ponto da situação da música ao vivo no nosso país, em 1993?
P.A.M. – Há falta de consumo cultural, ou de exposição do que nós temos no nosso país, e que a meu ver é uma coisa dramática. Diz o governo: “Nós vamos fazer uma política cultural com tal relevância que vamos encher o país de teatros.” Isto é falso. Quando andei na digressão dos Madredeus em Portugal, há dois anos, andei a ver os teatros que estavam fechados. Mas teatros das capitais de distrito. Cheguei a esta conclusão: os nossos compatriotas não têm necessidade nem o gosto de receber coisas de cultura. De entretenimento, universais, que é o que fazem os nossos vizinhos europeus. Eles têm o …lho de convidar ora o português, ora o chinês. Têm programa. O director do teatro diz: “Vejam bem, este ano tenho um programa do caraças.” E vai lá toda a gente ver, porque está curiosa e porque gosta de se entreter com aquilo.




S.G. – Acho que se deviam criar os equipamentos, em cada capital de distrito – no mínimo -, salas médias e bem equipadas que deveriam ficar à disposição, não à nossa, à das populações. Mesmo em Lisboa é absolutamente incrível, para alguém que venha de fora, dizer-se o que é que se está a passar. Se fores ao Rio de Janeiro, há o Canecão, há o Scala, tens sítios mais alternativos, e não é uma grande cidade, eles dizem que é um deserto comparado com São Paulo. O que acontece em Lisboa é que não há temporadas, que é uma coisa que não passa pela cabeça de ninguém…
J.M.B. – É a única capital europeia que não tem “music-hall” permanente. Até o Liechtenstein…
S.G. – Não há uma programação durante todo o ano de onde estão a actuar os Madredeus, os Resistência (risos…). Voltando às cidades de província, então o deserto é aina maior e, não ficando só pela música, isso acontece também por exemplo na distribuição do cinema.
P.A.M. – Porque é que os gajos não se batem por ter um teatro?



S.G. – Claro, uma coisa é baterem-se localmente e muitas vezes há reconversões de teatros. Mas era necessário que houvessem salas médias bem equipadas, um auditório que estivesse à disposição não só da música, mas até de outras artes, e, mesmo dentro da música, de vários estilos…
Da mesma maneira em relação às editoras, uma das razões porque eu saí amigavelmente da Polygram foi por não haver uma rede de distribuição. Quando eu fui fazer a “tournée” “Na Vida Real”, não havia o meu disco no Porto! A situação não melhorou muito, na EMI, onde estou agora: fui fora de época fazer o “Escritor de Canções” no Porto e foi-me dito que os donos das lojas de discos só estavam interessados nas novidades. E no entanto o Rivoli esteve mais que cheio.


Vícios De Comunicação

P. – Hoje em dia, em Portugal, há mais estações de televisão e programas musicais, mais rádios locais, e a imprensa musical escrita tem vindo a crescer. Será um factor positivo para a música portuguesa este progresso da sua cobertura mediática?
J.M.B. – A comunicação começa aqui à volta desta mesa, com três senhores que escrevem todas as semanas, com os programadores de rádio e televisão e com quem decide quem vai ouvir o quê. E vou formular uma opinião fazendo uma pergunta: porque é que o suplemento do PÚBLICO se chama PopRock? Porque é que noventa e tal por cento dos discos de música ligeira citados no “Expresso” pelo João Lisboa e pelo Ricardo Saló são de pop-rock anglo-saxónica? Há também que fazer uma educação dos comunicadores? Será que os comunicadores também têm a tal falta de referências, a tal falta de largueza de horizontes, a tal falta de cultura de que se falou há bocado?




S.G. – Não é tão maniqueísta…
J.P.F. – Não é um problema de maniqueísmo. É um problema de formação. Assim como o problema se põe ao nível do público, também se põe ao nível dos músicos e ao nível dos comunicadores. Eu não tenho dúvida que em Portugal faltam comunicadores – jornalistas, programadores de rádio e televisão, etc. – com bagagem. Não há muitas pessoas que saibam profundamente sobre aquilo que estão a falar. Posso falar de uma experiência editorial recente que eu tenho (Moneyland Records). A gente põe cá fora um objecto e as pessoas, não é que tenham dito mal ou bem, mas não sabem pegar naquilo. Pegam naquilo de uma maneira desajeitada.
S.G. – O que eu penso é que houve uma geração – aí é que eu acho que é um problema de geração – de críticos e divulgadores que era informada, mas que começou a estabelecer uma reacção de cansaço e a tomar a novidade pela novidade, fazendo tábua rasa do que está para trás. Isso aconteceu com uma certa geração de jornalistas e de críticos. A que se sucedeu – com muitas honrosas excepções – é mais ignorante, porque bebeu desses. E é uma pedagogia que se vai repercutindo. O que é certo é que há falta de memória activa…
P.A.M. – Partilho da ideia que há duas gerações de comunicadores. Quando comecei, no fim dos anos 70, a querer divulgar música minha, encontrei nas estações de rádio e nos jornais – na televisão não havia nada – pessoas muito bem formadas, mesmo que fosse sobre os anos 60, “after-hippies”, já uns “freaks” muito retintos e tal, mas tinham aquele ideal de que também eles eram parte de um movimento comunitário que partilhava ideias e filosofias.
Hoje em dia, o mais importante do trabalho dos jornais funciona para com os vizinhos comunicadores das cadeias de televisão e estações de rádio. Este, para mim, é o factor mais importante do estado de divórcio a que nós chegámos entre o trabalho da comunicação social e o grau de actividade que nós artistas temos de manter para continuarmos a gravar, tocar e permanecermos no activo.