Arquivo da Categoria: Críticas 1991

Blowzabella – “Vanilla”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


BLOWZABELLA
Vanilla
LP / CD, Special Delivery, distri. Mundo da Canção



“Vanilla” é o derradeiro testemunho em disco de um projecto único na área das músicas tradicionais e de um dos maiores tocadores de sanfona da actualidade, Nigel Eaton, como tiveram oportunidade de verificar “in loco” todos quantos assistiram à sua recente actuação em Algés, ao lado de Paul James, na gaita-de-foles. Antes da chegada do novo projecto de ambos, os “Scarp”, vale a pena deliciarmo-nos com o som de “Vanilla”, entre a excitação do rock e a religiosidade da música antiga, próximo dos grupos franceses Malicorne e Mélusine. Num registo mais contido que o anterior “A Richer Dust”, “Vanilla” como que captura e traduz a essência de cada instrumento, da sanfona, à gaita-de-foles e da “cittern” medieval, casando-a, sem conflito, com o saxofone, o violoncelo e o baixo eléctrico. Sem esquecer as entoações estranhas e frágeis da vocalista Jo Fraser que assombram “I Wish I Wish”, “The Lover’s Ghost” e a longa melopeia “La Belle s’Est Endormie”. A música dos Blowzabella e a sanfona de Nigel Eaton ateiam incêndios. Arde nela o fogo sagrado. (9)

Carlos Maria Trindade & Nuno Canavarro – “Mr. Wollogallu”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


CARLOS MARIA TRINDADE & NUNO CANAVARRO
Mr. Wollogallu
LP / CD, União Lisboa / Polygram



O género a que se convencionou chamar “new age” tem as costas largas. Editoras pioneiras como a Windham Hill e a Coda contribuíram para dar à expressão o sentido depreciativo de que geralmente goza, através da edição em série de objectos vinílicos consistindo, na maior parte dos casos, em pianos bucólicos, um toque de flauta e sons de vento e água por trás. Em suma, “new age” costuma ser sinónimo de “chato”.
Por outro lado, há a tendência para utilizar o termo para catalogar toda a música electrónica de carácter mais intimista, esteja ou não impregnada dos sinais prenunciadores de uma nova idade cósmica. “Mr. Wollogallu”, para além de quaisquer tentativas de classificação, é um objecto fascinante e uma tentativa bem sucedida de dar um rosto humano à música elaborada em computador.
Carlos Maria Trindade e Nuno Canavarro tomam como ponto de partida o som como estímulo sensorial. A música de “Mr. Wollogallu” (nome de um tambor primitivo), ao contrário de outras propostas de música “de computador” que jogam na exploração formal ou nas matemáticas digitais, resultando quase sempre em exercícios “frios”, passíveis de fruição exclusivamente racional (Morton Subotnick, Conrad Schnitzler, Emanuel Dimas Pimenta ou Tó Zé Ferreira), liga-se antes às correntes étnicas e a uma concepção dos sons como vibrações afectivas.
Neste aspecto, “Mr. Wollogallu” pode considerar-se parente próximo dos universos luxuriantes criados pelos italianos Roberto Musci e Giovanni Vennosta, nos clássicos “Water Messages in Desert Sand” e “Urban and Tribal Portraits”, por Steve Shehan, em “Arrows”, ou na forma de progressão sonora, por ciclos, com os alemães Cluster e Manuel Göttsching.
Dividido em dois blocos, compostos por cada um dos músicos, “Mr Wollogallu” passa do pendor classicista e da maior linearidade do traço melódico de Carlos Maria Trindade, brilhantes no tema de abertura “The Truth” ou na peça para piano “West”, para as explanações fusionistas de “Blu Terra” e “Antica / Burun” ou as abstracções de cristal de “Vem 5” e “Segredos M.”, já antes esboçados no anterior álbum a solo “Plux-Quba – Música para 70 serpentes”, sem perder a sedução nem o espírito de aventura.
Música aérea, contemplativa, para saborear como um “refresco de chá num zeppelin à deriva”. Um dos melhores discos do ano de música electrónica. (9)

Herman José – “Na Telefonia (Sem Fios)”

Pop-Rock Quarta-Feira, 18.12.1991


O RISO ESSENCIAL

HERMAN JOSÉ
Na Telefonia (Sem Fios)
LP, Emi – Valentim de Carvalho



Considerar Herman José um génio não é piada. O humor é coisa séria e Herman não brinca em serviço. No seu caso, ter graça é uma forma de vida, uma maneira de ser e de observar a realidade pelo lado em que esta quebra e se revela ridícula. A piada de Herman José não está (só) na anedota, na explosão final, mas no processo intermédio, na construção de um ambiente ou de uma situação, na exploração delirante de um tique, de uma inflexão vocal, de uma parcela de vida arrancada ao quotidiano. Humor latyeral, de pormenores, com sabor a iguaria.
Ao contrário da chalaça burocrática, piadista e populista dos Parodiantes de Lisboa, instituição do humor radiofónico nacional, Herman José inventa e improvisa sem cessar a partir de situações particulares, espremendo de cada uma a essência do cómico. As suas estratégias de desconstrução conceptual e linguística são em parte devedoras dos Monty Python, sacerdotes-mor do humor mais inteligente do mundo actual, não por acaso, a maioria dos portugueses permanece indiferente, chamando-lhe “estúpido” ou “sem pés nem cabeça”, sem perceber que o humor é isso mesmo – uma anatomia do absurdo. Os incondicionais, esses veneram John Cleese e co. Como figuras de culto. Nessa medida as subtilezas da comicidade de Herman apenas podem ser apreciadas até ao tutano por uma minoria.rista bem sabe as linhas com que se cose o riso dos portugueses, conferindo em paralelo ao seu trabalho, na televisão ou na rádio, uma veia mais popular e picaresca, quando no disco incarna as figuras de Ivette Marise (“Os tamanhos” e “A fertilidade”) ou do Estebes (“Entrevista a Rosa Mota”, “A vida de um desportista”). Mas os momentos de antologia desta selecção de “sketches” retirados das sessões diárias na TSF acabam por ser aqueles em que o humor fia mais fino: “Guerra do Golfo”, “Lição de Inglês”, “Pedro Almodovar ao telefone” (que ao lado de “Frank Sinatra ao telefone” recuperam os monólogos de Raul Solnado nos anos 60) e sobretudo nos magistrais “Entrevista a John Majors”, “Donald e o ventríloquo” e “Espanha homenageia Amália”, portentos de capacidade histriónica, caricatura e espírito de observação. Com Herman José, com ou sem fios, “é só rir, é só rir”. (8)