Arquivo da Categoria: Ambient

Jon Anderson – “Deseo”

pop rock >> quarta-feira >> 04.05.1994


Jon Anderson
Deseo
Windham Hill, distri. BMG



Engraçado. Na semana passada falámos do último álbum dos Yes e dos anacronismos de um filão há muito esgotado. Uma semana depois, o novo a solo de Jon Anderson aparece a abrir novos caminhos para esta voz que persiste na afirmação de um mundo melhor e parece tê-lo descoberto na América Latina. Cada faixa de “Deseo” é com efeito uma colaboração do vocalista dos Yes com um ou vários artistas daquele continente. Logo de entrada, “Amor Real”, com Milton Nascimento, é uma espécie de resposta a “Angelus”, o último álbum deste artista brasileiro. Sem ser um disco declaradamente “étnico”, “Deseo” cria uma sucessão de ambientes onde a voz de Anderson flutua sobre percussões também elas aéreas, chilreios de pássaros da floresta tropical ou conversas à solta num café nas margens do Amazonas. Álbum de tonalidades new-age marcado pela sensualidade de um samba furtivo, os acalores da salsa ou de um calipso, os tambores de uma noite de borboletas. Jon Anderson deixa-se encantar e remete-se a um papel discreto, assumindo-se apenas como um dos diversos elementos de um colectivo designado Opio Reedam, de maneira a valorizar ao máximo as interpretações, vocais e instrumentais de Maria Conchita Alonso, Eduardo del Signore, quarteto Boca Livre, Cecilia Toussaint, Vanessa Mixco ou da sua mulher, Deborah Anderson, entre outros convidados. E é uma delícia ouvir a voz assexuada do “Yes man” cantar em português e em espanhol palavras por vezes pueris como “Olá olé estou para aqui sentado num café”, saboreando-lhes o gosto e os aromas. Uma música de flores de que é fácil não se gostar, mas que acaba por se tornar simpática ao ponto de recordar os melhores momentos de Anderson a solo, do álbum estreia de 1976, “Olias of Sunhillow”. (6)

Lights In A Fat City – “Sound Column” + Jorge Reyes – “El Costumbre”

pop rock >> quarta-feira, 15.12.1993


Lights In A Fat City
Sound Column (6)
Jorge Reyes
El Costumbre (8)
Extreme, import. Contraverso



Música do reino das sombras, electrónica e ritual. Os Light In A Fat City, trio inglês, não conseguem repetir a qualidade do anterior “Somewhere”, onde expandiam as fronteiras traçadas por Jon Hassell na sua música imaginária do quarto mundo. Em “Sound Column”, gravado ao vivo em San Francisco, foi eliminada por completo a componente rítmica, ficando o didgeridoo – artefacto sonoro fetiche da banda – desamparado no meio da amplitude das “drones” electrónicas, dos “samples” subliminares, sinos de tragédia e ruídos de animais escondidos na escuridão que aproximam este disco de alguns trabalhos dos Nocturnal Emissions.
Jorge Reyes é um músico mexicano, autor de álbuns como “Musica Mexicana pre-Hispanica”, “Cronica de Castas” (com o guitarrista espanhol Suso Saiz) e “Bajo el Sol Jaguar”, nos quais cria de forma fascinante a tradição da cultura ancestral dos seus antepassados, para tal recorrendo a uma mistura original da electrónica com instrumentos de osso, pedra, conchas ou batimentos no próprio corpo. “El Costumbre” toma por base as bonecas de papel que consoante a forma e a cor, os índios otomies, da Serra de Puebla, utilizam nas suas cerimónias de magia branca e magia negra. As constantes referências ao peiote e às viagens astrais, no corpo de animais voadores, fazem desta obra o equivalente musical da literatura alucinatória de Carlos Castaneda.
A colaboração de Steve Roach, a linguagem dos sonhos pronunciada pelos Huichols em “Taksu”, o som da terra e da chuva, os murmúrios da floresta captam, como “fotografias Kirlian”, a trama simultaneamente etérea e orgânica do México dos mitos, em imagens de “feérie” e pesadelo que recordam o dia dos mortos mexicano, com as suas lanternas, máscaras, fogo-de-artifício e fantasmagorias.

Brian Eno – “Eno I (temas instrumentais) + Eno II (temas vocalizados)”

pop rock >> quarta-feira, 01.12.1993


HINO A ENO



São no total seis discos compactos, mais dois livretes, divididos por duas caixas cartonadas intituladas simplesmente Eno I (temas instrumentais) e Eno II (temas vocalizados). Uma antologia, portanto, como tantas outras, cujo objectivo principal é facturar À custa da reciclagem de produto antigo? Neste caso, não.
“Eno I” e “Eno II” – vamos considera-los como sendo apenas uma obra – é um objecto fascinante que traz de facto, algo de novo e interessante para a compreensão de um dos maiores artistas vivos deste século. Por várias razões. Em primeiro lugar, como é evidente, pela música. Pelo que ela é mas também pela maneira como é apresentada. Há material original que, ao contrário do que é vulgar acontecer neste tipo de antologias, está longe de ser supérfluo. Depois, é o contexto e a selecção cuidada dos temas, a permitir múltiplas leituras e novas perspectivas de uma estética que se estende não só pela música como pelo vídeo, a escultura, a pintura, a literatura, vértices de uma arte total ainda à procura de definição, sem esquecer o campo da teorização e da conceptualização que Eno (“professor Eno”, como é conhecido no meio musical) manipula como poucos, numa desmultiplicação feérica de novas teorias e conceitos que parecem nunca chegar para conter a sua ânsia de criação. Neste aspecto os dois livretes com texto, um da autoria de Paul Morley, jornalista britânico do “New Musical Express”, membro da editora independente ZTT e Enófilo de longa data, outro assinado pelo músico e teórico David Toop (com um álbum “New And Rediscovered Musical Instruments” editado no selo Obscure, de Eno) são suficientemente esclarecedores e estimulantes para uma abordagem guiada a pontos fundamentais da obra e personalidade do ex-Roxy Music que inventou a música ambiental. Mais subjectivo e expressionista o primeiro, oferecenedo imagens e sugestões de leitura, mais do que informação concreta; privilegiando um certo rigor histórico o segundo, que vem acompanhado de análise e interpretação da discografia de Brian Eno, bem como de um enquadramento e despistagem formal de antecedentes musicais, nomeadamente no Debussy de “Images”, no Schoenberg de “The Changing Chord-Summer Morning by a Lake-Colours”, no Ligeti de “Atmosphères”, no Morton Feldman de “Durations” ou no paradigma de todos os silêncios que é a peça “4m33s” de John Cage. Mencionam-se os minimalistas, de LaMonte Young a Riley, os “progressivos” da década de 70 e continuadores como The Black Dog, B 12 e The Orb.
Paul Morley, por seu lado, diverte-se com jogos, um pouco como as estratégias oblíquas do acaso controlado criadas em conjunto por Eno com o pintor (já falecido) Peter Schmidt, levadas à prática com resultados excepcionais nos álbuns “Another Green World” e “Before and After Science”. Propõe ainda uma lista de referências em que, pelomesmo fenómeno de agregação mágico-intuitiva das associações automáticas realizadas pelso surrealistas ou das próprias “oblique strategies”, os vários nomes encaixam de maneira mais ou menos evidente na obra, ideias e estratégias do visado: Lewis Carroll, Robert Wyatt, Stockhausen, Hendrix, Duchamp, Velvet Underground, Sly and Family Stone, Pollock, Beckett, Breton, Godard, Billy Fury, Syd Barrett…
Há ainda um alfabeto de Eno e uma entrevista (real ou simulada, pouco importa, já que o espírito de Eno está presente do princípio ao fim). Um excerto: “É possível responder a uma pergunta realmente boa em apenas uma palavra?”. Resposta de Eno: “Sim” “O que é uma pergunta estúpida?” Resposta: “Aquela de que já sabemos a resposta.” “Esta pergunta é estúpida?” Resposta: “Acho que não, porque não sei a resposta.”
Como se tudo isto não bastasse para dedicarmos os próximos três meses a repensar e reescutar a obra de Brian Eno, ainda somos confrontados com uma apresentação deslumbrante, em que todas as imagens parecem ter sido pensadas ao pormenor para nos prenderem a atenção e porem a inteligência em estado de alerta.
Por último, somos esmagados sem contemplações pelo som, de longe melhor do que o de qualquer das edições originais já editadas, graças à utilização de uma nova técnica de gravação e mistura que elimina por completo quaisquer ruídos residuais, ao mesmo tempo que valoriza as mínimas “nuances” musicais. Não é banha da cobra, basta fazer a comparação. Um espanto. Eno, entretanto, não pára. Depois do pós-pós-modernismo de “Nerve Net”, o neoclassicismo ambiental de “The Shutov Assembly” e as fragrâncias de silêncio de “Neroli”, prepara já um livro-colectânea de ensaios intitulado “Different Settings of the Zoom Lens” (“diferentes colocações de uma lente de ‘zoom’”) e a produção do próximo álbum de Laurie Anderson.





Eno I, disco 1

“Another Green World”, do álbum do mesmo nome, e 2Energy fools magician”, de “Before and After Science” são os primeiros temas a desaguar num oceano de som sem margens visíveis. As ondas do tempo entrelaçam-se nas várias edições de “Music For Films”: nas onze composições de “Music for Films I”, oito de “Music for Films II” (com Roger Eno e Daniel Lanois), uma de “Music for Films III” e oito de “Music for Films (Directors Edition), este um conjunto de versões prévias datadas de 1975 que viriam a originar o primeiro volume “oficial”. Imagens multidimensionais de um filme interior em projecção perpétua. Ainda “Dover Beach”, tema da banda original de “Jubilee”.

Disco 2

As colaborações com outras galáxias que não dispensam o silêncio. “Warszawa”, da missa negra celebrada com David Bowie no segundo lado de “Low”, “Moss Garden”, ainda com Bowie, do álbum “Heroes”. Dois temas com Jon Hassell, um de “Fourth World, vol. I (Possible Musics)”, outro de “Dream Theory in Malaya (Fourth World, vol. II)” e outros dois com Harold Budd, de “The Plateaux of Mirror” e “The Pearl”, recriam e tornam reais geografias paralelas, manifestações sonoras de arquétipos míticos que Jung e Laing trouxeram para a superfície. Os Cluster, de Moebius e Roedelius, aparecem com “Ho Renomo”, da primeira colaboração conjunta, “Cluster & Eno”. Regressa “Music for Films III” com mais quatro temas. O EP “Rarities”, incluído em “Working Backwards 1983-1973” contribui com outros dois. Final de extremos, entre a imponderabilidade das estrelas e metais em fusão,respectivamente “Stars”, de “Apollo Atmospheres & Soundtracks”, e um excerto de “Na Indexo f Metals”, do demoníaco “Evening Star”, com Robert Fripp

Disco 3

Vagas de ambientalismo de todas as cores e texturas recolhidas de “Music Forirports” (um tema, em quinze minutos sem cortes de “1/1”), 2Duiscreet Music” (excerto), “Thursday Afternoon” (excerto), “On Land” (“The lost day” e “Dunwich beach, Autumn 1960”), “The Shutov Assembly” (excerto de “Ikebukuro”) e “Neroli” (excerto). Estruturas de uma nova música que utiliza o espaço e o tempo como pontes para a sua transcendência. Arquitectura platónica. Formas e sentidos de uma relatividade absoluta.



ENO II, disco 1

Regresso aos primeiros tempos das plumas e maquilhagem, do sintetizador VCS3 e das canções. A continuação a solo de uma operação de travestismo pop encetada por Eno nos Roxy Music de “Roxy Music” e “For Your Pleasure”. Em “Here Come The Warm Jets”, aqui representado por oito temas fundamentais, com o incendiário “Baby’s on fire” à cabeça. A sequência, já com Peter Schmidt a encarregar-se do “design” da capa, “Taking Tiger Mountain (by Strategy)” contribui com mais sete canções que marcam o início da pacificação do artista. Completam a lista destes prévios exerc´cicios de malabarismo os lados A dos singles “Seven deadly finn” e “The lion sleeps tonight (Wimoweh)”.

Disco 2

Aquele que apresenta um conteúdo estruturado de forma mais convencional. Onde se prova a importância que Brian Eno reconhece na sua obra aos álbuns “Another Green World” e “Before and after Science”, no fundo aqueles que conseguem o equilíbrio (ou desequilíbrio, com Eno convém repensar o sentido dos termos…) perfeito entre a canção pop e a vertente extática do ambientalismo que viria a dominar a fase posterior da sua obra. Do primeiro apenas foi deixado de fora um tema. Quanto ao segundo, uma das peças-chave da discografia pop de todos os tempos, cabe na totalidade nesta antologia. Nele cada canção ganha os contornos de um ideal. O som que as serve subiu agora à sua altura.

Disco 3

De novo as colaborações, desta vez com nomes como David Byrne (no seminal álbum de montagem e colagem chamado “My Life In The Bush Of Ghosts”, com três temas escolhidos, entre os quais o perturbante exorcismo gravado em directo em “The Jezebel spirit”), John Cale, com três canções do reencontro “Wrong way up” e a belíssima 2The soul of Carmen Miranda” recortado do álbum do recentemente regressado aos Velvet Underground, “Words for the Dying”. Moebius e Roedelius, os Cluster, contribuem com “The belldog”, uma das faixas vocalizadas da segunda colaboração “After the Heat”. A abertura coincide com a versão em single de “King’s lead hat”, faixa de “Before and after Science” aqui gravada com Snatch e o fecho com um inédito de 1991, “Are they thinking of me?”. Um par de temas do recital de nevrose que é “Nerve Net” serve de preâmbulo para os cinco temas, também inéditos, do álbum nunca editado que lhe viria a dar origem, “My Squelchy Life”. Blocos de pura energia que pegam na rítmica africana dos Talking Heads, nos arabescos dos Dissidenten e em toda a espécie de desperdícios sonoros da civilização tecnológica ocidental, para com estes elementos dar corpo a um discurso sonoro sem paralelo na música deste século.