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Lisa Germano – “Geek The Girl”

Pop Rock

16 de Novembro de 1994
ÁLBUNS POP ROCK

JÓIAS NO FUNDO DO POÇO

LISA GERMANO
Geek the Girl
(9)
4AD, distri. MVM


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“Happiness”, o anterior álbum da cantora, editado já este ano, tem quanto a nós lugar assegurado na lista dos melhores de 1994. O novo “Geek the Girl” recupera a mesma fórmula, eliminando os (poucos) pontos menos conseguidos do seu antecessor, concretamente certas inflexões acústicas na balada “country” que, funcionando com intervalos de pausa, provocavam contudo uma quebra de intensidade emocional (e eléctrica) prevalecente. “Geek the Girl” depura esse e outros aspectos de “Happines”. Musicalmente, o álbum pauta-se por uma toada de transe, por uma vibração perturbante de dolência magoada de alguém que se refugiou num mundo ao mesmo tempo perverso e infantil, um mundo a fingir introduzido logo de início pela melodia ao estilo carrocel-mágico de “My secret reason”, em que os medos se transformam em bonecos de brinquedo e os tabus são trucidados pelas rodas de um comboio eléctrico. Numa canção como “Câncer for everything” ou no instrumental “Phantom love”, o mesmo tipo de vibração, hipnótica e arrastada, mas agora mais complexa e ornamentada, que os Velvet Undergound inauguraram no álbum da banana no tema “Venus in furs”.
O sexo, o sentimento de culpa, a fragilidade emocional aliada a uma lucidez extrema servem de novo a Lisa Germano para desnudar o seu universo interior de mulher ferida. Suspeita-se de que com algum artificialismo, ao lado de uma dose bem medida de teatro, de tal forma os diversos quadros mentais e emocionais são burilados ao pormenor. Neste aspecto, “Geek the Girl” vai ainda mais longe do que “Happiness”, retocando melodias que ainda ecoam do disco anterior, acentuando cada imagem com uma variedade maior de cores e tonalidade (um dos temas tem por título, precisamente, “…Of love and colors…”). Também como em “Happiness” não faltam as “punch lines” poéticas e as quase lengalengas em constante transmutação interior, que colocam o auditor num estado de total dependência, aqui representadas por “Sexy little girl princess” ou o tema final, “Stars”, que se diria arrancado da mesma galáxia onde orbita Lou Reed. A história de “Geek the Girl” é a “história de uma rapariga que se sente confusa sobre como ser, ao mesmo tempo, sexual e controlada neste mundo, mas que afinal chega à conclusão de que não é controlada e constantemente abusam dela sexualmente, fica como que doente e tem tendência para desistir e, apesar de tudo, tenta acreditar em qualquer coisa maravilhosa e sonha em amar um homem, na esperança de que este a salve da sua vida de merda”. Uma história triste, que Lisa Germano termina com uma gargalhada cruel e sem esperança: “Ah, ah, ah, que traste!” (“geek”). Um álbum escuro, húmido e fundo como um poço. (9)



Lisa Germano – “Lullaby For Liquid Pig”

18.04.2003

Lisa Germano
Lullaby For Liquid Pig
Ineffable, distri. Edel
8/10

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Quase sempre os lugares mais interessantes da pop são os mais misteriosos e difíceis de encontrar. Não é fácil descortinar entre os vultos do bosque a cabana onde Lisa Germano se esconde e projecta, em noites de insónia, os fantasmas da sua fantasia. O chão está molhado, forrado de vermes e cetim apodrecido. Das paredes tombam farripas de papel de cores indefinidas, desbotadas pela chuva, como as canções e as palavras que escorrem tristemente de “Lullaby for Liquid Pig”. Podemos imaginar uma sessão de espiritismo. Podemos imaginar “The Lodge” – a capela do medo que Lynch instalou no meio do nada de “Twin Peaks”. Podemos mesmo ver, nas fotos da capa, um corpo suspenso no ar ou encurralado a um canto de um quarto vazio. Ou a floresta onde Lisa corre como uma noiva perdida. Predominam a melancolia, sombras coleantes, cânticos de solidão e amores de sentido único, pianos bolorentos, correntes de ar electrónica a compor o mesmo tipo de emoções veiculadas pelos This Mortal Coil. Lisa sussurra-nos ao ouvido farrapos de melodias decalcadas dos seus discos anteriores, como um carrocel que não pára de girar no mesmo sítio mas continua a salpicar-nos de sangue.

Lisa Germano – Slide

16.10.1998
Altas Vibrações
Lisa Germano
Slide (9)
4AD, distri. MVM

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Ao cabo de quatro álbuns Lisa Germano criou um espaço próprio na canção de autor no feminino equivalente a contrapolar ao de Suzanne Vega, com quem partilha uma introspecção ao mesmo tempo lúcida e apaixonada. Mas enquanto a autora de “Luka” vem retirando sucesivamente o peso à sua música, num processo de depuração que em “Nine Objects of Desire” a levou a aproximar-se da bossa-nova, Lisa continua a carregar nos tons e num surrealismo sonoro que neste seu novo trabalho marca pontos em relação ao anterior e algo repetitivo “Excerpts from a Love Circus”.
“Slide” nasce em vagas de “feedback” a chapinhar na água, com “Way below the radio”, ritual de contacto e de chamamento dos espíritos, com Lisa expectante diante do desconhecido, um pouco à maneira das invocações tribais de Peter Gabriel: “I am here (…) going nowhere (…) Give me some personality.” “No color here”, no seu registo seco e acústico, cantado quase em sussurro, lembra o estilo e as fantasmagorias de Kristin Hersch, para. logo a seguir, “Tomorrowing” dar a conhecer a mesma ironia e o tipo de inquietações de “Happiness”, álbum de estreia da cantora. “Do you thimk it´s fun?”, pergunta, em tom de acusação. “Electrified” apresenta um arranjo de sinos, órgão de foles em cadência de realejo e harpa, com uma segunda prte preenchida por um apontamento instrumental no mesmo tom de brinquedo quebrado de Pascal Comelade.
A canção clássica aflora no título-tema e em “Wood floors”, um dos mais belos temas do disco, monólogo de sombras de alguém perdido num quarto de sonhos, a fazer lembrar “House with no door” de Peter Hammill. O choro de realejo regressa em “If I Think Of Love”, num andamento de passeio triste pelas alamedas da alma. Depois de “Crash”, dilúvio de emoções carregado de tensão, surge “Turning into Betty”, outro dos momentos deslumbrantes de “Slide”, valsa de dúvidas e aproximações, marcada por uma incrível interpretação de Lisa Germano no papel da menina prestes a deixar entrar no seu sonho de boneca o papão Freddy Kruger, sabe-se lá com que inconfessáveis intenções. O tom folclórico da sequência final acrescenta ao tema uma nota de exotismo e de perturbação adicional.
“Guillotine” é outra canção ferida de poesia e de interrogações, à deriva num vibrafone nocturno: “After the storm where is my heart? How can I touch without my hands?” O tema final, “Reptile”, é o mais afirmativo e o único onde a bateria faz notar a sua presença. Se a viagem teve início no vazio de uma emissão de rádio fantasma, o seu término deixa um rasto de estrelas e de esperança, na visão aérea – “higher vibrations, frequency flying, living in light” – de uma alma extraterrestre. Nesse estado de lucidez descarnada e de separação que marca a sensibilidade e o olhar de uma autora que em definitivo se afirma como das mais originais e criataivas da sua geração.